sexta-feira, 19 de julho de 2013

ATENUANTES. PENA. MÍNIMO LEGAL. GARANTIA CONSTITUCIONAL


* Foto: Cezar Roberto Bitencourt



As atenuantes podem trazer a pena para aquém do mínimo legal: uma garantia constitucional

Os reflexos das circunstâncias atenuantes na dosimetria da pena



O entendimento contrário à redução da pena para aquém do mínimo cominado partia de uma interpretação equivocada, que a dicção do atual art. 65 do Código Penal não autoriza. Com efeito, esse dispositivo determina que as circunstâncias atenuantes “sempre atenuam a pena”, independentemente de já se encontrar no mínimo cominado. É irretocável a afirmação de Carlos Caníbal quando, referindo-se ao art. 65, destaca que “se trata de norma cogente por dispor o Código Penal que ‘são circunstâncias que sempre atenuam a pena’… e — prossegue Caníbal — norma cogente em direito penal é norma de ordem pública, máxime quando se trata de individualização constitucional de pena”. A previsão legal, definitivamente, não deixa qualquer dúvida sobre sua obrigatoriedade, e eventual interpretação diversa viola não apenas o princípio da individualização da pena (tanto no plano legislativo quanto judicial) como também o princípio da legalidade estrita.
O equivocado entendimento de que “circunstância atenuante” não pode levar a pena para aquém do mínimo cominado ao delito partiu de interpretação analógica desautorizada, baseada na proibição que constava no texto original do parágrafo único do art. 48 do Código Penal de 1940 , não repetido, destaque- e, na Reforma Penal de 1984 (Lei n. 7.209/84). Ademais, esse dispositivo disciplinava uma causa especial de diminuição de pena — quando o agente quis participar de crime menos grave —, mas impedia que ficasse abaixo do mínimo cominado. De notar que nem mesmo esse diploma revogado (parte geral) estendia tal previsão às circunstâncias atenuantes, ao contrário do que entendeu a interpretação posterior à sua revogação. Lúcido, também nesse sentido, o magistério de Caníbal quando afirma: “É que estes posicionamentos respeitáveis estão, todos, embasados na orientação doutrinária e jurisprudencial anterior à reforma penal de 1984 que suprimiu o único dispositivo que a vedava, por extensão — e só por extensão — engendrada por orientação hermenêutica, que a atenuação da pena por incidência de atenuante não pudesse vir para aquém do mínimo. Isto é, se está raciocinando com base em direito não mais positivo” .
Ademais, naquela orientação, a nosso juízo superada, utilizava-se de uma espécie sui generis de interpretação analógica entre o que dispunha o antigo art. 48, parágrafo único, do Código Penal (parte geral revogada), que disciplinava uma causa especial de diminuição, e o atual art. 65, que elenca as circunstâncias atenuantes, todas estas de aplicação obrigatória. Contudo, a não aplicação do art. 65 do Código Penal, para evitar que a pena fique aquém do mínimo cominado, não configura, como se imagina, interpretação analógica, mas verdadeira analogia — vedada em direito penal — para suprimir um direito público subjetivo, qual seja a obrigatória (circunstância que sempre atenua a pena) atenuação de pena. Por outro lado, a analogia não se confunde com a interpretação analógica. A analogia, convém registrar, não é propriamente forma ou meio de interpretação, mas de aplicação da norma legal. A função da analogia não é, por conseguinte, interpretativa, mas integrativa da norma jurídica. Com a analogia procura-se aplicar determinado preceito ou mesmo os próprios princípios gerais do direito a uma hipótese não contemplada no texto legal, isto é, com ela busca-se colmatar uma lacuna da lei. Na verdade, a analogia não é um meio de interpretação, mas de integração do sistema jurídico. Nessa hipótese, que ora analisamos, não há um texto de lei obscuro ou incerto cujo sentido exato se procure esclarecer. Há, com