quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

NOTA TÉCNICA SOBRE A LEI Nº 12.850/2013



NOTA TÉCNICA SOBRE A LEI N.º 12.850/13 

Grupo de pesquisa 
Modernas Tendências do Sistema Criminal 
Dezembro/2013 


Ao tempo em que o ordenamento jurídico penal nacional é surpreendido com uma alteração legislativa de grande relevância, identificamos como necessária a realização de algumas reflexões voltadas à edição da Lei n.º 12.850, de 2 de agosto de 2013 , precisamente diante de seu estreito vínculo com uma das linhas de pesquisa assumidas por este Grupo. 

Isto porque, o que se verifica é que, uma vez mais, não parece que o legislador ordinário, em seu labor normativo, teria primado pelo zelo com relação aos aspectos técnico-jurídicos ou aos ideais substancialmente democráticos que haveriam de nortear uma tal inovação. 

Embora se visualize o corajoso enfrentamento de questões há muito tidas como problemáticas – como aquela afeta à tentativa de unificação de um conceito de organização criminosa2 –, concomitantemente, visualizam-se erros crassos e a perda de oportunidades que merecem a pronta reprovação por parte da doutrina especializada. 

Com este propósito, passa-se a ressaltar alguns aspectos que, sob uma 
perspectiva científica, julgamos que exigem a pronta atenção dos operadores jurídicos. 



O histórico do processo legislativo:

Fruto imediato do Projeto de Lei n.º 6.578/09 – originado, por sua vez, de proposta legislativa do Senado que tramitou entre 2006 e 2009 (PLS n.º 150/06) –, a Lei n.º 12.850/13 buscou adequar o ordenamento jurídico nacional aos ditames da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, então aprovada pelo Decreto Legislativo n.º 231/2003, e que restou ratificada em janeiro de 2004, sendo promulgada pelo Decreto n.º 5.015/2004. 

Malgrado o processo legislativo tenha tido curso por cerca de uma década desde o ingresso da intitulada Convenção de Palermo em nosso ordenamento, a delonga longe está de apresentar-se como fruto de um aprofundado debate parlamentar ou de uma preocupação com a técnica legislativa. 

Em absoluto. O estudo cuidadoso da evolução histórica deste processo serve para ressaltar a enorme deformação pela qual passou referida legislação que, em seu início, buscava essencialmente “promover a cooperação para prevenir e combater mais eficazmente a criminalidade organizada transnacional”, conforme os termos da ementa da referida Convenção. 

Norteada pela adoção de medidas eficazes, porém, respeitosas com os princípios essenciais de qualquer Estado democrático de Direito, a Convenção se mostrava atenta à incorporação normativa de instrumentos voltados, essencialmente, ao combate da lavagem de capitais. Neste sentido, trazia diferenciada atenção em relação à recuperação dos ativos obtidos no âmbito da criminalidade organizada, à previsão da responsabilização penal da pessoa jurídica, à instrumentalização do 
bloqueio, apreensão, embargo e confisco de bens e produtos do crime 
organizado, estabelecendo, neste particular, importante regulamentação da técnica da entrega vigiada, como instrumento apto a permitir um maior controle pelas autoridades competentes das remessas de capitais ilícitas ou suspeitas (art. 2, “i”). 

Ao se realizar um confronto entre toda esta fundamentação extravagante e o produto final apresentado pelo legislador nacional, entretanto, o que se nota é que, ressalvada a manutenção simbólica da terminologia “organização criminosa”, nada mais teria restado do então estabelecido pela Convenção das Nações Unidas do ano de 2000. 

A incompreensível omissão: 

Nesta toada, soa pouco compreensível notar que, ao longo de todos os seus artigos, a legislação recém aprovada não apresente sequer um único dispositivo preocupado com o combate econômico das, agora tipificadas, organizações criminosas. 

Soa menos compreensível ainda notar que, até as supressões ocorridas por meio do Parecer do Relator n.º 2 da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados (Dep. Vieira da Cunha, 30.10.2012), existia na redação original do Projeto de Lei n.º 6.578/2009 todo um capítulo dedicado ao tema. 

Pois bem, sob a justificativa de se tratar de matéria que então estaria sendo disciplinada pelo Projeto de Lei n.º 2.902/2011 daquela Casa, bem como na própria Lei n.º 12.694/2012, todo o tratamento da matéria que existia no âmbito da criminalidade organizada fora integralmente suprimido na redação que foi levada à aprovação

Muito embora não se desconheça tenha o legislador agido com o fim de imprimir uma maior uniformidade no tratamento da temática, uma breve análise dos dispositivos referidos deixa evidente o quanto se perdeu daquilo que originalmente vinha previsto exclusivamente para fins de combate à criminalidade organizada. E isto, inclusive, pelo tratamento geral que, agora, pretende-se imprimir à matéria4

Assim, num momento em que é perceptível que as normativas internacionais buscam justamente um esvaziamento econômico destas organizações – tanto por meio do incremento no uso das sanções pecuniárias, quanto da reelaboração das consequências jurídicas da condenação definitiva –, o legislador pátrio, uma vez 
mais, dá mostras do uso simbólico que faz do Direito penal. 

