sábado, 29 de setembro de 2012

RUBENS CASARA: STF E AÇÃO PENAL 470

Rubens Casara: “Risco da tentação populista é produzir decisões casuísticas”

publicado em 25 de setembro de 2012 às 17:20
por Conceição Lemes

Nesta segunda-feira 23, o julgamento da Ação Penal 470, o chamado mensalão entrou na nona semana. Muitos juristas o acompanham com preocupação. Alegam que princípios de respeito às garantias fundamentais, como “o ônus da prova cabe à acusação” e “não se pode condenar alguém com base em presunções”, estariam sendo deixados de lado.

“A Ação Penal 470 ilustra bem a encruzilhada em que se encontra o Poder Judiciário. O risco da tentação populista é que passe a produzir decisões casuísticas, para atender às expectativas do que é vendido pelos meios de comunicação como opinião pública”, observa Rubens Casara. “Isso é grave, pois princípios e teorias forjados durante a caminhada da Humanidade acabam esquecidos ou afastados para a produção de decisões direcionadas a dar essa resposta simbólica à sociedade.”

Esse risco aumenta quando as decisões casuísticas são produzidas pela maior Corte de Justiça do Brasil, como na Ação Penal 470, embora não sejam exclusividade dela.

“Acaba virando jurisprudência, pois as cortes inferiores tendem a reproduzí-las”, prossegue Casara. “Esse fenômeno o professor e ministro da Corte Suprema da Argentina Raul Zafaroni chama de comodismo crônico.”

“Ao se espalharem por todo o Judiciário, as teses do STF na Ação Penal 470 acabarão atingindo os cidadãos comuns”, adverte Casara. “São os ‘clientes’ preferenciais do nosso sistema penal que privilegia os que têm posses e condena os sem condição financeira.”

Rubens Casara é juiz da 43ª Vara Criminal do Rio de Janeiro e professor de Direito Penal da Faculdade de Direito Ibmec/RJ. Porém, nesta entrevista ao Viomundo, ele fala a partir de sua percepção como pesquisador do autoritarismo no sistema de justiça criminal.

Segue a íntegra da nossa entrevista:

Viomundo – Qual a sua percepção do julgamento da Ação Penal 470 até o momento?

 Rubens Casara – Antes, um parêntese. O Estatuto da Magistratura, que é uma lei cunhada em período autoritário, impede que os juízes se manifestem sobre casos em julgamento. Portanto, falo em tese, em especial a partir do que tenho observado na mídia, em minhas pesquisas e como professor de Direito Processual Penal.

Sobre a sua pergunta, a minha percepção é de que a Ação Penal 470, que a grande mídia chama de “julgamento do mensalão”, ilustra bem a encruzilhada em que se encontra o Poder Judiciário.

De um lado, sua origem aristocrática; um poder conservador, distante do povo, comprometido com quem detém o poder e o capital, e que historicamente sempre foi utilizado para manutenção do status quo, ou seja, como obstáculo à transformação social. Não se pode esquecer que, para parcela considerável dos que sempre detiveram o poder econômico e político,  o chamado “caso do mensalão” passou a ser encarado como espécie de vingança pelas derrotas eleitorais impostas pelo Partido dos Trabalhadores.

De outro lado, uma tendência que tem sido chamada de “tentação populista”.  Ela se traduz em decisões que buscam agradar a opinião pública, que muitas vezes não passa da opinião publicada pelas grandes corporações que controlam os principais meios de comunicação de massa.

Agora, a tensão entre a origem aristocrática e essa tendência populista está presente em vários julgamentos e não só na Ação Penal nº 470. De igual sorte, existem no seio do Poder Judiciário muitos conflitos, que por vezes permanecem velados.

Enfim, a magistratura é plural, diversas ideologias se fazem presentes. Existem, por exemplo, magistrados que atuam a partir de uma epistemologia e de um instrumental autoritário e outros que adotam posturas e modelos adequados à democracia.

Viomundo — Qual o risco dessa tentação populista?

Rubens Casara – É que as decisões passem a ser produzidas ad hoc.

Viomundo – O que significa?

Rubens Casara – São decisões casuísticas, formuladas para atender às expectativas do que é vendido pelos meios de comunicação de massa como opinião pública. Quando isso acontece é grave, pois princípios e teorias que existem para assegurar o respeito aos direitos e garantias fundamentais, que são conquistas de todos, forjados durante a caminhada da Humanidade, acabam esquecidos ou afastados para a produção de decisões direcionadas a dar respostas simbólicas à sociedade.

Os direitos e garantias fundamentais sempre foram trunfos contra maiorias de ocasião, limites à opressão estatal, o que, em última análise, caracteriza o Estado Democrático de Direito. Só há democracia, em seu sentido substancial, se os direitos e garantias fundamentais são respeitados. Decisões judiciais que afastam, relativizam ou violam os direitos e garantias fundamentais corporificam, portanto, sérias ameaças ao Estado Democrático de Direito.

Viomundo — O que a Ação Penal 470 vai representar mais adiante?

Rubens Casara – Como toda decisão do Supremo Tribunal Federal, a tendência é de que as teses acolhidas durante esse julgamento passem a influenciar a jurisprudência de todos os órgãos do Poder Judiciário. Essa jurisprudência é o que será chamado de legado jurídico desse julgamento.

Se, como sustentam alguns, a Ação Penal nº 470 é um “julgamento de exceção”, uma decisão casuística produzida para agradar parcela da sociedade brasileira, em detrimento de direitos e garantias que normalmente seriam reconhecidos pelo Supremo Tribunal Federal, o risco à democracia é muito grande, uma vez que se está diante de um ato, de ampla repercussão, produzido pela maior Corte de Justiça do Brasil, o Supremo Tribunal Federal (STF).

Viomundo — Por quê?

Rubens Casara — Porque há uma tendência de reprodução, pelas instâncias inferiores, das decisões que são produzidas no Supremo Tribunal Federal. A esse fenômeno, típico da burocratização judicial, o professor e ministro da Corte Suprema da Argentina  Raúl Zaffaroni chama de “comodismo crônico”.

Explico: a melhor maneira de se fazer uma carreira rápida no Judiciário é não contrariar a opinião daqueles que têm o poder de anular ou reformar as suas decisões. Os juízes reproduzem as decisões dos seus tribunais e dos tribunais superiores para não terem dores de cabeça na carreira, serem aceitos na classe e conseguirem promoções.

Assim, se, por exemplo, o Supremo Tribunal Federal adotar as teses da “inversão do ônus da prova em matéria penal” ou da “possibilidade de condenação a partir de presunções contrárias aos réus”, estaremos dando passos vigorosos em direção ao Estado Penal.

Por quê?  Porque essas teses estão em franca oposição ao princípio constitucional da presunção de inocência, e o Supremo deixará de atuar como garantidor dos direitos e garantias fundamentais.

