terça-feira, 16 de outubro de 2012

CEZAR BITENCOURT FAZ BRILHANTE SUSTENTAÇÃO ORAL NO TRF1

Extraído do Facebook, segue abaixo brilhante sustentação do Prof. Dr. Cézar Roberto Bitencourt (foto) que, no caso, atuou como Assistente da Acusação.
Vale a pena conferir !
"Ontem fizemos sustentação oral no TRF1, representando a Associação dos familiares das vítimas do VOO GOL 1907. Postulamos, pasmem, que a pena de prisão aplicada não podia ter sido substituída por penas alternativas. E conseguimos exito. Usamos os argumentos abaixo (em duas partes).

Parte I

6. A INSUFICIÊNCIA DA SUBSTITUIÇÃO DA PENA DE PRISÃO PARA A REPROVAÇÃO DO CRIME

Os critérios para a avaliação da suficiência da substituição da pena de prisão são representados pela culpabilidade, antecedentes, conduta social e personalidade do condenado, bem como pelos motivos e circunstâncias do fato, todos previstos no art. 44, III, do Código Penal. Dos elementos do art. 59 somente “as conse¬quências do crime” e o “comportamento da vítima” foram desconsiderados para a formação do juízo de suficiência da substituição.

Examinando todos esses fatores (requisitos) relacionados no dispositivo referido, o digno magistrado reconheceu que embora não sejam todos favoráveis aos dois condenados americanos (Pilotos do Legacy), ainda assim, seria recomendável a substituição da pena privativa de liberdade aplicada de quatro anos e quatro meses de detenção. Nesse sentido, arremata o digno magistrado:

“E a redação do inciso III do artigo 44 do Código Penal não autoriza a conclusão imediata de que, valoradas negativamente aquelas circunstâncias ali indicadas, o juiz não deve substituir a pena. A lei, após apontar as circunstâncias a serem consideradas, autoriza o juiz a promover a substituição se elas "indicarem que essa substituição seja suficiente"” (p. 77 da sentença).

No entanto, essa conclusão do digno e culto magistrado é, no particular, absolutamente equivocada, e, ademais, contraditória, considerando-se que ao proceder o cálculo da pena base, reconheceu, expressamente, que a “culpabilidade é grave”, senão gravíssima, in verbis: “O contexto indica que a culpabilidade foi além do que seria normal e, se é que não se pode considerá-la gravíssima, não há exagero algum em reputá-la grave” (pg. 73 da sentença).

Em circunstâncias normais, a nosso juízo, essa conclusão do digno e culto julgador até poderia ser, eventualmente, admitida. No entanto, não se pode admitir que um desastre aéreo do qual resultaram 154 mortes, em que os pilotos ignoraram as normas mais comezinhas de segurança da aviação internacional, possa ser admitido como tendo ocorrido em “circunstâncias normais”. Essa “anormalidade das circunstâncias” deve ser examinada cotejando-se os fatos concretos com nosso sistema penal em seu conjunto, isto é, encontrando-se o elemento sistemático, conforme demonstraremos adiante.

Considerando que a substituição de penas em nosso ordenamento jurídico exige mais que o simples reconhecimento de que tais condições sejam favoráveis, na verdade, essa favorabilidade não passa de simples pressuposto da substituição. Decisiva, efetivamente, é a conclusão de que tal favorabilidade mostre-se suficiente à substituição, ou seja, é necessário que dita substituição não neutralize a indispensável reprovação da conduta incriminada, como expressamente prevê o art. 44, III, in fine. A simples dúvida sobre a “suficiência da substituição” da pena de prisão, por si só, recomenda que o juiz não a aplique, como tem entendido a doutrina mais autorizada.