A fragilidade técnica das apostas: 

Não bastasse esta utilização simbólica e economicamente ineficaz do Direito penal, sob a perspectiva da persecução penal, a nova legislação inova de forma pouco científica, ignorando regras interpretativas básicas facilmente formuláveis a partir da constatação de que, em última análise, o que o legislador fez nada mais foi do que criar medidas excepcionais de provas para uma categoria específica de delitos. 

Neste sentido, basta uma leitura do “caput” do artigo 3o da Lei. Um dispositivo no qual o legislador procurou demonstrar todo o arsenal persecutório que pretende ver implantado ou incrementado no combate às organizações criminosas. 

Surge, aí, ponto curioso do labor legislativo. Isto porque, a partir da leitura atenta deste dispositivo, interpreta-se que as fórmulas excepcionais de investigação só estarão legitimadas quando estiver devidamente demonstrada a existência mesma de uma organização criminosa. Ocorre que, se demonstrada estiver a existência de tal organização, as ditas fórmulas especiais já não mais serão necessárias. Afinal, a comprovação da existência da organização já terá sido atingida por outras vias, deixando clara a desnecessidade das medidas excepcionais arroladas 
pelo artigo 3o da Lei. 

Se não bastasse esta incongruência lógica, o desconhecimento legislativo foi além e demonstrou ignorar conceitos e princípios básicos há muito sedimentados pela doutrina penal e processual penal. 

É exemplo disto o instituto da “colaboração premiada”, claro eufemismo utilizado com o fim de disfarçar a conotação antiética que a conduta possui. Regulamentado no artigo 4o e seus parágrafos da Lei, trata-se de instituto no qual, ao que parece, o legislador teria apostado grande parte da credibilidade do combate ao crime organizado. 

Além da absurda referência a uma suposta “renúncia” do direito ao silêncio (art. 4o, § 14), o dispositivo está eivado de inconstitucionalidade e não parece supor qualquer efetividade e coerência6

Afinal, não se pode olvidar que, com essa figura, o legislador brasileiro nada mais faz do que possibilitar premiar o traidor, oferecendo-lhe uma vantagem legal, manipulando para tanto os parâmetros punitivos, de forma completamente alheia aos fundamentos do direito-dever de punir que o Estado assumiu para com a coletividade. 

Ademais, além de se identificar a inexistência de qualquer compromisso científico com o princípio da indisponibilidade da ação penal de iniciativa pública, o que se nota é a presença de interesses pouco claros que teriam norteado a redação aprovada. Ao menos é o que se pode depreender a partir da análise da evolução do processo legislativo em questão7

Fato é que, ao assim agir, demonstra o legislador o quanto desconhece da potencialidade lesiva que acompanha a má utilização de um instrumento que, por si só, já possui suficientes riscos para a sua implantação, mormente quando analisados sob a perspectiva das garantias processuais penais8

A contínua ausência de uma clara regulamentação legislativa: 

Piora este quadro, notar que tampouco houve zelo legislativo na regulamentação de instrumentos voltados à persecução das organizações criminosas que, num passado recente, haviam sido incluídos de forma açodada em nosso ordenamento9. É o caso dos dispositivos tendentes a regulamentar a figura do “agente infiltrado”. 

Aqui, a leitura da redação aprovada nos artigos 10 e seguintes da Lei bem 
demonstra o quão raso foi o aprofundamento e debate científicos a respeito do instituto, de modo a conformá-lo a um modelo processual penal próprio de um regime efetivamente democrático. 

Afinal, a impressão que fica é que, uma vez mais, ignorou-se estar-se diante de um instituto extremamente polêmico já em seus fundamentos. E isto precisamente no que diz respeito à sua base ética, pois se trata, em última análise, de legitimar que o Estado, através de um preposto seu, se envolva diretamente na prática de delitos, como forma de melhor apurá-los. Ou seja, legitima-se que o Estado, em nome da eficiência do sistema punitivo e ao invés de exercer uma função de prevenção penal, pratique atos desviados, equiparando-se ao criminoso10. 

O perigo está em identificar que, embora tenha sido inaugurada toda uma seção para a regulamentação do instituto, não houve o cuidado de detalhar e delimitar aquilo a que está ou não autorizado o agente infiltrado a fazer. Uma delimitação que, inclusive, seria vital para conter possíveis abusos da parte daquele que se vê inserido no contexto criminoso. 

Esta omissão torna-se ainda mais preocupante quando se identifica a deficiente redação trazida pelo artigo 13 e seu parágrafo único da Lei. De fato, sob o pretexto de apresentar uma solução jurídica para os delitos praticados no seio da organização criminosa pelo agente infiltrado – dando-lhe uma suposta garantia contra eventuais responsabilizações –, a redação legislativa acabou por resultar ambígua e estabelecer uma regra geral de exclusão que, interpretada literalmente, 
subverte todo o regramento da matéria na parte geral do Código penal, 
especialmente no tocante às regras do concurso de pessoas. 

Enfim, ainda que não se ignore a importância e a necessidade do aprimoramento legislativo contínuo no âmbito da persecução penal das atividades ilícitas cometidas por organizações criminosas, lastima-se ter o legislador perdido a oportunidade de enfrentar de forma efetiva, científica e eficaz esta parcela da criminalidade. 