efeito, a ausência de lei que discipline especificamente essa situação . Na verdade, equipararam-se coisas distintas, dispositivos legais diferentes, ou seja, artigo revogado (art. 48, parágrafo único) e artigo em vigor (art. 65); aquele se referia a uma causa de diminuição específica; este, às circunstâncias atenuantes genéricas, que são coisas absolutamente inconfundíveis; impossível, consequentemente, aplicar-se qualquer dos dois institutos, tanto da analogia quanto da interpretação analógica. A finalidade da interpretação é encontrar a “vontade” da lei, ao passo que o objetivo da analogia, contrariamente, é suprir essa “vontade”, o que, convenhamos, só pode ocorrer em circunstâncias carentes de tal vontade.
Concluindo, o paralelo que poderia ser traçado limitar-se-ia ao que dispunha o art. 48, parágrafo único, na redação original do CP de 1940, com o art. 29, § 2º, da redação atual, pois ambos disciplinam a mesma situação: se o agente quis participar de crime menos grave — com a seguinte diferença: o dispositivo revogado adotava a responsabilidade objetiva, e o atual dá tratamento diferenciado ao desvio subjetivo de condutas; aquele proibia que a redução trouxesse a pena para aquém do mínimo cominado, ao passo que o atual determina expressamente que o agente responde pelo crime menos grave que quis cometer. Logo, tanto a analogia quanto a interpretação analógica são igualmente inaplicáveis .
Enfim, deixar de aplicar uma circunstância atenuante para não trazer a pena para aquém do mínimo cominado nega vigência ao disposto no art. 65 do CP, que não condiciona a sua incidência a esse limite, violando o direito público subjetivo do condenado à pena justa, legal e individualizada. Essa ilegalidade, deixando de aplicar norma de ordem pública, caracteriza uma inconstitucionalidade manifesta. Em síntese, não há lei proibindo que, em decorrência do reconhecimento de circunstância atenuante, possa ficar aquém do mínimo cominado. Pelo contrário, há lei que determina (art. 65), peremptoriamente, a diminuição da pena em razão de uma atenuante, sem condicionar seu reconhecimento a nenhum limite; e, por outro lado, reconhecê-la na decisão condenatória (sentença ou acórdão), somente para evitar nulidade, mas deixar de efetuar sua atenuação, é uma farsa, para não dizer fraude, que viola o princípio da reserva legal. Seria igualmente desabonador fixar a pena-base acima do mínimo legal, ao contrário do que as circunstâncias judiciais estão a recomendar, somente para simular, na segunda fase, o reconhecimento de atenuante, previamente conhecida do julgador. Não é, convenhamos, uma operação moralmente recomendável, beirando a falsidade ideológica.
Por fim, e a conclusão é inarredável, a Súmula 231 do Superior Tribunal de Justiça, venia concessa, carece de adequado fundamento jurídico, afrontando, inclusive, os princípios da individualização da pena e da legalidade estrita.
Outro grande fundamento para admitir que as atenuantes possam trazer a pena para aquém do mínimo legal é principalmente a sua posição topográfica: são valoradas antes das causas de aumento e de diminuição; em outros termos, após o exame das atenuantes/agravantes, resta a operação valorativa das causas de aumento que podem elevar consideravelmente a pena-base ou provisória. Ademais, o texto atual do Código Penal (Lei n. 7.209/84) não apresenta qualquer empecilho que impossibilite o reconhecimento de qualquer atenuante, ainda que isso possa significar uma pena (base, provisória ou definitiva) inferior ao mínimo cominado no tipo penal.
Finalmente, quando houver duas qualificadoras, uma deverá ser valorada como tal e a outra deverá ser considerada como agravante genérica, desde que elencada tal circunstância, caso contrário deverá ser avaliada como circunstância judicial.
* Doutor em Direito Penal pela Universidade de Sevilha na Espanha