Se, de fato, isso acontecer, essas teses vão ser reproduzidas e acolhidas em outros casos a serem julgados por diversos juízes e tribunas brasileiros. A porta para os decisionismos e as perversões inquisitoriais estará aberta.

Viomundo — Isso significa que as teses aceitas pelo STF na Ação Penal 470 acabarão atingindo os cidadãos comuns?

Rubens Casara — Com certeza. São os ‘clientes’ preferenciais do nosso sistema penal que privilegia os que têm posses e condena os sem condição financeira.

Viomundo – Em função do julgamento, juristas têm usado muito a expressão “atos de ofício”. O que significa exatamente?

Rubens Casara – Atos de ofício do juiz são os produzidos sem a provocação de qualquer das partes. Eles se originam da tradição inquisitorial. No sistema processual inquisitivo, o juiz acusava, produzia as provas e, depois, também julgava a pessoa a quem ele já tinha atribuído a prática de um delito.

E qual é o risco dessa atuação de ofício?  O fenômeno que o professor italiano Franco Cordero chama de “primado da hipótese sobre fato”.

O que é esse primado da hipótese sobre o fato? O juiz assume a hipótese da acusação como verdadeira e passa o processo tentando demonstrar que está correto. Essa atuação de ofício traduz uma antecipação de seu julgamento, consubstanciada na aceitação da hipótese a partir da qual orienta a sua busca.

O problema é que, ao partir de uma hipótese falsa, o julgador que adota essa postura inquisitorial, não raro, chega a uma conclusão falsa, mas que ele acredita ser verdadeira, mais precisamente, chega a uma “verdade” que ele construiu, a partir do senso comum ou de distorções, por vezes inconscientes, do próprio conjunto probatório.

Isso compromete a imparcialidade, ou seja, viola a equidistância que o julgador deve manter das versões postas pelas partes. Isso acaba por levar ao que Cordero chamou de “quadro mental paranoico”, já que o juiz decide antes, ao assumir como verdadeira a hipótese da acusação, e, depois, sai em busca de material probatório para “confirmar” essa sua versão.

Viomundo – É um risco da Ação Penal 470?

Rubens Casara – É um risco de todos os processos nos quais o juiz quer assumir o protagonismo probatório. Ele pratica atos de ofício na tentativa de demonstrar a veracidade da hipótese que aceitou como verdadeira. Não comprovar essa versão significa fracassar e ninguém gosta de fracassar.

Há uma discussão muito grande sobre essa questão na doutrina brasileira. Há quem defenda a possibilidade do juiz produzir provas de ofício, mas há excelentes autores que dizem que não, que a gestão da prova deve permanecer com as partes.

A inércia do juiz seria, então, uma garantia de sua imparcialidade.

Eu prefiro essa segunda corrente que defende que o juiz, na medida do possível, deve ficar equidistante das versões das partes. Ele deve receber as provas da acusação e da defesa, para, no final, julgar a partir do conjunto probatório produzido dialeticamente pelas partes.

Viomundo – O ministro Joaquim Barbosa estaria assumindo o protagonismo probatório?

Rubens Casara – Na atuação do ministro Joaquim Barbosa, que vem dos quadros do Ministério Público, órgão constitucionalmente encarregado de formular hipóteses e produzir provas que a confirmem, muitos enxergam essa tendência inquisitorial.

Confesso que não estudei a fundo as decisões desse ministro, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, que será o futuro presidente do Supremo Tribunal Federal.

Para além do que a mídia noticia, não conheço a atuação do Ministro Joaquim Barbosa.

Veja bem. Existem leis infraconstitucionais que autorizam a produção probatória pelo juiz. A questão é saber se essas leis são adequadas ou não à Constituição da República. Uma lei infraconstitucional contrária à Constituição é imprestável e não deve ser aplicada.

O ideal, portanto, é o modelo em que cabe ao juiz julgar, ao acusador formular e provar a acusação e ao defensor a missão de defender o acusado. O ideal é que o juiz não participe da produção probatória. O ato de produzir provas é inerente à atividade de acusar e de defender.  Na verdade, um ônus de quem formula a acusação, porque no processo penal brasileiro a carga probatória é toda do acusador. A defesa não precisa provar nada, desde que a acusação fracasse na sua missão de comprovar os fatos que constituem a acusação.

No modelo brasileiro, o ônus da prova – aquele que tem o dever de fazer prova e vai arcar com as conseqüências de não provar – é da acusação. Se o acusador não consegue provar sua hipótese, o réu tem de ser absolvido. É a dimensão probatória do princípio da presunção de inocência, o que se expressa na máxima in dubio pro reo.

Então, o juiz que assume o protagonismo probatório, o juiz-inquisidor, é uma figura historicamente vinculada ao modelo inquisitivo, que não é a opção constitucional feita em 1988 nem a da maioria dos Estados democráticos.

Viomundo – O modelo inquisitorial surgiu quando?

Rubens Casara – Do ponto de vista histórico, ele é posterior ao modelo acusatório que já existia no regime ateniense. O sistema inquisitivo surge no século XIII e se torna hegemônico na Europa continental até o século XVIII, momento em que tem início a sua decadência. Curioso notar que o sistema inquisitivo nasce em uma quadra histórica na qual se busca o fortalecimento do Estado, mas ainda hoje é possível perceber sintomas desse sistema nas mais diversas legislações.

Viomundo – No julgamento do AP 470, tem se falado em inversão do ônus da prova, flexibilização de conceitos jurídicos, condenação a partir de presunções, indícios…  Como é que fica a situação, professor?

Rubens Casara — Indício é uma prova indireta. Indícios são fatos efetivamente provados que permitem, por dedução, a certeza acerca de outro fato que se quer provar.  No nosso modelo processual, é possível uma condenação com base em indícios, desde que eles sejam capazes de demonstrar cabalmente a ocorrência dos fatos descritos na denúncia. Esse não é o problema.

Por outro lado, os demais fenômenos que você menciona representam sérios riscos a uma concepção minimamente democrática de justiça penal, conforme já mencionei. Da mesma maneira, a possibilidade de uma decisão ad hoc, voltada à satisfação dos meios de comunicação de massa e de maiorias de ocasião forjadas na desinformação, representa um risco ao Estado de Direito.   

Por quê? Porque o Poder Judiciário tem como sua principal característica o fato de ser contramajoritário. Ou seja, ao contrário do Legislativo e do Executivo, que dependem da votação popular, o Judiciário tem o dever de julgar contra as maiorias, desde que isso seja necessário para preservar os direitos fundamentais das minorias ou de um único cidadão. Existem limites ao exercício do poder que, mesmo impopulares, devem ser respeitados.

Isso significa que se, para respeitar os direitos fundamentais do Fernandinho Beira-Mar ou do José Dirceu, o magistrado tiver que desagradar toda a opinião pública, ele tem que fazer isso. O Judiciário é, ou deveria ser o garantidor dos direitos fundamentais, dos direitos inerentes à condição humana.