Lastima-se, por fim, que novamente o legislador pátrio tenha insistido em ignorar que a dita “criminalidade organizada” seria muito mais produto de uma omissão do poder público ao longo dos anos do que, propriamente, fruto de condutas efetivamente organizadas praticadas com sofisticação operacional pela delinquência massificada.


sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

REFORMA PENAL REPETE POPULISMO PUNITIVO COMUM NO BRASIL


CRIMINOLOGIA MIDIÁTICA

* Por Luiz Flávio Gomes

O Senado está dando andamento à reforma penal (foi aprovado em 17 de dezembro de 2013 o relatório final na Comissão Especial de Senadores). Agora o texto vai para a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) e, depois, ao plenário. Aprovado o texto no Senado, será ele enviado para a Câmara dos Deputados. Desde 1937 (Estado Novo), passando pelo Código Penal de 1940 e pelas 150 reformas penais até dezembro de 2013, no Brasil só temos conseguido oferecer uma “solução” enganosa para o problema da criminalidade: edição de novas leis penais, cada vez mais duras. Verdadeiro populismo punitivo, regido pela criminologia populista/midiática.
Objetivamente (e estatisticamente) as reformas penais costumam produzir efeito positivo efêmero logo após a sua aprovação, quando produzem esse efeito (após o Código de Trânsito Brasileiro, por exemplo), mas em seguida a criminalidade volta com toda intensidade. Um exemplo dessa política desastrada (e absolutamente ineficaz a médio ou longo prazo) são os homicídios:
De 1986 a 1990, como se vê, o movimento foi de ascensão contínua. Os homicídios só aumentavam. Em 1990 veio a primeira lei dos crimes hediondos (Lei 8.072/90). Seu efeito redutor positivo se deu em 1991 e 1992. A partir daí, a escalada sanguinária não mais cessou. De acordo com os dados disponíveis no Datasus, do Ministério da Saúde, de 1986 até 1990 o crescimento no número de homicídios passou de 56%. Entre 1990 e 1992, após a aprovação da lei, a taxa caiu 8% e voltou a crescer 7,7% já no ano seguinte.  A partir de 1994, quando veio a segunda lei dos crimes hediondos, os homicídios não caíram absolutamente nada. Ao contrário. Só aumentaram (de forma linearmente ascendente). Entre 1994 e 2000 o crescimento foi de 39%. O selo de crime hediondo colado em um crime não significa nenhuma garantia de diminuição do crime.
O engodo da política puramente repressiva do Estado brasileiro (uma das políticas públicas mais irresponsáveis em toda a América Latina) está estatisticamente evidenciado. Puro populismo penal demagógico, mesclado, às vezes, com charlatanismo (que ocorre quando o populista atua com má-fé). No campo da prevenção penal reside uma das grandes mentiras que são contadas para o povo brasileiro que, desorientado e desolado, não se rebela coletivamente contra elas. Mas fica sempre decepcionado.
Nenhuma reforma penal do legislador brasileiro, de 1940 a 2013, fez reduzir a criminalidade, a médio prazo. Nenhuma! Nenhum crime diminuiu sistematicamente. Passado o efeito sedativo da nova lei, em seguida retorna a criminalidade. Para isso muito contribui a falência da estrutura estatal punitiva, esgarçada, sucateada (apenas 8% dos homicídios são apurados).
Enquanto discutimos (no campo da dogmática penal) se o dolo está no tipo ou na culpabilidade, se esta é psicológica ou normativa, se a pena tem sentido retributivo ou preventivo etc. (o debate dogmático é relevante, sem sombra de dúvida, mas insuficiente), o povo pobre está morrendo nas filas dos hospitais ou sendo amassado como sardinha nos ônibus e trens lotados ou ficando mais ignorante nas escolas públicas (porque não prestigiam o professor, não têm estrutura etc.); nossa infraestrutura continua esgarçada, os desonestos continuam "roubando" o dinheiro público, o brasileiro continua achando que nossa terra vai dar certo só porque foi abençoada inicialmente por Deus e por aí vai. A soma da esperteza do legislador com a ignorância de grande parcela da população, mais a espetacularização da mídia, vem significando mais homicídios.
Algo em torno de 270 pessoas são massacradas diariamente no Brasil (130 no trânsito e 140 assassinadas). Enquanto o legislador penal insiste na sua política penal rigorista e populista, nos últimos 73 anos, 2,3 milhões de pessoas perderam a vida no trânsito ou por causa das mortes intencionais (dolosas)! São “mortes antecipadas”, como diz Zaffaroni. Sem que tenha havido nunca qualquer tipo de revolução! É a marcha da nossa insensatez. O dilema barbárie ou civilização continua sendo um enigma no continente latino-americano!
Para cada reforma penal (foram 150, em 73 anos), foram 17 mil cadáveres! Mortes nunca reduzidas. Isso significa que deveríamos viver sem leis? Não. Impossível. As leis são necessárias. O que estou dizendo é que as reformas penais populistas e demagógicas não estão diminuindo os crimes! O povo brasileiro continua, no entanto, pedindo mais leis, mais dureza, mais política de “mão-dura”. É a guerra contra o crime. A criminalidade crescente é uma realidade. A guerra como consequência única é questionável. Desorientação popular e midiática, que sempre achará um legislador disposto a atender essa demanda. As reformas das leis não custam nada (já dizia o utilitarista Bentham, 1782-1875).