segunda-feira, 15 de julho de 2013

OAB É REPROVADA NO EXAME DA ORDEM ?



A OAB É REPROVADA NO EXAME DE ORDEM – ERRA NA FORMULAÇÃO DA QUESTÃO PRÁTICA

      Façamos um sucinto exame da questão prática proposta no Exame X da OAB, nos seguintes termos:

PRIMEIRA PARTE – FÁTICO-JURÍDICA
I - TEXTO LEGAL

Art. 155. Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel:
Pena — reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.
(..)
§ 5º A pena é de reclusão de 3 (três) a 8 (oito) anos, se a subtração for de veículo automotor que venha a ser transportado para outro Estado ou para o exterior.
§ 5º acrescentado pela Lei n. 9.426, de 24-12-1996.

II – ENUNCIADO DA QUESTÃO PRÁTICA PROPOSTA

Leia com atenção o caso concreto a seguir:


Jane, no dia 18 de outubro de 2010, na cidade de Cuiabá – MT, subtraiu veículo automotor de propriedade de Gabriela. Tal subtração ocorreu no momento em que a vítima saltou do carro para buscar um pertence que havia esquecido em casa, deixando-o aberto e com a chave na ignição. Jane, ao ver tal situação, aproveitou-se e subtraiu o bem, com o intuito de revendê-lo no Paraguai. Imediatamente, a vítima chamou a polícia e esta empreendeu perseguição ininterrupta, tendo prendido Jane em flagrante somente no dia seguinte, exatamente quando esta tentava cruzar a fronteira para negociar a venda do bem, que estava guardado em local não revelado. Em 30 de outubro de 2010, a denúncia foi recebida. No curso do processo, as testemunhas arroladas afirmaram que a ré estava, realmente, negociando a venda do bem no país vizinho e que havia um comprador, terceiro de boa-fé  arrolado como testemunha, o qual, em suas declarações, ratificou os fatos. Também ficou apurado que Jane possuía maus antecedentes e reincidente específica nesse tipo de crime, bem como que Gabriela havia morrido no dia seguinte à subtração, vítima de enfarte sofrido logo após os fatos, já que o veículo era essencial à sua subsistência. A  ré confessou o crime em seu interrogatório. Ao cabo da instrução criminal, a ré foi condenada a cinco anos de reclusão no regime inicial fechado para cumprimento da pena privativa de liberdade, tendo sido levada em consideração a confissão, a reincidência específica, os maus antecedentes e as consequências do crime, quais sejam, a morte da vítima e os danos decorrentes da subtração de bem essencial à sua subsistência. A condenação transitou definitivamente em julgado, e a ré iniciou o cumprimento da pena em 10 de novembro de 2012. No dia 5 de março de 2013, você, já na condição de advogado(a) de Jane, recebe em seu escritório a mãe de Jane, acompanhada de Gabriel, único parente vivo da vítima, que se identificou como sendo filho desta. Ele informou que, no dia 27 de outubro de 2010, Jane, acolhendo os conselhos maternos, lhe telefonou, indicando o local onde o veículo estava escondido. O filho da vítima, nunca mencionado no processo, informou que no mesmo dia do telefonema, foi ao local e pegou o veículo de volta, sem nenhum embaraço, bem como que tal veículo estava em seu poder desde então. 


Com base somente nas informações de que dispõe e nas que podem ser inferidas pelo caso concreto acima, redija a peça cabível, excluindo a possibilidade de impetração de Habeas Corpus, sustentando, para tanto, as teses jurídicas pertinentes”. (Valor: 5,0).

III – GABARITO COMENTADO PELA OAB

O candidato deve redigir uma revisão criminal, com fundamento no art. 621, I e/ou III, do Código de Processo Penal. Deverá ser feita uma única petição, dirigida ao Desembargador Presidente do Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso, onde o candidato deverá argumentar que, após a sentença, foi descoberta causa especial de diminuição de pena, prevista no art. 16 do Código Penal, qual seja, arrependimento posterior. O agente, anteriormente ao recebimento da denúncia, por ato voluntário, restituiu a res furtiva, sendo certo que tal restituição foi integral e que, portanto, faz jus ao máximo de diminuição. Assim, deverá pleitear, com base no art. 626 do Código de Processo Penal, a modificação da pena imposta, para que seja considerada referida causa de diminuição de pena.

Além disso, o fato novo comprova que o veículo não chegou a ser transportado para o exterior, não tendo se iniciado qualquer ato de execução referente à qualificadora prevista no §5º do artigo 155 do Código Penal. Por isso, cabível a desclassificação do furto qualificado para o furto simples (artigo 155, caput, do Código Penal).