Em outros termos, a legislação presume que a substituição da pena privativa de liberdade por uma restritiva de direito não é “so¬cialmente recomendável”, se dita substituição não se mostrar suficiente à “reprovação e prevenção do crime”. Para a correta interpretação da substituibilidade, no entanto, deve-se conjugar o disposto no art. 44, III, in fine - que cuida da substituição de pena -, com o art. 59, caput, in fine, que disciplina a sua aplicação! Não se pode olvidar, por outro lado, que o art. 59 adota a conhecida pena necessária consagrada por Von Liszt, que deve ser a pena justa, exigida pelo Estado democrático de Direito.

Na verdade, o Estado não pode, em nenhuma hipótese, renunciar ao seu dever constitucional e institucional de garantir a ordem pública e a proteção de bens jurídicos individuais ou coletivos. A rigor, além daquelas circunstâncias do art. 44, III, serem positivas é indispensável que se configure aquilo que chamamos de “prognose favorável de suficiência da substituição” . Nesta avaliação, deve-se ter presente a relação infração-infrator-sociedade, sobretudo quando se tem exacerbado desvalor da ação, bem como elevadíssimo desvalor do resultado, mesmo em crimes culposos; nas circunstâncias, “socialmente recomendável” poderá ser exatamente “a não-substituição” da pena privativa de liberdade aplicada. Com efeito, sob a ótica da coletividade, e observando-se o princípio da proporcionalidade, “socialmente recomendável” poderá ser mesmo a não substituição da pena de prisão aplicável.

Examinando, enquanto doutrinador, as novas regras da substituição da pena de prisão por alternativas, acrescidas pela Lei 9.714/98, tivemos oportunidade de afirmar, quanto ao “juízo de suficiência da substituição”, o seguinte:


“Considerando a grande elevação das hipóteses de substituição, deve-se fazer uma análise bem mais rigorosa desse requisito, pois será através dele que o Poder Judiciário poderá equilibrar e evitar eventuais excessos que a nova previsão legal pode apresentar. Na verdade, aqui, como na suspensão condicional, o risco a assumir na substituição deve ser, na expressão de Jescheck, prudencial, e diante de sérias dúvidas sobre a suficiência da substituição esta não deve ocorrer, sob pena de o Estado renunciar ao seu dever constitucional de garantir a ordem pública e a proteção de bens jurídicos tutelados” .

Afinal de contas, até que ponto a sociedade deve ser obrigada a suportar esses indivíduos em liberdade – condenados a pena superior a quatro anos - desfrutando do convívio social? Seria tolerável (razoavelmente adequado) conceder-lhes a substituição, sem cumprirem nenhum dia de prisão, isto é, seria socialmente recomendável conceder-lhes pena substitutiva da prisão, depois de causarem a morte de 154 pessoas absolutamente inocentes, que não concorreram para isso? Pois esse é o outro lado da moeda, que também precisa ser avaliado, quando se examina a necessidade e suficiência de substituição de pena privativa de liberdade por penas alternativas, que devem ser suficientes à reprovação e prevenção do crime.

Nesse sentido, não se pode esquecer que o Direito Penal não é necessariamente assistencial e objetiva, em primeiro lugar, a Justiça Distributiva, responsabilizando o infrator pela violação da ordem jurídica, especialmente quando o desvalor de sua conduta criminosa atinge o bem mais valioso – a vida – de mais de uma centena e meia de pessoas. E isso – justiça distributiva – segundo o magistério de Jescheck, “não pode ser conseguido sem dano e sem dor, especialmente nas penas privativas de liberdade, a não ser que se pretenda subverter a hierarquia dos valores morais e utilizar a prática delituosa como oportunidade para premiar, o que conduziria ao reino da utopia. Dentro destas fronteiras, impostas pela natureza de sua missão, todas as relações humanas reguladas pelo Direito Penal devem ser presididas pelo princípio de humanidade”.
Segundo Claus Roxin , tanto a prevenção especial, como a prevenção geral devem figurar como fins da pena, por isso, a sanção aplicada em uma sentença condenatória deverá ser adequada para alcançar ambas as finalidades preventivas da pena. E deverá fazê-lo da melhor forma possível, isto é, equilibrando ditas finalidades. Assim, de um lado, a pena deverá atender ao fim de ressocialização quando seja possível estabelecer uma cooperação com o condenado. Aqui, Roxin manifesta sua adesão à prevenção especial positiva e sua rejeição às medidas de prevenção especial negativa. De outro lado, a pena deverá projetar seus efeitos sobre a sociedade, pois com a imposição de penas se demonstra a eficácia das normas penais motivando os cidadãos a não infringi-las. A pena teria, sob essa ótica, mais que um fim intimidatório, o fim de reforçar a confiança da sociedade no funcionamento do ordenamento jurídico através do cumprimento das normas, o que produziria, finalmente, como efeito, a pacificação social. Dessa forma, Roxin manifesta sua adesão a uma compreensão mais moderna da prevenção geral, combinando aspectos da prevenção geral negativa e aspectos da prevenção geral positiva.