FONTE: Revista Consultor Jurídico, 19 de dezembro de 2013

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

SENADO URUGUAIO APROVA A LEI DA MACONHA





Senado uruguaio aprova a Lei da Maconha


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Por 16 votos a favor e 13 contra, o Senado uruguaio aprovou a chamada Lei da Maconha. A partir desta quarta-feira (11/12), o pequeno país sul-americano será o primeiro do mundo a legalizar e regulamentar a produção, venda e o consumo da marijuana.
Antes mesmo de a votação terminar, defensores da lei marcharam até o Congresso para festejar. No Uruguai, o consumo de maconha (ou de qualquer outra droga) não é considerado crime há 40 anos, mas era proibido comprar e vender os produtos. A nova lei pretende acabar com essa contradição e buscar uma alternativa à guerra contra as drogas. Estima-se que 28 mil uruguaios (5% da população entre 15 e 65 anos) fumam um cigarro de maconha por dia. Comparado com outros países, é um mercado pequeno - mas move US$ 40 milhões ao ano e tem crescido, apesar das políticas de combate ao narcotráfico. O presidente do Uruguai, Jose Pepe Mujica, quer que o Estado regule o comércio e uso dessa droga a quarta mais consumida no país, depois de bebidas alcoolicas, cigarros e remédios psiquiátricos. Pelo menos a metade dos uruguaios, no entanto, segundo as pesquisas de opinião, acha que a nova política não vai funcionar e que pode inclusive facilitar a vida dos narcotraficantes.
Pela nova lei que deve levar cerca de 120 dias para ser regulamentada e colocada em prática o governo vai distribuir licenças para o cultivo de até 40 hectares de marijuana, que será usada em pesquisas científicas, na indústria e para consumo recreativo. Os consumidores (residentes uruguaios maiores de 18 anos e devidamente registrados) terão direito a comprar até 40 gramas por mês nas farmácias, a preços inferiores aos do mercado negro. E quem quiser pode plantar até seis pés de maconha em casa sempre e quando forem declarados. Os críticos da lei dizem que o governo não tem como controlar o cultivo doméstico ou impedir que um consumidor uruguaio compre a droga na farmácia para revendê-la no mercado negro. Os defensores da lei argumentam que a guerra contra as drogas, implementada durante as últimas décadas, fracassou no Uruguai e em outros países.
Em 2016, a Organização das Nações Unidas vai rever as políticas de combate ao narcotráfico e seus resultados. Segundo Diego Pieri, que fez campanha pela aprovação da lei uruguaia, nos últimos anos mais países e até estados norte-americanos têm buscado alternativas para regular o mercado em vez de tentar destruí-lo com armas. Os ventos estão mudando, mas vai levar tempo convencer outros países a mudar de estratégia, disse Pieri, em entrevista à Agência Brasil. Por isso mesmo, o presidente Mujica pediu apoio internacional à sua iniciativa.
NOTA DO EDITOR: É fato que a dependência de drogas, sejam lícitas ou ilícitas, é um problema de saúde pública, não de polícia e direito penal que devem combater toda a espécie de tráfico ilícito de drogas. Também é fato que a "guerra contra as drogas" desencadeada mundialmente pelos EUA na década de 70, tem-se mostrado ao longo do tempo, uma guerra perdida onde bilhões de dólares dos contribuintes são gastos e os direitos humanos são sistematicamente desrespeitados pela política criminal de fomento ao movimento de "lei e ordem" que desrespeita garantias fundamentais, sem que até o momento se tenha qualquer controle. O que precisamos ? Necessitamos de controle estatal, daí a iniciativa uruguaia, como de Portugal e Holanda servirem de base para o enfrentamento da questão pelo viés mais indicado.

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

CRACK - INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA - CIDADANIA


CRACK: INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA E CIDADANIA
                                                            


Antonio José F. de S. Pêcego [1]
Zaiden Geriage Neto [2]



RESUMO: Com o movimento político que pretende promover a internação compulsória dos dependentes químicos que habitam as denominadas cracolândias (espaços públicos em que grupos de usuários e dependentes se reúnem para fazer uso da droga denominada crack), necessário se faz enfrentar essa problemática que envolve aqueles que, a partir de então, passaram a ter visibilidade social para que se promova a inclusão e não exclusão social por interesses econômicos e políticos, reconhecendo-se que têm direito ao exercício da liberdade, da autonomia de vontade e necessitam de tutela estatal com relação aos seus direitos sociais, sob pena de grave violação à dignidade humana dessas pessoas com a intervenção indevida do Estado nos direitos fundamentais à vida, liberdade e igualdade, de forma a macular a própria cidadania dessas pessoas que integram grupo que vivem à margem da inclusão social.

PALAVRAS-CHAVE: Tóxico. Dependente. Crack. Internação compulsória.

ABSTRACT: With the political movement that aims to promote the compulsory hospitalization of drug addicts who inhabit the so-called cracolândias (public spaces where groups of users and addicts come together to make the drug called crack), it is necessary to address this problem that involves those that, from then on, started to gain visibility for social action to promote inclusion and not exclusion by economic and political interests, recognizing that they are entitled to the exercise of freedom, autonomy and will require state protection in relation their social rights, under penalty of severe violation of human dignity of these people with the improper intervention of the state in fundamental rights to life, liberty and equality, so as to harm the very citizens of these people within the group who live on the margins of social inclusion.