Como consequência da aplicação da causa especial de diminuição de pena prevista no art. 16 do CP e da desclassificação do delito, o examinando deverá desenvolver raciocínio no sentido de que, em que pese a reincidência da revisionanda, o STJ tem entendimento sumulado no sentido de que poderá haver atribuição do regime semiaberto para cumprimento da pena privativa de liberdade (verbete 269 da Súmula do STJ).

Além disso, o fato de a revisionanda ter reparado o dano de forma voluntária prepondera sobre os maus antecedentes e demonstra que as circunstâncias pessoais lhe são favoráveis. Por isso, a fixação do regime fechado se mostra medida desproporcional e infundada, devendo ser abrandado o regime para o semiaberto, com base na no verbete 269 da Súmula do Superior Tribunal de Justiça.

Ao final, o examinando deverá elaborar, com base no art. 626 do CPP, os seguintes pedidos: i. a desclassificação da conduta, de furto qualificado para furto simples; ii. a diminuição da pena da pena privativa de liberdade; iii. a fixação do regime semiaberto (ou a mudança para referido regime) para o cumprimento da pena privativa de liberdade. 
(...)

SEGUNDA PARTE – AVALIAÇÃO JURÍDICA

CONSIDERAÇÕES SOBRE A TERRITORIALIDADE E TIPICAÇÃO



         Antes de mais nada, deve-se examinar, preliminarmente,  um aspecto básico, que, na nossa concepção, funciona como um verdadeiro pressuposto desse crime, qual seja, a territorialidade, que é, ao mesmo tempo, uma elementar normativa especial do crime de “furto qualificado de veículo automotor”. Esse aspecto é fundamental, na medida em que a qualificadora especial somente se configura “se a subtração for de veículo automotor que venha a ser transportado para outro Estado ou para o exterior” (§ 5º do art. 155). Dito de outra forma, não haverá essa qualificadora se a res furtiva, representada por veículo automotor, não sair dos limites territoriais da Unidade Federativa onde foi subtraído!

            Nesse sentido, tivemos oportunidade demonstrar em nosso Tratado de Direito Penal, Parte Especial, volume 3, 2013, p. 81: “b) para a configuração da nova qualificadora, não basta que a subtração seja de veículo automotor: é indispensável que este ‘venha a ser transportado para outro Estado ou para o exterior’. Se o veículo automotor ficar na mesma unidade federativa, não incidirá a qualificadora, pois essa elementar integra o aspecto material dessa especial figura qualificada”. Reforçando, é indispensável que o veículo automotor “venha a ser transportado para outro Estado ou para o exterior”.

            Pela construção da questão prática e da proposta exigida pela OAB, no entanto, constata-se que foi ignorada que a qualificação do crime não ocorre somente com o transporte da res furtiva “para o exterior”, mas também  quando é transportado “para outro Estado”. Trata-se de elementar típica que não admite interpretação diversa. O elemento subjetivo não pode ser presumido, mas deve decorrer das próprias circunstâncias fáticas.

            Com efeito, no enunciado da questão proposta afirma-se que Jane foi presa quando tentava cruzar a fronteira do Paraguai para negociar o veículo; por outro lado, a OAB afirma no “gabarito comentado”, que é o seu modelo de resposta esperada, “que o veículo não chegou a ser transportado para o exterior, não tendo se iniciado qualquer ato de execução referente à qualificadora prevista no §5º” do artigo 155 do CP.   

            Veja-se, nos próprios termos do “gabarito comentado” da OAB, verbis:

“Além disso, o fato novo comprova que o veículo não chegou a ser transportado para o exterior, não tendo se iniciado qualquer ato de execução referente à qualificadora prevista no §5º do artigo 155 do Código Penal. Por isso, cabível a desclassificação do furto qualificado para o furto simples (artigo 155, caput, do Código Penal)”.

           Dessas afirmações da prova da OAB chega-se a seguinte conclusão: ou a OAB desconhece o tipo penal do “furto qualificado de veículo automotor” (ou esqueceu, o que é mais provável, que é suficiente o transporte da res furtiva para fora do estado), ou desconhecem a geografia de nosso País.