Se fizermos uma interpretação literal, puramente gramatical, por certo, estando presentes todos os requisitos (que não é o casão), ad argumentandum, constantes do art. 44, inciso III, do CP, poder-se-á, em princípio, admitir a substituição da pena de prisão, por penas restritivas de direitos previstas no art. 43 do mesmo diploma legal. Contudo, como reiteradamente recomendam os hermeneutas, a melhor e mais segura interpretação será sempre a sistemática, que permite uma avaliação global do interpretado. Pois bem, adotando essa orientação exegética, constata-se que, dentre os requisitos exigíveis para permitir a substituição de pena, está a indicação de “que essa substituição seja suficiente” (art. 44, III, in fine, do CP). Logo, por esse dispositivo, é indispensável que a favorabilidade das circunstâncias assegure “que essa substituição seja suficiente” para a reprovação penal. Pois essa exigência legal impõe uma avaliação global, sistemática e mais apurada relativamente a “suficiência da reprovação penal”, que é uma exigência da aplicação da pena adequada (art. 59, caput, in fine, do CP). Nessa linha, deve-se realizar uma avaliação da suficiência da substituição à luz da proporcionalidade, da reprovação penal e da razoabilidade.

Na aplicação de pena – superior a dois anos – isto é, que esteja excluída da competência dos Juizados Especiais Criminais, o juiz deve escolher a pena mais adequada, isto é, aquela que melhor se adapte à situação do condenado, mas que também atenda à ordem jurídica. bem como às exigências de prevenção geral e especial, objetivos indeclináveis dos fins da pena em nosso sistema penal.

Por isso, conclusão que se impõe, se, pelas circunstâncias do caso concreto, a pena privativa de liberdade for indispensável, ou, pelo menos, for recomendável (hipótese em que a substituição não se mostre suficiente à reprovação do crime), o julgador não poderá efetuar a sua substituição por penas alternativas, podendo fixar, logicamente, o regime semiaberto para o seu cumprimento, como ocorre in caso. Dito de outra forma, ainda que todos os requisitos relacionados no inciso III do art. 44 sejam considerados favoráveis, é possível que a substituição da pena, no caso concreto, não se mostre suficiente à reprovação e prevenção do crime (arts. 44, III e 59, caput, ambos, in fine). Nessa hipótese, o julgador não pode e não deve proceder essa substituição.

6.1. Modus operandi: sem violência ou grave ameaça à pessoa (Art. 44, I, do CP)

Ao disciplinar a substituição de penas privativas de liberdade, o legislador, claramente, afastou aquelas infrações penais cometidas com violência ou grave ameaça à pessoa, independentemente de serem dolosas ou culposas.

Com a ampliação do cabimento das penas alternativas, e, ao mesmo tempo, a exclusão das infrações praticadas com violência ou grave ameaça à pessoa, passa-se a considerar, necessariamente, não só o desvalor do resultado, mas, também, o desvalor da ação, que, nos crimes violentos, é, sem dúvida, muito mais grave, e, consequentemente, seu autor não deve merecer o benefício da substituição. Por isso, afasta-se, prudentemente, a possibilidade de substituição de penas para aquelas infrações que forem praticadas com esse modus operandi (art. 44, I). Dito de outra forma, também para permitir a substituição de penas o legislador adota o princípio da proporcionalidade, e leva em consideração, para a aplicação de penas alternativas, tanto o desvalor da ação quanto o desvalor do resultado, que passamos a examinar.