KEYWORDS: Toxic. Dependent. Crack. Compulsory hospitalization.

SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Lei de Tóxicos e o usuário. 2.1. Política criminal e aspectos materiais. 2.2. Aspectos processuais. 2.3. Últimas tendências. 3. O crack e sua origem. 3.1. Efeitos. 3.2. Tratamento terapêutico. 3.3. Internação compulsória. 3.4. Cidadania. 4. Considerações finais. 5. Referências.

1. INTRODUÇÃO

O uso de drogas que alteram o estado mental, ocorre a milhares de anos e assim deverá continuar a ocorrer por toda a história da  humanidade, sendo certo que

Seja por razões culturais ou religiosas, seja por recreação ou como forma de enfrentamento de problemas, para transgredir ou transcender, como meio de socialização ou para se isolar, o ser humano sempre se relacionou com drogas.[3]

De algum tempo para cá passou a ganhar visibilidade social as, denominadas, cracolândias (centros de concentração de dependentes químicos em solo urbano) que estão se espalhando por inúmeras localidades em Estados diversos da nossa federação, procurando-se adotar inúmeras soluções para esse grave problema social.

Entretanto, até o presente momento, nota-se uma maior preocupação em tratar dos efeitos do que cuidar das causas, promovendo-se, em face da predominância de interesses políticos e econômicos privados pelas suas áreas, uma verdadeira exclusão social dos dependentes químicos que habitam essas localidades que não têm tido atenção social do poder público por serem, até então, um grupo de cidadãos e nacionais invisíveis, salvo aos olhos de alguns mobilizações sociais em prol da sua inclusão.

Nessa seara, de um lado temos a tentativa de alguns governantes de promover a internação compulsória desses dependentes químicos, agora com apoio político da Câmara dos Deputados e do Senado, de outro algumas mobilizações sociais contra essa ação e a favor de uma maior inclusão social desse grupo de invisíveis numa globalização hegemônica.

2. LEI DE TÓXICOS E O USUÁRIO

A Lei n. 11.343/2006 revogou expressamente as Leis n. 6.368/1976 e 10.409/2002, sendo que enquanto a primeira previa pena privativa de liberdade para o usuário de drogas, esta penúltima criou um imbróglio processual que reclamou à época dos operadores do direito grande esforço interpretativo sistemático para a sua viabilidade de aplicação prática.

A lei de tóxicos em vigor instituiu o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas - SISNAD e passou a prescrever medidas de prevenção do uso de drogas ilícitas, bem como de atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas, já demonstrando em seu preâmbulo a política criminal que pretendia implantar sobre essa questão, fazendo distinção e, ao mesmo, inclusão social no programa dos dois pólos que atuam no uso de drogas ilícitas (usuário e dependente), bem como apontando expressamente os princípios que iluminam o SISNAD, dentre os quais, destacamos o respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana, à diversidade e às especificidades populacionais existentes, e a promoção dos valores éticos, culturais e de cidadania do povo brasileiro (art. 4º, I, II e III), o que demonstra e comprova que o Estado é que deve servir ao seu povo e não o contrário, isso em face dos princípios fundamentais da dignidade humana e da cidadania que estruturam o nosso Estado Democrático e Social de Direito.

2.1. Política criminal e aspectos materiais

Conforme anunciado no preâmbulo, a Lei n. 11.343/2006 de fato inovou de forma progressista a problemática das drogas ilícitas, fornecendo o legislador infraconstitucional aspectos que permitissem ao julgador fazer uma mais correta, objetiva e transparente diferenciação do usuário/dependente do traficante de drogas, ao apresentar no § 2º do art. 28 da Lei de Tóxicos, os critérios que devem ser observados no caso concreto, como trago à colação:

Art. 28. ...
[...]
§ 2.º Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.

Ao contrário das legislações anteriores sobre tóxico, agora há parâmetros legais para análise tanto do Ministério Público, como titular da ação penal, como do Magistrado quando do julgamento do processo criminal, embora não vejamos com bons olhos a análise dos antecedentes do agente que nada diz respeito a um direito penal do fato, mas sim ao do autor pelo que fez no passado, questão de duvidosa recepcionalidade constitucional.

Lado outro, o legislador inspirado numa contemporânea política criminal de descarcerização e despenalização, deixou de impor sanção privativa de liberdade ao usuário para viabilizar a aplicação de medidas socioeducativas ou alternativas, como (I) advertência sobre os efeitos das drogas; (2) prestação de serviços à comunidade, e (3) medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo, considerando que quando em vigor das leis anteriores, havia previsão legal da pena de detenção de até dois anos e pagamento de multa para o usuário/dependente (art. 16 da Lei n. 6368/1976).

Assim, extrai-se do constante do preceito secundário do artigo 28 da Lei n. 11.343/2006, como acima citado, que o legislador, corretamente, gradativamente retira da ciência penal aquilo que diz respeito a outras ciências, ou seja, afasta do usuário/dependente a pena privativa de liberdade e à ele, dando-lhe certa visibilidade social, clama atenção das autoridades e da sociedade como um todo, desviando o foco criminal para o assistencial à saúde do usuário por meio de medidas socioeducativas e alternativas, bem como solidifica a competência exclusiva dos Juizados Especiais Criminais para processar e julgar os agentes que pratiquem essa infração penal por ser crime de menor potencial ofensivo, considerando que a Lei n. 11.313, de 28/06/2006, com cerca de dois meses antes da entrada em vigor da Lei n. 11.343, de 23/08/2006 (Lei de Tóxico), já havia determinada nova redação ao artigo 61 da Lei n. 9.099/1995 que conceitua os crimes de competência dos JEPSCrim.