Sempre que o Judiciário cede àquilo que, no início, chamei de “tentação populista”, ele se aproxima da atuação do Executivo e do Legislativo e, portanto, torna-se desnecessário. O Judiciário só se justifica para assegurar a concretização do projeto constitucional e, para tanto, deve, ou deveria, atuar como garantia dos direitos fundamentais de cada indivíduo, criminosos ou não, inclusive aqueles selecionados pela grande mídia para figurar como inimigos públicos da sociedade.

Viomundo – Por exemplo…

Rubens Casara — Vamos imaginar uma sociedade racista. Se o Poder Judiciário não for contramajoritário, as decisões vão ser racistas.

Numa sociedade sexista, se o Poder Judiciário não for contramajoritário, as decisões vão ser sexistas. Numa sociedade  homofóbica, as decisões vão ser homofóbicas…

Cabe ao Judiciário impor limites aos desejos e perversões das maiorias.

Acho importante também frisar que os juízes, como todo mundo, estão inseridos em uma tradição que acaba por condicionar suas decisões. O problema no Brasil é que essa tradição é extremamente autoritária. As pessoas recorrem ao sistema de justiça criminal para resolver os mais diversos problemas. Acreditam no uso da força para solucioná-los. Problemas sociais ou políticos, por exemplo, são desqualificados, descontextualizados e redefinidos como se fossem meros casos de polícia a serem resolvidos no sistema de justiça criminal.

A sociedade brasileira é autoritária. A ausência de rupturas históricas talvez explique porque ainda hoje práticas típicas da ditadura, como a relativização de direitos fundamentais, são naturalizadas. E essa natureza autoritária acaba repercutindo em todas as decisões judiciais — da primeira instância à Suprema Corte.

Viomundo – O ônus da prova cabe à acusação…

Rubens Casara – Nos modelos democráticos!!!

Viomundo – A partir do momento em que o Judiciário inverte esse papel, qual o risco para a sociedade?

Rubens Casara — A inversão do ônus da prova em matéria penal é um sintoma nítido da ausência de uma cultura democrática na sociedade brasileira. Em nome de uma maior eficiência dos órgãos encarregados da repressão penal, da busca por um maior número de condenações, direitos e garantias previstas na Constituição da República são negados, e a sociedade brasileira assiste a tudo isso calada  porque se acostumou com o autoritarismo.

A naturalização de posturas autoritárias impede a criação de uma cultura verdadeiramente democrática, de respeito aos diretos fundamentais.

Nós, por vezes, aplaudimos atos de autoritarismo. Há quem bata palmas para condenações desassociadas de um suporte probatório robusto e confiável, conforme os meios de comunicação de massa têm noticiado. Há também quem concorde com a inversão do ônus da prova em matéria penal, sem perceber que isso representa um risco à própria ideia de democracia processual.

Viomundo — Por quê?

Rubens Casara — Por que o ônus da prova cabe ao Ministério Público? Porque o Ministério Público é o Estado-Administração, a parte que tem as melhores condições de provar as hipóteses que formula. O acusado é, nessa relação, a parte mais fraca. Por mais poderoso que o acusado seja, do outro lado está o Estado, o Leviatã, com sua estrutura e recursos.

Essa é a dimensão probatória do princípio da presunção da inocência. Se o indivíduo deve ser tratado como se inocente fosse, cabe ao Estado afastar essa presunção, a única admitida, no Estado de Direito, em matéria penal.

O sistema processual penal, como instrumento de tutela da liberdade, permite constatar que ao Estado também não interessa, e não deveria interessar aos seus agentes, a condenação de um possível inocente, mesmo diante do risco da absolvição de um culpado. Ao réu, basta a dúvida, que impõe, por força da Constituição, a absolvição.

Ao adotar o princípio da presunção de inocência e atribuir ao acusador o ônus de provar a materialidade e a autoria dos delitos que o Estado pretende punir, o legislador constituinte faz uma opção política que implica no reconhecimento de que alguns culpados vão acabar absolvidos, mas que isso é melhor do que condenar pessoas que podem ser inocentes.

Diante desse quadro, o processo penal funciona e só se legitima como garantia contra a opressão estatal.

Assim, se o Estado quer punir quem pratica uma ilegalidade, ele tem de demonstrar, de forma cabal, respeitados o devido processo legal e os demais limites éticos e legais, que o acusado praticou um delito.

Não se pode presumir que alguém é culpado, por exemplo, que determinada pessoa é “o chefe da quadrilha”, a não ser que exista prova concreta, segura e suficiente da existência e da autoria do crime narrado na denúncia pelo acusador.

Para alguém ser condenado, o Estado tem de afastar qualquer dúvida razoável.  Do contrário, fica-se muito próximo do existia no modelo fascista italiano, no nazista alemão e no da extinta União Soviética. Ninguém pode ser punido pelo que é, por ser antipático ou desagradar aos detentores do poder, mas somente por aquilo que se demonstra que ele fez.

Viomundo – Por que a ideia de atribuir o ônus da prova ao Ministério Público, portanto ao Estado?

 Rubens Casara — Para preservar o indivíduo da fúria persecutória do Estado, respeitando-o como sujeito de direitos. Busca-se também evitar que se onere em demasia a parte mais fraca da relação processual.

Sob o prisma processual, somente a acusação é que alega a ocorrência de um delito, atribuindo-o  ao réu. A opção do nosso sistema é de que ao réu sempre se atribuirá o benefício da dúvida, devendo a outra parte, o Ministério Público, diante das prerrogativas e poderes que têm, comprovar o que alegou na denúncia.

No Brasil, nós temos uma visão simplista de achar que só quem responde a processo criminal é bandido e que “bandido bom é bandido sem direitos”.

Isso é falso. Tem pessoas com a ficha limpíssima que praticaram uma enorme quantidade de crimes, enquanto outras, que respondem a vários processos, são inocentes e podem acabar condenadas. O sistema penal é seletivo, de todos aqueles que praticam crimes, poucos acabam julgados; e nem todos que são julgados praticaram crimes.

O desafio é garantir os direitos fundamentais a todos que respondam a processos criminais, sejam eles inocentes ou culpados. Isso é que nos faz humanos e qualifica o processo penal como um instrumento racional de garantia dos direitos. O Estado, durante o processo criminal, não pode violar direitos ou garantias do acusado, sob pena de perder a superioridade ética que o distingue dos criminosos.

E se é para desrespeitar os direitos fundamentais, não precisaríamos do processo penal, nem do Judiciário. Bastava prender a pessoa, colocá-la na cadeia, tirando-a do convívio social, sem maiores justificativas. Insisto: o Judiciário existe para garantir os direitos fundamentais de todos.