6.2. Desvalor da ação e desvalor do resultado como objetos de valoração do injusto culpável
A evolução dos estudos da teoria do delito comprovou que a antijuridicidade do fato não se esgota na desaprovação do resultado, mas que “a forma de produção” desse resultado juridicamente desaprovado também deve ser incluída no juízo de desvalor. Surge, assim, na dogmática contemporânea, a impostergável distinção entre o desvalor da ação e o desvalor do resultado. Na ofensa ao bem jurídico reside o desvalor do resultado, enquanto na forma ou modalidade de concretizar a ofensa situa-se o desvalor da ação. Por exemplo, nem toda lesão da propriedade sobre imóveis constitui o injusto típico do crime de usurpação do art. 161, mas somente a ocupação realizada com violência ou intimidação à pessoa. Nessa hipótese, o conteúdo material do injusto está integrado pela lesão ao direito real de propriedade (desvalor do resultado), e pelo modo violento com que se praticou tal lesão (desvalor da ação). Os dois aspectos desvaliosos foram, conjuntamente, considerados pela lei na configuração do injusto típico do delito de usurpação.

Com efeito, a lesão ou exposição a perigo do bem ou interesse juridicamente protegido constitui o desvalor do resultado do fato, na hipótese concreta, foram dizimadas 154 vidas humanas; já a forma de sua execução configura o desvalor da ação. Em outros termos, esse desvalor é constituído tanto pelas modalidades externas do comportamento do autor como pelas suas circunstâncias pessoais, no caso, dos pilotos condenados. É indiscutível que o desvalor da ação, hoje, tem uma importância fundamental, ao lado do desvalor do resultado, na integração do conteúdo material da antijuridicidade.

No caso do “VÔO 1907 DA GOL”, o desvalor da ação – representado pela displicência, descaso, inconseqüência e desleixo dos pilotos condenados – agravam sobremodo a conduta omissiva e, no mínimo, negligente, dos mesmos, somando-se ao desvalor do resultado, representado pelo aterrador ceifamento das 154 vidas inocentes que não concorreram para esse desfecho. Aliás, ainda que, in caso, se tratasse de ação menos desvaliosa, não esmaeceria a gravidade do desvalor do resultado produzido, indicador da antijuricidade da conduta típica. Em sentido semelhante, invocamos o magistério de Rodriguez Mourullo, que destaca a impotência do “valor da ação” para excluir a antijuridicidade quando concorre o desvalor do resultado. Rodrigues Mourullo cita, como exemplo, a crença errônea de que concorre uma causa de justificação (excludente putativa), que não elimina a antijuridicidade da ação. Nessa hipótese, a ação não é desvaliosa, ao contrário, é valiosa, pois o agente atua na crença de que age conforme ao direito e para fazer prevalecer a ordem jurídica , pois, nesses casos, a lesão do bem jurídico (desvalor do resultado) fundamenta a antijuridicidade do fato, apesar da falta de desvalor da ação. Essa situação poderia, eventualmente, excluir a culpabilidade (legítima defesa putativa, por exemplo), mas não a antijuridicidade. Não é o caso dos autos.

Pois essa gravidade do desvalor do resultado, configurador da antijuridicidade, reflete-se diretamente na reprovação penal, isto é, no grau de censura, representado pela categoria sistemática do delito, conhecida como culpabilidade. Por outro lado, não se pode dissociar o desvalor da ação do desvalor do resultado, como destacamos anteriormente, e a gravidade de um reflete-se na gravidade do outro, fundamentando igualmente a maior ou menor reprovação penal. Logo, quanto maior o desvalor do resultado provável de determinada conduta imprudente ou negligente, maior a exigência de cuidado objetivo na conduta a ser praticada, cuja inobservância acarreta seu maior desvalor (da ação). No entanto, a despeito dessa maior exigência de cuidado, na situação concreta, os pilotos condenados portaram-se com displicência tal que pareciam simples passageiros da aeronave, despreocupados com possíveis consequências que pudessem produzir.