2.2. Aspectos processuais

Com a fixação dessa competência, processualmente se abre a perspectiva de aplicação dos benefícios da transação penal (art. 76) e da suspensão condicional do processo (art. 89) da Lei dos Juizados Especiais Criminais àqueles que preencham os requisitos legais, sendo que o primeiro se dá na fase pré-processual e o segundo logo após iniciada a ação penal, mas ambos evitam o estigma dos malfadados antecedentes criminais e da reincidência, cumpridas as condições acordadas entre os sujeitos do processo, uma vez que não há em nenhuma das duas hipóteses sentença penal condenatória transitada em julgado, mas sim homologatória ou declaratória de extinção da punibilidade.

2.3. Últimas tendências

Em virtude dos reclamos sociais que vinculam o uso de drogas ao aumento da criminalidade, por meio de um viés populista e simbólico, num verdadeiro retrocesso, o ex-senador Demóstenes Torres apresentou à época o Projeto de Lei 111/2010 que visa restabelecer a pena privativa de liberdade de detenção para usuários de drogas, tendo sido aprovado em 10/04/2013 pela Comissão de Assuntos Sociais do Senado.[4]

No que, no mesmo sentido de recrudescer só que de forma mais ampla, com internação compulsória ou não voluntária, embora não preveja pena privativa de liberdade para o usuário, mas apenas agravamento do prazo das medidas socioeducativas e alternativas, se encontra o Projeto de Lei n. 7.663/2010 do Deputado Osmar Terra (PMDB-RS) na Câmara de Deputados.

Sobre o PL 7663/2010, vale registrar que está havendo uma mobilização social por parte de ativistas e especialistas, contra a sua aprovação o que deu ensejo a uma carta à Presidenta Dilma Rousseff, ao Congresso Nacional e ao Supremo Tribunal Federal “cobrando a elaboração de uma nova política antidrogas que não seja baseada em medidas proibicionistas”, quando da recente realização do Congresso Internacional sobre Drogas – 2013.[5]

Uma das principais críticas reside justamente na internação compulsória dos usuários prevista no projeto de lei, tendo assinalado o neurocientista Sidarta Ribeiro, integrante da comissão científica e organizadora do congresso supracitado:

Constatamos a falência do modelo proibicionista, nos preocupa que o PL do Osmar Terra aponte na direção contrária, em particular, priorizando a internação forçada, que a própria ONU [Organização das Nações Unidas] declara como sendo tortura. Consideramos inadmissível que o governo da presidenta Dilma, que tem um histórico de defesa dos direitos humanos, admita que isso venha a ocorrer.[6]
           
3. O CRACK E SUA ORIGEM

A origem do nome crack, segundo Adriano Maldaner, Perito da Polícia Federal, decorre do barulho produzido pela droga quando queimada para uso. Essa droga ilícita é derivada da cocaína refinada ou da pasta-base de coca (Erythroxylon coca) em que se mistura bicarbonato de sódio e água, sendo que “aquecido a mais de 100ºC, o composto passa por um processo de decantação, em que as substâncias líquidas e sólidas são separadas. O resfriamento da porção sólida gera a pedra de crack, que concentra os princípios ativos da cocaína” [7], sendo que o efeito dessa droga no cérebro dura de cinco a dez minutos, mas a sua chegada ao sistema nervoso central leva, em média, de oito a quinze segundos, o que pode levar mais rapidamente à dependência química ou orgânica se comparada a outras drogas ilícitas ou lícitas.

No Brasil o surgimento do crack foi detectado em 1990 por agentes que atuavam no desenvolvimento de uma política de redução de danos com usuários de drogas injetáveis, visando inibir a proliferação do vírus do HIV com distribuição de seringas e “camisinhas de vênus”.[8]

3.1. Efeitos

A atuação dessa droga gera os efeitos de sensação intensa de euforia e poder; estado de excitação; hiperatividade; insônia; falta de apetite e perda da sensação de cansaço, sendo que em doses maiores tem-se observado irritabilidade, agressividade, delírios e alucinações, de forma a caracterizar um verdadeiro estado psicótico, assim como aumento da temperatura e convulsões, dilatação das pupilas, aumento da pressão arterial e até convulsões, o que faz com que esses efeitos possam levar a uma parada cardíaca por fibrilação ventricular, uma das causas de morte por superdosagem.[9]

O dependente químico - aqui, entendido como aquele que não consegue mais cumprir com suas obrigações do dia a dia em decorrência do uso da droga ou dos efeitos colaterais decorrentes do dia seguintes (“ressaca ou rebordosa”) - passa praticamente o dia e a noite fazendo uso da droga, curando-se da “ressaca” ou tentando obter mais droga para uso próprio, alimentando esse círculo vicioso que faz com que viva efetivamente dependente ou me função da substância entorpecente, não restando mais espaço para outras ocupações salutares ao convívio humano em sociedade.