Viomundo – Diz-se que o Supremo está sendo pressionado até pela mídia no julgamento do mensalão. O que acha?

Rubens Casara – A influência midiática está intimamente ligada ao que chamei, para utilizar um termo cunhado por Garapon, de “tentação populista”.  O populismo penal, aliás, toda forma de populismo, incorporado pelos tribunais — eu não estou falando especificamente da Ação Penal 470 — é um risco para a sociedade.

Agora, é um risco esperado. Numa sociedade do espetáculo não é estranho que o Judiciário queira chamar atenção para si e reproduzir o que já acontece em outras esferas, transformando-se num judiciário espetacular. Cada juiz também quer aparecer bem no espetáculo.

Não causa surpresa, portanto, que o Poder Judiciário, do primeiro grau até os tribunais superiores, procure agradar aos meios de comunicação de massa através de decisões, ainda que contrárias à Constituição da República.

Percebe-se que a esquerda tem uma culpa tremenda no atual quadro, porque nunca deu importância ao Judiciário, sempre o considerou como um mero instrumento de opressão e de manutenção das estruturas sociais.

Acontece que no Estado Democrático de Direito o Judiciário é fundamental à garantia dos direitos e à concretização do projeto constitucional.

E o que fez o Partido dos Trabalhadores em relação ao Poder Judiciário? Contribuiu para uma composição conservadora do órgão de cúpula do Poder Judiciário brasileiro.

O exemplo do Supremo Tribunal Federal é emblemático: foram indicados para ministros, salvo raras exceções, pessoas conservadoras, sem compromissos com uma visão progressista de Estado, alguns ligados a setores conservadores da Igreja Católica ou a políticos historicamente contrários às lutas do próprio Partido dos Trabalhadores.

Em suma, perdeu a rara oportunidade de promover uma verdadeira revolução democrática no Poder Judiciário brasileiro. Vale registrar, por oportuno, que os movimentos sociais e os setores mais progressistas da sociedade civil sequer foram ouvidos por ocasião das escolhas.

Há um mito de que os juízes devem ser neutros. Isso não existe. Sob o discurso da neutralidade e da técnica, juízes praticam, e sempre praticaram, atos políticos a partir de suas visões de mundo. A extradição de Olga Benário, grávida de Anita Prestes, para os nazistas que a mataram, por exemplo, foi promovida a partir de uma decisão política travestida da melhor técnica processual no Supremo Tribunal Federal. Aliás, há um pouco de Eichmann em todos esses magistrados que se afirmam neutros e meramente técnicos.

Acho que, diante dos últimos acontecimentos, a própria esquerda que está no governo federal acabará se conscientizando da necessidade de se pensar o Poder Judiciário, de se criarem mecanismos de efetivo controle popular e de se promoverem indicações para os tribunais superiores de pessoas comprometidas com o projeto constitucional de vida digna para todos, para além dos projetos pessoais de poder.

Leia também:


LEI SOBRE O CRIME DE EXTERMÍNIO DE SERES HUMANOS

Presidência da República
Casa Civil
Subchefia para Assuntos Jurídicos

Dispõe sobre o crime de extermínio de seres humanos; altera o Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal; e dá outras providências.

A PRESIDENTA DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei: 
Art. 1o  Esta Lei altera o Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, para dispor sobre os crimes praticados por grupos de extermínio ou milícias privadas. 
Art. 2o  O art. 121 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, passa a vigorar acrescido do seguinte § 6o
“Art. 121.  ......................................................................
.............................................................................................. 
§ 6o  A pena é aumentada de 1/3 (um terço) até a metade se o crime for praticado por milícia privada, sob o pretexto de prestação de serviço de segurança, ou por grupo de extermínio.” (NR) 
Art. 3o  O § 7o do art. 129 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, passa a vigorar com a seguinte redação: 
“Art. 129.  ......................................................................
.............................................................................................. 
§ 7o  Aumenta-se a pena de 1/3 (um terço) se ocorrer qualquer das hipóteses dos §§ 4o e 6o do art. 121 deste Código.
....................................................................................” (NR) 
Art. 4o  O Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, passa a vigorar acrescido do seguinte art. 288-A: 
“Constituição de milícia privada 
Art. 288-A.  Constituir, organizar, integrar, manter ou custear organização paramilitar, milícia particular, grupo ou esquadrão com a finalidade de praticar qualquer dos crimes previstos neste Código: 
Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos.” 
Art. 5o  Esta Lei entra vigor na data de sua publicação. 
Brasília, 27 de setembro de 2012; 191o da Independência e 124o da República.
DILMA ROUSSEFFJosé Eduardo Cardozo
Maria do Rosário Nunes
Este texto não substitui o publicado no DOU de 28.9.2012

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

STF E O FOCO DO MOVIMENTO PUNITIVISTA

Nova Doutrina

Para criminalistas, STF aderiu ao direito penal máximo


O Supremo Tribunal Federal mudou para julgar o mensalão ou o mensalão mudou o Supremo? Os ministros da corte negam, mas os advogados criminalistas não hesitam em afirmar: o tribunal mudou seus paradigmas para condenar os réus da Ação Penal 470, o processo do mensalão. Levados por irresistível corrente condenatória, afirmam os advogados, os ministros optaram por um retrocesso em que se atropelaram princípios constitucionais construídos ao longo dos últimos anos.

Para o procurador de Justiça Lenio Streck, em um primeiro momento, é possível reconhecer razão aos advogados que entendem haver um retrocesso em relação a posições consolidadas pela jurisprudência do STF, na medida em que há um endurecimento por parte do Tribunal no julgamento de determinadas condutas. Todavia, lembra o jurista que novos tempos podem exigir novas respostas por parte do Judiciário.

A grande questão que se coloca, então, é saber se esse endurecimento se mostra necessário em face do tipo de criminalidade que é objeto de julgamento. Nesse caso, a alteração de rota na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal deve ser analisada no contexto da resposta que o Judiciário deve dar à sociedade. Parece estar havendo uma accountabillity do STF em face de uma certa demanda contra a impunidade. Se isso é bom ou ruim, é uma coisa que teremos que avaliar. Para o jurista "o grande problema é que a doutrina tem sido pouco ouvida. Talvez, por isso, esteja sendo pega de surpresa". Em arremate, indaga: "Não está na hora de a doutrina se tornar protagonista?".

Ainda não se sabe o quanto a releitura das regras penais afetará, doravante, a forma de aplicar Justiça no país. Mas a partir do momento em que a tipicidade de um delito deixa de ser rigorosamente exigida para a condenação, o STF fixa um novo paradigma regulatório. Mais: ao admitir o ato de ofício presumido e adotar o “domínio do fato” como responsabilidade objetiva, os ministros teriam se aproximado, perigosamente do direito penal de autor. Ou seja: admitir-se que alguém possa ser punido pelo que é, e não pelo que fez.