 
PARTE II

... conseguinte, essa maior desvalia da ação negligente fundamenta, ao mesmo tempo, maior reprovação penal, significando maior gravidade da culpabilidade do agente, que é, ademais, um dos elementos (o mais importante) constantes do art. 44, III, do CP. Aliás, o próprio magistrado considerou na sentença a culpabilidade como circunstância grave, in verbis:
 

“Culpabilidade. O Ministério Público Federal observa, nos seus memoriais, que a culpabilidade acentuada dos agentes deve ser levada em conta na dosagem da pena. De fato, a culpabilidade, entendida como reprovação da conduta, justifica que se proceda a um aumento da pena-base. Ficou dito na fundamentação que os pilotos ficaram quase uma hora sem verificar o painel, sem efetuar as checagens necessárias, sem exercer com diligência a função de monitoramento da aeronave. Durante uma hora foram passageiros! Tempo aproximado de uma viagem de Porto Alegre a São Paulo. Tempo em que se pode percorrer a extensão de um país. É muito. Tivesse decorrido um período de dez minutos entre o desligamento e a percepção, talvez não se pudesse censurar demasiadamente a conduta nessa fase. Mas não. Uma hora, no tempo da aviação, é uma eternidade. Está plenamente justificado, portanto, o aumento. O contexto indica que a culpabilidade foi além do que seria normal e, se é que não se pode considerá-la gravíssima, não há exagero algum em reputá-la grave” (sentença fl. 73).


Não se pode esquecer, por outro lado, que a culpabilidade é a medida da pena, a qual não pode, ao mesmo tempo, ir além desse limite. Deve-se, por outro lado, reconhecer que a culpabilidade repercute diretamente na pena e, consequentemente, também na sua substituição. “A culpabilidade nos crimes culposos tem a mesma estrutura dos crimes dolosos: imputabilidade, consciência potencial da ilicitude e exigibilidade de comportamento conforme ao Direito. O questionamento sobre as condições pessoais do agente, para se constatar se podia agir com a diligência necessária e se lhe era exigível, nas circunstâncias concretas, tal conduta, é objeto do juízo de culpabilidade” .

Na verdade, o ordenamento jurídico valora os dois aspectos: de um lado, o desvalor da ação, digamos, com uma função seletiva, destacando determinadas condutas como intoleráveis para o Direito Penal, e, de outro lado, o desvalor do resultado que torna relevante para o Direito Penal aquelas ações que produzem lesões graves aos bens jurídicos tutelados. Assim, quanto maior a lesão – no caso, a eliminação de 154 vidas – maior a reprovação penal da conduta praticada pelos infratores.

Segundo Hassemer, a exigência de proporcionalidade deve ser determinada mediante “um juízo de ponderação entre a carga ‘coativa’ da pena e o fim perseguido pela cominação penal” . Com efeito, pelo princípio da proporcionalidade na relação entre crime e pena deve existir um equilíbrio — abstrato (legislador) e concreto (judicial) — entre a gravidade do injusto penal e a pena aplicada. Ainda segundo a doutrina de Hassemer, o princípio da proporcionalidade não é outra coisa senão “uma concordância material entre ação e reação, causa e consequência jurídico-penal, constituindo parte do postulado de Justiça: ninguém pode ser incomodado ou lesionado em seus direitos com medidas jurídicas desproporcionadas” . Mas, por outro lado, o Estado também não pode abrir mão da punição proporcional à gravidade da ação delituosa, observando os parâmetros legais de necessidade e suficiência da reprovação e prevenção do crime (art. 59).