           Ora, essa conclusão é inevitável, senão vejamos, segundo os dados propostos: o furto ocorreu em Cuiabá, Estado do Mato Grosso; a autora do furto foi presa na fronteira do Paraguai, e a OAB afirma que ela não saiu para o exterior, logo, deve-se concluir, não passou pela Bolívia! Ora, ou suprimimos o Estado do Mato Grosso Sul, reitegrando-o ao Estado de Mato Grosso (o que causaria uma justa revolução naquele Estado), ou os examinadores equivocaram-se na formulação da questão e na proposição da resposta desejada.

           Constata-se, em outros termos, que a resposta pretendida pela OAB é juridicamente impossível, qual seja, a de desqualificar o crime de furto de veículo automotor, por não configuração da qualificadora, na medida em que a ação foi praticada em Cuiabá e a autora foi presa na fronteira do Paraguai tentando entrar naquele País para vendê-lo, tendo percorrido, portanto, todo o Estado do Mato Grosso do Sul. Ou seja, transportou-o para outro Estado.

         Examinando, enquanto doutrinador, o “furto de veículo automotor”, logo após a publicação da Lei nº 9.426, de 24-12-1996, fizemos as seguintes considerações”:

A Lei n. 9.426, de 24 de dezembro de 1996, cria uma nova figura de furto qualificado, distinta daquelas relacionadas no § 4º do art. 155, sempre que a coisa móvel, objeto da ação, consistir em veículo auto­mo­tor (automóveis, caminhões, lanchas, aeronaves, motocicletas, jet skis etc.). Com essa nova qualificadora (§ 5º), pretendeu-se inibir a conduta de subtrair veículo automotor, exasperando exageradamente a sanção correspondente, fixando-a entre três e oito anos de reclusão.
(...)
Essa nova previsão merece, objetivamente, dois destaques: a) esqueceu-se de tipificar o chamado furto de uso, tão corriqueiro na atualidade, que, reconhecidamente, constitui figura atípica; e b) para a configuração da nova qualificadora, não basta que a subtração seja de veículo automotor: é indispensável que este ‘venha a ser transportado para outro Estado ou para o exterior’. Se o veículo automotor ficar na mesma unidade federativa, não incidirá a qualificadora, pois essa elementar integra o aspecto material dessa especial figura qualificada”.
Sintetizando, os furtos de veículos automotores, em geral, não são atingidos pela nova qualificadora acrescentada pela referida lei. Em ou­tros termos, as tradicionais e costumeiras subtrações de veículos auto­mo­tores, que perturbam o quotidiano do cidadão, não serão alcançadas pela nova qualificadora se não vierem, efetivamente, “a ser transportados para outros Estados ou para o exterior”. Com efeito, a incidência da qualificadora, nos termos legais, exige que o veículo tenha ultrapassado os limites territoriais do Estado-membro ou do próprio território nacional, pois se trata de elementar objetiva espacial.
Essa qualificadora cria um problema sério sobre o momento consumativo da nova figura delitiva. Afinal, pode um tipo penal apresentar dois momentos consumativos distintos, um no momento da subtração e outro quando ultrapassar a fronteira de um Estado federado ou do próprio País? Com efeito, quando o agente pratica a subtração de um veículo automotor, em princípio é impossível saber, com segurança, se será transportado para outro Estado ou para fora do território nacional. Assim, essa qualificadora somente se consuma quando o veículo ingressa efetivamente em outro Estado ou em território estrangeiro. Na verdade, não basta que a subtração seja de veículo automotor. É indispensável que este “venha a ser transportado para outro Estado ou para o exterior”, atividade que poderá caracterizar um posterius em relação ao crime anterior já consumado. Nessas circunstâncias, é impossível, em regra, reconhecer a tentativa da figura qualificada quando, por exemplo, um indivíduo é preso, no mesmo Estado, dirigindo um veículo furtado.
Teria sido mais feliz a redação do § 5º se tivesse, por exemplo, se utilizado do tradicional elemento subjetivo do injusto, isto é, prevendo, como especial fim de agir, a venda ou transporte “para outro Estado ou para o exterior”. Como se sabe, o especial fim de agir, embora amplie o aspecto subjetivo do tipo, não integra o dolo nem se confunde com ele. Efetivamente, os elementos subjetivos especiais do injusto especificam o dolo, sem com ele se confundir. Não é necessário que se concretizem, sendo suficiente que existam no psiquismo do autor”.