Críticas igualmente eloquentes são feitas à redefinição do que seja a lavagem de dinheiro — que para o ministro Joaquim Barbosa parece prescindir de crime antecedente. Ou, ainda, que qualquer uso que se dê a verbas de origem ilícita configure lavagem. Os mais pessimistas, em seu desapontamento com a doutrina que se insinua, anunciam o fim do garantismo, o rebaixamento do direito de defesa e o avanço da noção da presunção de culpa em vez de inocência.

Tristeza cívica

O ex-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil nacional e da seccional paulista José Roberto Batochio lamenta o movimento. "É tomado de tristeza cívica que assisto se perderem valores tão caros às liberdades no vórtice desse movimento punitivo sem limites que a tudo arrasta."
 
Um criminalista ouvido pela reportagem da revista Consultor Jurídico, mas que preferiu não ser identificado, afirma que o problema legal trazido pelo julgamento do mensalão é "objetivamente a questão do acavalamento de delitos". O maior problema, diz, não está nem dentro da Ação Penal 470 , mas no futuro. "No curso dessa ação penal, é observada uma sobreposição de crimes em relação a um mesmíssimo fato. O grande dilema e herança negativa do julgamento talvez venha a ser a ausência de definição dos elementos nucleares em cada um dos crimes. Onde acaba a corrupção e onde começa a lavagem?", questiona. Para o criminalista, não se nega a possibilidade de que os crimes tenham sido cometidos simultaneamente, "mas é necessário mostrar como eles se distinguem".

O advogado afirmou também que, com a sobreposição de imputações, é colocada em dúvida a própria "identidade" do crime de lavagem de dinheiro. "Quem se corrompeu e recebeu dinheiro tem que ir para a cadeia porque é corrupto, e não por ter lavado dinheiro. O ladrão que rouba um banco, leva a quantia para casa e a dissipa não está lavando dinheiro", disse o criminalista.

Lavagem culposa

Para o advogado, a forma como os ministros passaram a interpretar as imputações por lavagem pode dar margem para se acusar de lavagem de dinheiro qualquer crime em que valores ilícitos não sejam declarados ao fisco. "Quando não se distinguem elementos nucleares de cada ação humana, corre-se o risco de entender que aquilo que deveria ser apenas um crime de sonegação fiscal, praticado no âmbito da empresa, pode se tornar facilmente uma espécie de 'três em um'. Isto é, com a ampliação interpretativa de organizações criminosas, sendo a sonegação fiscal – o caixa dois – o antecedente de lavagem, é muito provável que tenhamos todas as três imputações presentes: sonegação, formação de quadrilha e lavagem", observou.
 
Essa "nova interpretação", no entendimento do advogado Luciano Feldens, professor de Direito Penal da PUC-RS e advogado de Duda Mendonça, forçaria um acusado de corrupção a declarar o dinheiro ilícito."Sob uma perspectiva teórica e transcendente a qualquer caso específico, há uma questão fundamental que não pode passar despercebida no debate sobre o delito de lavagem de capitais: "gastar" dinheiro sujo não equilave a "lavar" dinheiro. A lavagem, enquanto delito, exige, por imposição do tipo penal, um processo de ocultação e dissimulação da origem do dinheiro ilicitamente havido, em ordem não apenas a recolocá-lo no sistema econômico-financeiro, mas a recolocá-lo em tal ambiente com nítida aparência de haver sido licitamente auferido. Do contrário — ou seja, se compreendermos a simples utilização (gasto) do dinheiro como conduta abraçada pelo tipo penal —, só não haveria o delito de lavagem de dinheiro quando o agente, em paradoxal atitude, declarasse ao Estado o dinheiro oriundo do crime antecedente (corrupção, sonegação, roubo, sequestro, etc)".

Ele avalia também que a eventual influência da ampliação do entendimento do que é crime de lavagem pode se estender à fase de investigações. "Fica muito fácil, pelo menos no inquérito policial, afirmar que se está investigando sonegação fiscal e também quadrilha, porque o corpo diretivo da empresa é composto por mais de três pessoas, e também lavagem, porque a quantia foi ocultada", aponta.

Outros criminalistas ouvidos pela ConJur concordam com a avaliação de mudança de interpretação do STF na distinção do dolo entre imputações distintas nos crimes de corrupção. "O próprio ministro Ricardo Lewandowski [revisor do julgamento] afirmou que não concebia dolo eventual no crime de lavagem de dinheiro, que é um crime doloso, como já havia reiterado o ministro Cezar Peluso em seu derradeiro voto ao se despedir da corte”, disse um deles. Um outro criminalista observa que, deste modo, os ministros “estão criando a figura da lavagem culposa ao aplicar a teoria da cegueira deliberada sem que se observe limites ou restrições”.

Os advogados ouvidos pela reportagem consideram ainda que o STF estaria indo além de decidir que o fato de ocultar a origem do dinheiro caracteriza por si crime de lavagem. “Ao não depositar a quantia em conta de sua titularidade, o réu já estaria procedendo com a ocultação. Isto é, a ausência de consignação que indique que o dinheiro pertence ao réu, além de mostrar que o valor é ilícito, constitui também lavagem”, aponta um dos advogados. “Em outras palavras, a confissão está se tornando obrigatória”.

Como resumiu o criminalista Celso Vilardi, "a lavagem firmada no STF é lavagem jabuticaba: só existe no Brasil". "A era Pertence, prestigiada mesmo depois de sua aposentadoria pelos inúmeros precedentes incentivados pelo ministro Gilmar Mendes, acabou", lamentou.

Segundo Marcelo Leonardo, advogado do publicitário Marcos Valério e professor de Direito Processual Penal da UFMG, "é lamentável o STF abrir mão das garantias constitucionais do devido processo legal e do contraditório para se submeter ao "Direito Penal da mídia", que não se preocupa com os princípios da reserva legal e da taxatividade tão relevantes para o Direito Penal e o garantismo, conquistas do estado democrático de direito".

Inovação da matéria de fato

O exemplo da condenação do ex-vice-presidente do Banco Rural Vinícius Samarane talvez seja o mais ilustrativo da questão do risco de se incorrer em responsabilidade penal objetiva em relação a alguns dos acusados na numerosa relação de réus da Ação Penal 470. Citada pelos advogados durante a fase de sustentação oral e repudiada em Plenário pelos ministros durante a atual fase do julgamento, a matéria voltou a ser trazida à discussão pelo ministro Ricardo Lewandowski, ao votar pela absolvição de alguns dos réus ligados ao Partido Popular (PP) e ao antigo Partido Liberal (PL).
 