Em sendo assim, não há dúvidas que os transtornos causados pelo uso de substâncias psicoativas na esfera biopsicossocial, podem ser qualificados como de grave problema de saúde pública que reclama uma atuação mais incisiva do Estado na proteção desse direito coletivo fundamental por meio, dentre outros, de um estudo e análise epidemiológica, ação que decorre da epidemiologia que, etimologicamente significa “ciência do que ocorre com o povo”.[10]



3.2. Tratamento terapêutico

Há vários modelos de tratamento do dependente químico que muitas vezes se estende ao seio familiar por se tornarem co-dependentes, uma vez que na questão há o envolvimento de “aspectos individuais, biológicos, psicológicos, sociais e culturais” [11], não sendo o nosso propósito nesse curto ensaio com propósitos específicos de enfrentar a problemática da internação compulsória, qualquer aprofundamento nessa questão, mas apenas demonstrar que em contradição com a atuação política que estão querendo impor aos dependentes químicos para satisfazer interesses que agravam o quadro de exclusão social, se encontram estudos do Ministério da Justiça por meio da Secretaria Nacional de Políticas Sobre Drogas – SENAD, bem como na “atual Política do Ministério da Saúde para a Atenção Integral a Usuários de Álcool e Outras Drogas que se baseia nas recomendações básicas para ações na área de saúde mental da Organização Mundial da Saúde (2002)” [12]

Sobre esse tópico, registramos as seguintes recomendações constantes do texto acima citado:

1) Promover assistência no âmbito de cuidados primários;
2) Disponibilizar medicamentos de uso essencial em saúde mental;
3) Promover cuidados comunitários;
4) Educar a população;
5) Envolver comunidades, famílias e usuários;
6) Estabelecer políticas, programas e legislação específicos;
7) Desenvolver recursos humanos;
8) Atuar de forma integrada com outros setores;
9) Monitorar a saúde mental da comunidade;
10) Apoiar mais pesquisas.

Nessa linha, constatamos que essas recomendações da OMS estão em sintonia com a dignidade humana, concluindo o tópico supracitado, assinalam de forma categórica:

Ainda que existam várias formas de tratamento nos dias atuais, nenhuma intervenção se mostrou mais efetiva que outra, pois a efetividade do tratamento depende de sua indicação adequada. Considerando que o quadro clínico e as consequências advindas da dependência de álcool e drogas dependem de (1) quem usa (indivíduo e fase de vida), (2) em que momento usa (contexto), (3) tipo de droga consumida, (4) quantidade e (5) freqüência de uso, a indicação de tratamento dependerá de avaliação minuciosa inicial. Como essas consequências variam muito, a diversidade de tratamentos existentes é benéfica, uma vez que torna possível atender a diferentes demandas de indivíduos distintos ou de um mesmo indivíduo em outra fase dessa doença crônica.
Portanto, o tratamento deve ser o mais individualizado possível. (grifo nosso)  

3.3. Internação compulsória

Tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei n. 7663/2010 do Deputado Osmar Terra (PMDB-RS) que prevê a internação compulsória de usuários de drogas, sendo que é noticiado na imprensa escrita e falada que os governos do Rio de Janeiro e São Paulo pretendem implantar essa política pública, contudo esse atuar vai de encontro às recomendações da OMS no que diz respeito ao tratamento terapêutico do usuário e dependente de drogas, como inicialmente apresentado, já tendo sido assinalado por Léon Garcia, Representante do Ministério da Saúde e Coordenador Adjunto de Saúde Mental, em entrevista à Agência Brasil que:

A internação involuntária é o fracasso da clínica no campo da saúde mental. Qualquer psiquiatra que faz uma internação involuntária o faz através do fracasso da sua capacidade de cuidar. Ela ocorre quando nada mais deu certo. Não podemos ter uma política pública baseada no fracasso.[13]
Sobre essa questão, igualmente à Agência Brasil, Luciana Boiteux, Professora de Direito Penal da UERJ, pontuou que essa ação compulsória é arbitrária e gera mais gastos e danos econômicos do que resultados, consignando que esse projeto de lei é um retrocesso ao assemelhar as internações compulsórias ao tratamento dado aos dependentes químicos antes da Lei Antimanicomial (Lei nº 10.216/2001), finalizando a sua crítica à pretensão legislativa ao assinalar: “Essa é uma lógica que amplia o tratamento não no âmbito da saúde pública, por meio de comunidades terapêuticas, mas pela institucionalização de forma higienista”.[14]
Essa política mediática e simbólica para satisfazer interesses econômicos e políticos, promove uma verdadeira exclusão social desse grupo invisível de usuários e dependentes químicos que passaram a ter visibilidade a partir do instante que criaram um espaço próprio na via pública para fazer uso da droga crack, denominados de cracolândia. É uma promoção que ocasiona uma falsa sensação de segurança à população e de se estar tutelando à saúde pública, quando na verdade se está excluindo do espaço público um grupo que o Estado deve proteger com a implementação de seus direitos sociais previstos na Constituição e assegurar o livre exercício da cidadania, tratando das causas e não apenas dos efeitos.