          Enfim, venia concessa, por mais que não se queira ser deselegante, nessa questão, a OAB foi reprovada!!! Errou grosseiramente, tanto na formulação da questão (excluiu expressamente a única peça viável, um HC), como também e, principalmente, na resposta exigida! A conduta descrita, a despeito de suas lacunas, configura, em tese, o furto qualificado de veículo automotor, tipificado no § 5º do art. 155 do CP. Por isso, é juridicamente insustentável defender a desclassificação do crime, pelo simples de fato de o veículo furtado não ter sido transportado para o exterior, na medida e quem o foi para outro Estado.

     Sem se falar que a indicação do local onde o veículo se encontrava (arrependimento) ocorreu antes do recebimento da denúncia. A defesa devia, portanto, ter sido diligente e fazer a prova durante a instrução criminal. Nova, portanto, foi a comprovação do fato, logo, extemporânea.

          Concluindo, em uma análise superficial, nos limitamos a examinar a tipificação e a elementar normativa espacial do tipo penal qualificado. Consideramos, para esta tarefa preliminar, prejudicados os demais elementos, por não interessar aqui. Por isso, acreditamos que a questão proposta é nula de pleno direito, impondo-se a atribuição integral da nota correspondente a todos os examinandos, além da possível reparação de danos causados a todos.

         Para uma tarde de domingo, dedicado a vocês, acreditamos ser, por ora, suficiente para suscitar o debate acadêmico-científico.

           Boa sorte a todos


Cezar Roberto Bitencourt


segunda-feira, 1 de julho de 2013

PEC 37 X INVESTIGAÇÃO CRIMINAL


Foto: Aury Lopes Jr



É mais importante definir como será a investigação

Por Aury Lopes Jr


Pronto. A PEC 37 foi derrubada. E agora?


Acabaram os problemas da investigação preliminar? Resolvida a crise do inquérito policial?


A PEC era um erro e tinha que ser debatida e derrubada, mas com seriedade e profundidade da discussão, o que não foi o caso. Mas agora, voltemos ao ponto: está resolvido o problema? Claro que não.


Desde logo destacamos que não somos defensores ferrenhos do "promotor investigador'", senão que após uma longa e exaustiva análise dos argumentos contrários e favoráveis aos modelos de promotor investigador, juiz instrutor e investigação policial, concluimos que o modelo é o 'menos problemático' e, por isso, é uma tendência mundial, pois mais facilmente contornáveis seus inconvenientes. No modelo brasileiro (e nesse espaço obviamente não conseguimos externar, mas está na obraInvestigação preliminar, publicada pela Editora Saraiva), afirmamos uma tendência nessa linha e desvelamos a crise do inquérito policial.


O ponto crucial é compreender a importância da possibilidade da coexistência: podemos ter uma investigação policial em que excepcionalmente se admita o promotor investigador. Isso não significa o ‘fim do delegado de polícia’, como apressadamente (e reducionistamente) alguns gritarão. Nada disso! A polícia judiciária (desde que a serviço do poder judiciário...) é absolutamente imprescindível e nenhum país do mundo (independente do sistema de investigação adotado) jamais dela prescindiu.


Mas o ponto nevrálgico é: muito mais importante do que definir quem investiga, é definir como será a investigação.


Aqui reside nossa inconformidade: muito mais importante do que decidir quem vai fazer a inquisição (MP ou Polícia), está em definir como será a inquisição, sempre mantendo o juiz — obviamente — bem longe de qualquer iniciativa investigatória.


A discussão em torno da autoridade encarregada é reducionista e minimalista, pois deixa de lado aspectos verdadeiramente fundamentais, tais como:


1. Definir a função do juiz na investigação, bem como sua esfera de atuação. Deverá ter uma postura ativa, mas não como inquisidor (ou investigador, o que significa a mesma coisa), mas sim como garantidor da máxima eficácia dos direitos fundamentais do imputado, sempre pronto para, mediante invocação da defesa, fazer cessar ou impor limites ao (ab)uso do poder investigatório do Ministério Público (ou da polícia).