Antes, no julgamento do item anterior, apenas Lewandowski e o ministro Marco Aurélio votaram pela absolvição de Vinícius Samarane. Citaram, justamente, o argumento do risco de se incorrer em responsabilidade penal objetiva. Samarane era diretor estatutário do Banco Rural na época dos acontecimentos descritos pela denúncia e, fora os depoimentos do ex-superintendente do banco Carlos Godinho, que falou que pareceres técnicos em desfavor à concessão dos empréstimos "morriam" na direção estatutária, não há provas diretas de que o réu tenha participado da concessão de empréstimos fraudulentos.

Por dispor, em tese, do chamado “domínio funcional do fato”, decorrente da função que exercia, cabia a Samarane, na visão dos ministros que votaram por sua condenação, ter conhecimento das ilegalidades e até mesmo impedi-las. Na perspectiva da teoria do domínio do fato, cabe avaliar se os crimes ocorreriam independente da presença do réu. Se a resposta for positiva, o réu poderia ser considerado inocente. É o caso, para alguns ministros, da gerente financeira da SMP&B Propaganda Geiza Dias, absolvida por maioria.

"É a teoria do domínio funcional do fato levado além do extremo. Algo que até os mais radicais funcionalistas ficariam supresos com seu alcance nessas condenações lavradas na essência do domínio do fato", disse outro criminalista ouvido pela ConJur na condição de anonimato. "Samarane foi condenado por não ter evitado o fato quando, na condição de diretor, devia e podia tê-lo feito. Mas a denúncia, em nenhum momento, atribui ao réu a conduta de comportamento omissivo", observa. "Isso representaria uma expressiva e inconcebível inovação da matéria de fato. Seria necessário apontar a responsabilidade penal por omissão."

Em artigo publicado na revista Consultor Jurídico, Lenio Streck já havia alertado sobre o problema de se transformar a teoria do domínio do fato em "ponderação", ou "em uma espécie de 'argumento de proporcionalidade ou de razoabilidade', como se fosse uma cláusula aberta, volátil, dúctil".

Para Streck, "há algo de novo no ar" com o julgamento do mensalão. "A parcela da doutrina 'mais advocatícia' do Direito, por assim dizer, está sofrendo um revés", observa. "Não significa que o STF esteja necessariamente inovando, mas o que ocorre é que, ao mudar uma postura, a corte pega a comunidade de surpresa. Os advogados parecem que confiavam em um ‘padrão’ de apreciação e não contaram com um conjunto de circunstâncias que circundaram e que circundam esse case."

Contrapartida desvinculada

O criminalista e professor Luiz Flavio Gomes avalia ainda que a visibilidade do julgamento e a pressão da opinião pública contribuem para que a Ação Penal 470 assuma caráter "heterodoxo"."Teses antigas, consagradas na jurisprudência, estão sendo abandonadas." Pondera que "isso decorre, em grande parte, da pressão midiática. Mas não siginifica que as condenações, até aqui, sejam injustas, que tudo o que o tribunal decidiu até este ponto seja absurdo. Porém, naqueles momentos de zona cinzenta, em que se pode ir para um lado ou outro, o Supremo passou a ir pela pressão pública, acolhendo teses que antes não aceitava".
LFG, como é conhecido, acredita que ainda é cedo para concluir, e que só depois do julgamento da parte política da AP 470 é que será possível fazê-lo.

Ato de ofício

Na questão específica do ato de ofício, observadores do julgamento ouvidos pela ConJur disseram que o entendimento de que cabe dispensar a comprovação do ato de ofício não é uma inovação em si. O tribunal, no julgamento do mensalão, na opinião dos especialistas, dá margem para a interpretação de que não é necessário sequer apontar a vinculação causal entre a vantagem indevida e o ato de ofício. "É uma distorção e transfiguração que se imprime ao tipo penal de corrupção ao dispensar mesmo a simples menção ao ato de ofício", disse um deles.
 
"Não se trata simplesmente de exigir a comprovação da prática concreta do ato de ofício na esfera de atribuições do agente corrompido. No entanto, o Supremo tem acelerado tanto esse julgamento, a ponto de afirmarem que é presincidível, desnecessário, que a denúncia mencione o objeto da barganha da função pública, que motivou a aceitação de uma vantagem indevida", avalia o criminalista. "A vinculação causal, ainda que potencial, entre a vantagem indevida e um ato de ofício é a essência do espírito da norma incriminadora. O que foi dito com todas as letras no Caso Collor, está sendo desdito no atual julgamento", opina.

Mas, na visão do advogado, isso não quer dizer que o Supremo criou uma nova interpretação doutrinária. A tendência, diz, é que o próprio STF rejeite decisões de instâncias inferiores que sigam a linha hoje defendida no julgamento do mensalão. "O próprio Supremo tende a rejeitar, amanhã ou depois, a doutrina que criou para esse caso. Será a confissão sublime e formal que se tratou de um julgamento de exceção. Porém, muitos dos atuais ministros não estarão mais na corte, será um novo tribunal , como uma nova cara e feição."

O advogado Sérgio Renault, ex-secretário da Reforma do Judiciário, trata a mesma dúvida com uma outra ótica: “A questão mais importante a se verificar após o julgamento da Ação Penal 470 é se o novo entendimento do STF se constituirá em nova jurisprudência que será seguida daí por diante ou é um caso pontual, isolado. Se for um caso isolado e se constituir numa exceção, vejo a situação como mais preocupante pois não se deve conceber que o julgamento da mais alta corte do país se dê neste contexto. Se o caso tornar-se uma referência para julgamentos futuros menos mal. Assim, por mais que discordemos, estaremos diante de uma evolução da jurisprudência ou, se quiserem, de um retrocesso mas de qualquer forma de uma processo normal de construção de uma nova jurisprudência”.

Para o advogado Gustavo Teixeira, membro da comissão de Direitos Humanos do Instituto dos Advogados Brasileiros, é preciso fazer uma distinção entre os ministros do Supremo e o tribunal como um todo. "O viés eminentemente teórico dos processos normalmente julgados pela corte em grau de recurso se contrapõe à análise fática que esse julgamento originário exige e com isso as divergências entre ministros ficam mais evidentes. A unanimidade no reconhecimento de teses é muito mais fácil de ser alcançada do que o consenso na admissão de fatos", explica.

"Casos difíceis geram péssimas jurisprudências", pontua Teixeira, torcendo para que os ministros tenham em mente a peculiaridade do presente processo. "A equivocada interpretação de que não há necessidade de crime antecedente para se configurar a lavagem de capitais certamente não irá prevalecer como corrente dominante, sob pena de sepultarmos princípios caros ao nosso Direito Penal."

Nas palavras do advogado Antônio Cláudio Mariz de Oliveira "o Poder Judiciário deverá manter íntegro o princípio da responsabilidade penal subjetiva, pois, do contrário, estará instalada a insegurança jurídica, que alcançará a sociedade, cuja expectativa, hoje, é sempre pela culpa e não pela inocência, esquecendo-se que qualquer de seus membros poderá sentar-se no banco dos réus e que não se faz Justiça apenas quando se condena, mas também quando se absolve".