A pena deve manter-se dentro dos limites do Direito Penal do fato e da proporcionalidade, e somente pode ser imposta através de um procedimento cercado de todas as garantias jurídico-constitucionais. Hassemer afirma que “através da pena estatal não só se realiza a luta contra o delito, como também se garante a juridicidade, a formalização do modo social de sancioná-lo”. Para a aplicação da pena proporcionalmente adequada, a dogmática penal socorre-se também da culpabilidade, aqui vista não como fundamento da pena, mas como limite desta.

A prevenção geral positiva limitadora está em condições de legitimar a existência de um instituto jurídico como a pena, isto é, a compreensão da prevenção geral positiva ajustada aos valores e princípios do Estado democrático de direito é capaz de responder razoavelmente à pergunta por que castigar , de modo que a finalidade de proteção de bens jurídicos, que legitima as normas penais, vê-se integrada como substrato valorativo da finalidade de prevenção da pena, evitando que esta possa ser desvirtuada, pelo menos no plano teórico. Sob essa perspectiva é possível oferecer não só garantias ao indivíduo, mas, ao mesmo tempo, um grau razoável de estabilidade ao sistema normativo.

Quanto aos efeitos da postura assumida na determinação ou individualização judicial da pena, o primeiro aspecto a levar em consideração, como pressuposto lógico da finalidade de prevenção geral positiva limitadora, é a atribuição de culpabilidade ao autor do fato passado, que, no caso concreto, foi em grau bastante elevado, aliás, reconhecido na sentença pelo seu digno prolator. A pena, então, deverá pautar-se de acordo com o desvalor do injusto praticado e as circunstâncias pessoais dos autores (desvalor da ação + desvalor do resultado). Esse ponto de partida implica a aplicação dos princípios da proporcionalidade, igualdade e humanidade, que têm dois pólos, o dos acusados e o da sociedade. Neste caso, a sociedade não pode ficar desprotegida, com uma interpretação equivocada, com a devida vênia, como a que ocorreu nos presentes autos.

Concluindo, por todas as razões expostas, a substituição da pena de prisão – no caso concreto - por penas alternativas não se mostra suficiente à reprovação e prevenção do crime, como exige o ordenamento jurídico brasileiro (art. 44, inciso III, in fine, e art. 59, caput, in fine, ambos do CP).

Não apenas as culpabilidades dos pilotos (valoradas negativamente na sentença), como também as circunstâncias do crime – ignoradas pelo julgador -, não indicam a suficiência da substituição, pelo contrário, recomendam, claramente, a sua não substituição, em razão de sua clara e precisa insuficiência, no caso concreto. Faremos, a seguir, as considerações relativas às circunstâncias do crime.

6.3. Omissão da sentença: valoração (negativa) das circunstâncias do crime

O digno e culto magistrado ao examinar as operadoras do art. 44, III, olvidou-se, inacreditavelmente, de valorar – as circunstâncias do crime – seguramente, uma das mais importantes moduladoras elencadas tanto nesse dispositivo como no art. 59, caput. Essa relevância está diretamente relacionada com alguns aspectos, tais como: (i) o local do crime – espaço aéreo -; (ii) modus operandi – (iii) absoluta displicência dos acusados (pilotos), comportando-se como verdadeiros passageiros; (iiii) sua duração e atitude dos autores durante a omissão – mais de uma hora sem observar o desligamento do transponder etc.