2. Repensar a prevenção, pois é óbvio que ela deve ser uma causa de exclusão da competência (e não de fixação como temos hoje), pois em nenhum caso esse juiz da fase pré-processual poderá ser o mesmo que irá instruir e julgar o processo. Juiz prevento é juiz contaminado e, pois, jamais poderá julgar. Essa é a lição de mais de 20 anos de jurisprudência do Tribunal Europeu de Direitos Humanos.


3. Definir claramente o controle externo da atividade policial (talvez através das instruções gerais e específicas), que continua um ilustre desconhecido no Brasil (que policia judiciária é essa que não está subordinada ao Poder Judiciário ou ao Ministério Público?).


4. Jamais poderá se admitir que medidas restritivas de direitos fundamentais (prisões cautelares, busca e apreensão, interceptações telefônicas, etc.) sejam empregadas pelo investigador sem prévia autorização judicial. Tampouco é admissível, à luz do constitucional sistema acusatório, que o juiz o faça de ofício.


5. É fundamental definir o objeto da investigação preliminar e os limites da cognição, para termos uma fase pré-processual verdadeiramente sumária (e jamais plenária, como se converteu na prática).


6. Definir o prazo máximo da investigação preliminar adotando uma resolução ficta quando superado o limite (CPP paraguaio) ou uma pena de inutilidade (inutilizzabilità do sistema italiano) dos atos praticados após o término do prazo legal. Nessa matéria, de nada serve a definição de um prazo sem a correspondente sanção processual pela violação.


7. Determinar a situação jurídica do sujeito passivo, bem como a necessária incidência do contraditório e do direito de defesa, diante da inafastável aplicação do art. 5°, LV da Constituição na investigação preliminar. É imprescindível responder aos seguintes questionamentos: A partir de que momento alguém deve ser considerado como sujeito passivo? Que circunstâncias devem concorrer para que se produza a situação de imputado? De que forma se deve formalizar essa situação? Que conseqüências endoprocedimentais produz o indiciamento? Que cargas assume o sujeito passivo? Que direitos lhe correspondem?


8. Adotar o sistema de exclusão física dos autos da investigação de dentro do processo, excetuando-se as provas técnicas e aquelas produzidas no respectivo incidente judicializado de produção antecipada de provas. Isso significa fortalecer a sumariedade da cognição (limitada ao fumus commissi delicti) e a função endoprocedimental dos atos de investigação. Mas, principalmente, acaba com o absurdo das sentenças condenatórias baseadas no “cotejo” como os elementos do inquérito. Ainda que a sentença não indique, é inegável a contaminação do julgador por esses elementos colhidos na fase inquisitorial. Sem mencionar o Tribunal do Júri, onde os leigos julgam de capa a capa (e mesmo fora da capa...) e sem fundamentar.


9. Definir o alcance do segredo (interno e externo) da investigação, bem como sua duração e requisitos para decretação. O artigo 20 do CPP não regula absolutamente nada e, o pouco que diz, não resiste a uma filtragem constitucional. A questão assume uma relevância ainda maior na medida em que alguns tribunais, equivocadamente, estão vedando o acesso de advogados aos autos de inquérito policial, em flagrante violação ao disposto na Lei 8.906 e no artigo 5°, LV da Constituição.


10. Prever os requisitos e a forma como será realizado o incidente de produção antecipada de provas, respeitando as categorias jurídicas próprias do processo penal (diante da evidente inadequação das analogias com o processo civil).


Essas são questões muito mais relevantes e que deixam em segundo plano a rasteira discussão em torno da autoridade encarregada da investigação.


Enfim, é preocupante o reducionismo da discussão, que deixa de lado questões muito mais graves do que definir quem será o inquisidor.


O problema está na própria inquisição. Mudem ou mantenham os inquisidores, pois a fogueira continuará acesa.


E agora, como colocar tudo isso em um cartaz?



*Aury Lopes Jr é doutor em Direito Processual Penal, professor Titular de Direito Processual Penal da PUC-RS e professor Titular no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais, Mestrado e Doutorado da PUC-RS.



FONTE: Revista Consultor Jurídico, 28 de junho de 2013