Rafael Baliardo é repórter da revista Consultor Jurídico em Brasília.

Rodrigo Haidar é editor da revista Consultor Jurídico em Brasília.

Revista Consultor Jurídico, 27 de setembro de 2012

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

NÃO HÁ DOMÍNIO FINAL DO FATO SEM DOLO

Artigos

25 setembro 2012
Teoria Jurídica

Só há domínio final do fato se houver dolo


Nas últimas semanas, em razão da Ação Penal 470 que tramita no STF (Supremo Tribunal Federal) e que foi alcunhada de “mensalão”, muito tem se falado sobre o importante e complexo tema do concurso de pessoas, em especial do conceito de autor e da teoria do domínio final do fato.

Apesar de defender uma acusada no referido processo, não se pretende aqui neste pequeno, mas valioso espaço, defender quem quer que seja, mas, tão somente, esclarecer, através dos principais autores sobre o tema, alguns equívocos que vêm sendo divulgados em nome da citada teoria.

Embora Hans Welzel tivesse falado em 1939 em domínio final do fato, foi o jurista alemão Claus Roxin em obra elaborada para obtenção da Cátedra de Direito Penal da Universidade de Munique, intitulada “Autoria e Domínio do Fato no Direito Penal” publicada pela primeira vez na Alemanha em 1963, o responsável pela elaboração do conceito de domínio final do fato.

Roxin, explica Guilherme José Ferreira da Silva (in Tese de Doutorado apresentada na UFMG), oferecendo um conceito aberto, divide o estudo do domínio final do fato em três perspectivas: a realização do tipo pelas próprias mãos do concorrente —domínio da ação; a configuração da autoria sem intervenção direta na execução do fato, mas através do poder da vontade— domínio da vontade e a contribuição com o atuar alheio configurado a figura central do sucesso do evento — domínio funcional do fato.

Para Nilo Batista (in, Concurso de Agentes: Uma investigação sobre os problemas da autoria e da participação. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2005), sem dúvida o maior estudioso do tema no Brasil, segundo um critério final-objetivo “autor é aquele que, na concreta realização do fato típico, conscientemente o domina mediante o poder de determinar o seu modo, e inclusive, quando possível, de interrompê-lo”. Ensinando, ainda, que “a noção de domínio do fato (Tatherrschaft) é, pois, constituída por uma objetiva disponibilidade da decisão sobre a consumação ou desistência do delito, que deve ser conhecida pelo agente (isto é, dolosa)”. Como bem assevera o professor em sua magnífica obra, a posição de domínio somente pode ser concebível com a intervenção da consciência e vontade do agente. Não podendo, assim, haver domínio do fato sem dolo, compreendido como conhecer e querer os elementos objetivos que compõe o tipo legal.

A ideia básica da teoria do domínio do fato, de acordo com Juarez Cirino dos Santos, é a de que o autor domina a realização do fato típico, controlando a continuidade ou a paralisação da ação típica, enquanto o partícipe não domina a realização do fato típico, não tem controle sobre a continuidade ou paralisação da ação típica.

Embora tenha prevalecido durante muito tempo na doutrina brasileira o conceito restrito ou restritivo de autor (critério formal-objetivo), segundo o qual autor é aquele que realiza a conduta (ação ou omissão) descrita ou expressa pelo verbo típico: o que mata, o que subtrai, o que deixa de socorrer e etc., hoje a teoria do domínio final do fato (critério final-objetivo) vem ganhando cada dia mais adeptos e se consolidando na doutrina e na jurisprudência.

Certo é que o Código Penal brasileiro em seu artigo 29 estabelece que: “Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade.”

Sendo assim, qualquer que seja o conceito ou o critério de definição de autoria, bem como a sua distinção da participação em sentido estrito, é mister salientar que da culpabilidade como princípio —nullum crimen nulla poena sine culpa— , da culpabilidade que tem suas raízes na dignidade da pessoa e na formulação kantiana do homem como fim em si mesmo e, finalmente, da culpabilidade como limitador do poder punitivo estatal não se pode olvidar sob pena de afronta ao Estado que se pretende democrático e direito.

De igual modo, qualquer que seja a teoria adotada a condenação de quem quer que seja somente pode ser alicerçada com base em provas lícitas que passaram pelo crivo do contraditório e do devido processo legal.

Leonardo Isaac Yarochewsky é advogado criminalista e professor de Direito Penal da PUC-Minas.

Revista Consultor Jurídico, 25 de setembro de 2012


Nota do Editor: O Prof. Dr. Leonardo Isaac Yarochewsky é mestre e doutor em direito pela UFMG.

domingo, 23 de setembro de 2012

PROJETO DO NOVO CP RECEBE PROPOSTAS


Mudanças na lei

Projeto do novo Código Penal recebe 10 propostas

Aborto, drogas, discriminação, exploração sexual e crime contra a vida são os temas dos dez projetos de lei que foram apensados ao Projeto do novo Código Penal (Projeto de Lei do Senado 236/2012), entre os dias 18/09 e 20/09. Com relatoria do senador Pedro Taques, o conjunto das propostas foi encaminhado à comissão do Código Penal. Leia abaixoo teor de cada uma delas:

PLS 287/2012, de autoria da senadora Maria do Carmo Alves (DEM-SE). Prevê detenção de três anos para gestante que interrompe ou permite que interrompam  gravidez de feto anencéfalo; e estipula pena de reclusão de três a seis anos caso a interrupção se dê sem o consentimento da gestante. O Supremo Tribunal Federal já decidiu que é constitucional a interrupção de gravidez nesses casos. O projeto da senadora está fadado a ir para o lixo.

PLS 50/2011, de autoria do senador Mozarildo Cavalcanti (PTB-RR). Dispõe que não se pune o aborto no caso de feto com anencefalia, se é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal. Está em consonância com a decisão do STF.

PLS 31/2010, do senado José Neri (PSol-PA), propõe considerar como causa de aumento da pena de homicídio doloso a motivação do delito por discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião, orientação sexual ou procedência nacional.

PLS 225/2004, de autoria do senador Paulo Paim (PT-RS), prevê que nos casos de crime de injúria qualificada pela utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem, condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência, procede-se mediante ação penal pública condicionada à representação do ofendido.

PLS 457/2011, de autoria do senador Pedro Taques (PDT-MT), altera a redação do Código Penal para aumentar as penas previstas no caput do artigo 138, de detenção de seis meses a dois anos e multa, para detenção de um a três anos e multa; no caput do artigo 139, de detenção de três meses a um ano e multa para detenção de três meses a dois anos e multa; no caput do artigo 140, de detenção de um a seis meses ou multa, para detenção de três meses a um ano e multa; e no parágrafo 2º do artigo 140, de detenção de um a seis meses ou multa, para detenção de seis meses a dois anos e multa. Também aumentar a pena quando a injúria for praticada com violência e inclui no parágrafo 3º do artigo 140 elementos de injúria qualificada (raça, cor, etnia, religião, orientação sexual, identidade de gênero, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência). Por fim, acresce no caput do artigo 141 o aumento de pena de um a dois terços dos crimes contra a honra.