Examinando as moduladoras do art. 59 (seis delas repetidas no art. 44, III), tivemos oportunidade de afirmar: “Circunstâncias do crime, na verdade, são dados, fatos, elementos ou peculiaridades que apenas circundam o fato principal. Não integram a figura típica, podendo, contudo, contribuir para aumentar ou diminuir a sua gravidade” . Em sentido semelhante, é o magistério de ALBERTO SILVA FRANCO: “As circunstâncias são elementos acidentais que não participam da estrutura própria de cada tipo, mas que, embora estranhas à configuração típica, influem sobre a quantidade punitiva para efeito de agravá-la ou abrandá-la. (...). Entre tais circunstâncias, podem ser incluídos o lugar do crime, o tempo de sua duração, o relacionamento existente entre autor e vítima, a atitude assumida pelo delinquente no decorrer da realização do fato criminoso etc.” No mesmo sentido, referindo-se às “circunstâncias do crime”, Aníbal Bruno , sentenciava: “são condições acessórias, que acompanham o fato punível, mas não penetram na sua estrutura conceitual e, assim, não se confundem com os seus elementos constitutivos. Vêm de fora da figura típica, como alguma coisa que se acrescenta ao crime já configurado, para impor-lhe a marca de maior ou menor reprovabilidade”.

Em outros termos, para valorar “as circunstâncias do crime” o magistrado deve considerar todos esses aspectos que acabamos de referir, os quais contribuem para a agravação ou atenuação da sanção aplicável, dependendo das peculiaridades do caso concreto. No caso sub judice, para se valorar, adequadamente, sejam os elementos do art. 59, sejam aqueles repetidos no art. 44, III, o julgador não pode jamais perder de vista que houve uma verdadeira catástrofe com a vitimização de 154 pessoas, que decorreu, fundamentalmente, da conduta negligente e imprudente dos acusados.
Ademais, pequenos detalhes técnicos, baseados no maior ou menor rigor interpretativo, podem definir o comportamento dos pilotos como crime doloso (assumiram o risco do resultado), ou culposo (conscientes do risco do resultado, que não assumiram). Em outros termos, uma zona griz separa o dolo eventual da culpa consciente, a despeito da abismal diferença entre as sanções cominadas. Aliás, o próprio Magistrado reconheceu na sentença que “(...) se cuida de uma tragédia, e não de um acidente qualquer.” , tais as proporções que referido fato atingiu e repercutiu na sociedade como um todo. Nesse sentido, pedimos venia para adotar, por sua pertinência, a manifestação incensurável do Prof. René Ariel Dotti, em seu judicioso parecer, in verbis:

“61. O cometimento do crime no interior de uma aeronave com passageiros em pleno voo (lugar do fato delituoso) é o primeiro aspecto apto a ensejar a valoração negativa das circunstâncias do crime. Com efeito, o risco assumido pelos pilotos, através de uma conduta incrivelmente imperita e negligente em velocidade e altitude elevadas traduz-se em hipótese de crime culposo de circunstâncias muito mais reprováveis do que nos crimes culposos em geral” (fl. 29 do parecer).


Esse aspecto do fato delituoso, não escapou à perspicácia do Ministério Público que, na descrição dos fatos, fez constar da denúncia o seguinte:

“A despeito de a viagem ter decorrido, nesse primeiro segmento, sem maiores problemas, apurou-se que o. v denunciados JOSEPH LEPORE e JAN PAUL PALADINO exibiram pouca familiaridade com o novo avião, enfrentando dificuldades para manusear certos equipamentos. As conversas registradas pelo gravador de voz da cabine (CVR - Cockpit Voice Recorder), transcritas a fl: 276/388 do inquérito policial, revelam que os pilotos se embaraçaram algumas vezes ao operar o Sistema de Gerenciamento de Voo (FMS - Flight Manegement System), a ponto de admitirem, em determinado momento, que precisavam "achar o manual" da aeronave e "começar a lê-lo” (cf laudo pericial, f 869)” (fl. 3 da sentença”).


Ainda, no plano fático das “circunstâncias do crime”, deve-se considerar sobremodo o aspecto temporal, mais especificamente, o lapso de tempo que os pilotos “desligaram-se” de suas responsabilidades de conduzir uma aeronave – em torno de uma hora -, negligenciando no controle dos instrumentos de navegação, circunstância que não pode ser desconsiderada quando da elaboração da “prognose de suficiência da substituição” da pena de prisão. Esse aspecto não foi ignorado pelo julgador, embora não o tenha valorado como circunstância negativa. Vejamos, no particular, o registro de Sua Excelência, in verbis:


“O que a prova diz, inequivocamente, é que os pilotos não cumpriram o seu dever de checar com regularidade o equipamento. O transponder foi desligado às 19:01:53, a colisão ocorreu às 19:56:54. Quase uma hora desligado. Uma hora, no tempo da aviação, é uma enormidade. É como se, em um voo de Porto Alegre a São Paulo, os pilotos não fizessem procedimentos de verificação, de checagem, comportando-se como se passageiros fossem – para utilizar a expressão pedagógica do senhor Jenkins.”