PLS 285/2012, de autoria do senador Blairo Maggi (PR-MT),  inclui no crime de tráfico e consumo de drogas ilícitas a compra, aquisição e consumo em local público. Também dispõe que o juiz, para fixar a pena, deve considerar o potencial lesivo à saúde e a quantidade de droga apreendida. Na hipótese de pequena quantidade que permita inferir consumo pessoal, levando-se em consideração a natureza da droga, o local e as circunstâncias da apreensão, assim como os antecedentes e a conduta social do agente, o juiz deixará de aplicar a pena se o agente aceitar sujeitar-se a tratamento especializado em estabelecimento público de saúde, a ser escolhido pelo juiz.

PLS 82/2012, de autoria do deputado Paulo Pimenta (PT-RS), propõe a instituição do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad), para estabelecer que a pena prevista para o crime de tráfico de drogas aumenta de dois terços até o dobro se a substância entorpecente for crack.

PLC 80/2012, do deputado Enio Bacci (PDT-RS), altera o Estatuto da Criança e do Adolescente, para tipificar o crime de vender, fornecer, ministrar ou entregar, de qualquer forma, a criança ou adolescente, sem justa causa, produtos cujos componentes possam causar dependência física ou psíquica, mesmo indevidamente. A pena será aplicada em dobro quando ficar comprovado que a criança ou o adolescente tenha utilizado o produto.

PLS 177/2012, do senador Antonio Carlos Valadartes (PSB-SE), dispõe que a pena por exploração sexual aumenta 50% se a pessoa que pratica o crime se prevalecer de relações domésticas, de parentesco consanguíneo de até terceiro grau, por adoção de tutor, curador, preceptor, empregador da vítima ou que tenha autoridade sobre ela, bem como de relações de confiança ou de autoridade decorrente do ambiente escolar.

PLS 113/2004, de autoria do senador Demóstenes Torres (sem partido-GO), propõe que o coautor ou partícipe do crime de infanticídio deixe de ser punido pela pena reduzida prevista no próprio tipo penal do infanticídio e passe a responder por homicídio.


Revista Consultor Jurídico, 23 de setembro de 2012

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

ATO EM DEFESA DO DIREITO PENAL: CRÍTICA AO PROJETO SARNEY



Ato em defesa do Direito Penal: Crítica ao Projeto Sarney

Ocorrerá no próximo dia 24 de setembro (segunda-feira), às 19h, no Salão Nobre da Faculdade de Direito da USP, o evento “Ato em defesa do Direito Penal: Crítica ao Projeto Sarney”, que tem como objetivo promover a reflexão crítica sobre o Projeto do Novo Código Penal.


NOVO CÓDIGO PENAL DEVE SER VOTADO ATÉ 23 DE OUTUBRO


Alteração legislativa

Mudanças no CP podem ser votadas até 23 de outubro

A votação do relatório de Subcomissão Especial de Crimes e Penas com um anteprojeto de lei que modifica o Código Penal (Decreto-lei 2.848/40) está marcada para o dia 23 de outubro. O texto aumenta a punição para os crimes cometidos contra a vida, a administração pública e o meio ambiente. Porém, reduz a punição daqueles crimes patrimoniais cometidos sem violência física, como o furto simples.

O deputado Alessandro Molon (PT-RJ) foi quem elaborou o anteprojeto que altera as penas de nove tipos de crimes. Segundo Molon, o objetivo é reequilibrar o rigor das penas de acordo com a gravidade dos crimes.

A distinção objetiva entre usuários e traficantes de drogas no Código Penal será um ponto relevante na votação. O relatório de Molon propõe uma fórmula clara, respaldada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária, para determinar a quantidade de droga apreendida que vai distinguir os dois grupos. Hoje, não há critério objetivo em lei para essa diferenciação. Segundo ele, na proposta, a pessoa que estiver vendendo drogas, independentemente da quantidade que portar, será indiciada normalmente por tráfico.

Segundo o presidente da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, Ricardo Berzoini (PT-SP), caso não haja quórum suficiente na votação, ela será adiada. Nesse caso, segundo ele, a discussão será marcada para a primeira semana posterior às eleições municipais.

O relatório foi aprovado pela subcomissão no último dia 4 de setembro. Os deputados da CCJ terão até o dia 16 de outubro para apresentar sugestões de mudanças ao texto. O grupo deverá promover uma audiência pública sobre o tema no próximo dia 10 de outubro. Os convidados ainda serão definidos pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania. Com informações da Agência Câmara.


Revista Consultor Jurídico, 20 de setembro de 2012



NOTA DO EDITOR:

Sinceramente, sei que muitos dos colegas e amigos são extremamente ocupados com os seus afazeres diários, mas também sei que como interessados, acadêmicos, operadores do direito, pesquisadores e docentes em ciências penais, o assunto que diz respeito ao malfadado anteprojeto do novo Código Penal é de interesse de todos, da sociedade brasileira.

Ainda que um ou outro não tenha tido a oportunidade de passar os olhos com mais cautela no projeto de reforma do CP, é fato que só a forma e celeridade com que tramitou já chama a atenção e não o recomenda, demonstrando que foi feito no afogadilho, quiçá visando o Projeto Sarney com suas audiências públicas e "transparência", a sua aceitação perante a opinião pública e à imprensa interessada de forma a dar respaldo e credibi
lidade política para a sua rápida tramitação no Congresso Nacional para viabilizar colher os trunfos almejados a tempo e modo, contudo como o direito não socorre a quem dorme, renomados penalistas e sérias instituições, diga-se, com propriedade, promovem um salutar movimento revolucionário que visa extirpar da comunidade jurídica por meio de uma carta aberta, enquetes, passeatas e uma petição on line, essa bactéria que se tiver a oportunidade que espera será disseminada e a todos contaminará de forma a causar grandes males à sociedade que integramos, talvez por longos anos.

Assim, peço a todos, encarecidamente, que divulguem essas nobres ações para que cheguem ao conhecimento de todos os seus conhecidos e não conhecidos, de forma que haja uma maior e melhor consciência do mal que se aproxima e, juntos, possamos afastá-lo para que as alterações devidas e necessárias ocorram a tempo e modo. Assim, peço, gentilmente, ASSINEM A PETIÇÃO PÚBLICA  ABAIXO !

 

Ciente da compreensão de todos, convido-os a ler a carta aberta divulgada e assinada por notáveis da ciência penal que se encontra no link acima, para que possamos contar com a assinatura solidária de todos os interessados num sistema penal mais eficiente e racional.

Atenciosamente,
O Editor