Pois esse registro do ilustre julgador descreve autêntica “circunstância do crime”, que revela o grave erro omissivo dos pilotos, que ocasionaram não apenas um acidente, com uma ou outra vítima, como poderia ocorrer em um acidente de trânsito, mas causou efetivamente a morte de 154 pessoas; aliás, previsível em se tratando de acidente aéreo, por isso, a maior gravidade da conduta negligente e imperita de pilotos de aviões comerciais.

O relatório do CENIPA (Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos), por sua vez, destaca a consequência natural nos órgãos de controle da negligência dos pilotos: “a perda de informações do transponder do N600XL ocorreu simultaneamente em cinco telas de console radar diferentes, sendo que as demais aeronaves, voando próximas ao setor com seus transponders ligados, permaneceram sendo percebidas normalmente pelos órgãos de controle de tráfego aéreo” (Relatório do CENIPA, fls. 39). A gravidade dessa negligência dos pilotos – que também é circunstância do crime – não foi ignorada pelo Parquet, que assim descreveu na denúncia, conforme transcrição na sentença:


“Com efeito, quatro telas do painel da aeronave, estando duas à frente do piloto e duas, do co-piloto, exibiram, desde a desativação, o aviso ‘TCAS Off’ (TCAS desligado). Os experientes aviadores, porém, deram-se conta da displicência tarde demais, quando o Boeing PR-GTD, já danificado pelo choque com a asa do N600LX, rasgava em queda livre o céu do Mato Grosso – e os corações de muita gente.” Transcrição da denúncia na p. 5 da sentença).


Nesse sentido, a lapidar e contundente síntese que o Prof. Ariel Dotti faz em seu impecável parecer, ao referir-se às circunstâncias do crime, in verbis:


“62. Sim, pois se tratava do risco de morte de, pelo menos, todos os que se encontravam no avião. No mínimo, 7 (sete) pessoas morreriam. Além disso, deve-se contabilizar na gravidade da quebra do dever de cuidado nessas circunstâncias a grande probabilidade de, em uma queda, pessoas em solo serem atingidas, com a dizimação de famílias inteiras. Ou, ainda, a possibilidade concreta de, mediante a ausência de consulta ao painel de controle por 1 (uma) hora – o qual indicava permanentemente o desligamento do transponder –, o avião que os pilotos do Legacy conduziam vir a chocar-se com outro avião também em voo, causando a morte de, certamente, mais de uma centena de pessoas. Infelizmente, foi essa última hipótese que, aqui, verificou-se. E o fato, que se não pode sonegar na presente análise, é o seguinte: o risco de que tudo isso ocorresse era de conhecimento dos pilotos, os quais, ainda assim, não empregaram os cuidados imprescindíveis para evitá-lo”.


Concluindo, enfim, este tópico: a negligência dos dois acusados de (quase) 1 (uma) hora - como circunstância do crime – é muito mais grave do que aquela que dura por um minuto. O longo período mencionado na sentença – uma enormidade, no tempo da aviação – ou seja, basicamente, a duração de uma viagem de Belo Horizonte a Brasília, comprova que essas circunstâncias de um crime culposo, devem ser, necessariamente, valoradas negativamente. Dito de outra forma, as “circunstâncias do crime” demonstram a extraordinária gravidade do crime, que não pode ser ignorada quando do exame da (in) suficiência da substituição, para prevenir e reprimir o crime objeto desta ação penal."

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