Com esse atuar, macula-se o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana num Estado Democrático e Social de Direito, a liberdade e a igualdade, estes direitos humanos fundamentais de primeira dimensão que reclamam uma ação negativa do Estado que deve se abster de intervenção na esfera individual do indivíduo, conforme leciona Ingo Wolfgang Sarlet,[15] uma vez que a internação compulsória do dependente de drogas só é possível judicialmente quando estiver sob a curatela do art. 1767 do CC e, nos moldes que se pretende implantar, fica inviável a necessária individualização terapêutica do usuário/dependente de crack, de forma que de fato essa ação nefasta irá produzir realmente uma higienização social, o que interessa à globalização hegemônica do neoliberalismo, mas não à globalização contra-hegemônica que se espelha no Fórum Mundial da Saúde – FMS e não no Fórum Econômico Mundial - FEM.

A própria Lei de Tóxicos (Lei n. 11.343/2006) prevê em no Título III (“Das atividades de prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas”) - diga-se de passagem, modernamente - como se deve atuar nessas duas frentes da prevenção e reinserção social, bastando a implementação ou continuidade desses serviços de relevância social, com o Estado tutelando a saúde pública como deve fazer por se tratar de um direito social fundamental.

Sob esse aspecto, trazemos à colação importante julgado em que se apontam dados relevantes que reclamam ações afirmativas a serem observadas pelo poder público:

O problema do uso de drogas (crack, em especial) é atualmente uma questão de inadiável relevância e importância social, que requer permanente e cada vez mais aguda atenção das entidades federadas, em todos os níveis de governo, estas que não se podem esquivar das obrigações que lhes são constitucionalmente traçadas, sob o argumento (sempre invocado) da ausência de estrutura física, de pessoal ou de projetos e/ou ações de implementação de uma política de prevenção, tratamento e recuperação de dependentes químicos. - É verdade que há dificuldades orçamentárias. Todos os sabem. Mas todos sabem também que os recursos existem. O que não existe é a aplicação desses recursos, que se evaporam como água no calor. Dos mais de 400 milhões de reais disponibilizados pela SENAD (Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas) apenas cerca de 20% foram aplicados. O Brasil disponibiliza menos de ½ (meio) leito para cada Município (2 mil e quinhentos leitos para todo o País) (Fonte: Estado de Minas de 11.7.2011 - pág. 7). Ora, num quadro assim caótico falar-se em reserva do possível é quase um abuso. - Como bem anotou o Exmo. Ministro Celso Mello, quando do julgamento do AgRg no RE 271.286-8/RS: O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política - que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro - não pode converter-se em promessa constitucional inconsequente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado.[16]

Essa política nefasta da internação compulsória dos dependentes químicos já ganhou repercussão mundial, tendo recentemente, no último dia 05/03/2013, em Genebra na Suíça, Juan E. Mendez, Relator da ONU para o enfrentamento à Tortura

apresentou relatório ao Conselho de Direitos Humanos no qual sinaliza que as internações compulsórias para tratamento de usuários de Crack, prática adotada por autoridades em várias capitais do Brasil, como São Paulo e Rio de Janeiro, podem se constituir forma de tortura.[17]

Em sendo assim, a política da internação compulsória está andando na contramão da inclusão social e do respeito aos direitos humanos e sociais fundamentais que englobam, dentre outros, a saúde, a educação, a segurança, a proteção à infância e a assistência aos desamparados.

3.4. Cidadania

A cidadania, juntamente com a dignidade da pessoa humana, faz parte dos princípios fundamentais que constituem o nosso Estado Democrático e Social de Direito (CF; art. 1º, II e III), não se podendo restringir esse princípio ao direito fundamental de ser cidadão àquele que tem capacidade de votar e ser votado, assinalando Dalmo de Abreu Dallari que

Através do conceito de cidadania afirmam-se os direitos fundamentais da pessoa humana, na perspectiva da convivência, que é necessidade essencial de todos os seres humanos. Assim, conjugando-se os aspectos individuais e sociais, acentua-se também o dever de participação, inerente à cidadania.[18]

Com efeito, se efetivamente cidadania se revela na capacidade que um conjunto de direitos confere à pessoa de participar da vida e do governo de seu povo, de forma ativa, quem não a tem se encontra na condição de excluído da vida social, à sua margem, [19] ou seja, invisível, não participando da tomada de decisões por se encontrar sem visibilidade, na condição indesejável de vulnerável socialmente.

Ora, diante desse quadro, faz-se necessária a participação obrigatória de representantes da comunidade na área da educação e saúde, bem como em órgãos públicos que tratem dos direitos da criança e do adolescente, concretizando a democratização da sociedade que se dá por meio do exercício dos direitos da cidadania[20], que inclui o fomento à inclusão social daqueles que vivem à margem da sociedade civil, dando-lhes reais condições dignas de vida e moradia.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ante todo o exposto, entendemos que a política da internação compulsória de dependentes químicos que estejam em situação de vulnerabilidade social, sem que sejam curatelados, não atinge as recomendações terapêuticas da OMS e SENAD, viola direitos humanos fundamentais e promove a exclusão social daqueles que vivem na invisibilidade em sociedade.

Tal procedimento atende interesses econômicos e políticos, mas não o público de promover o bem-estar da população ao assegurar o acesso e a concretude dos direitos sociais fundamentais, aproximando-se de uma conduta que pode vir a configurar tortura, conforme consta de relatório enviado ao Conselho de Direitos Humanos da ONU, prática vedada na legislação constitucional e infraconstitucional no Brasil.

5. REFERÊNCIAS

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Agência Brasil. Em carta, especialistas criticam internação forçada de dependentes e pedem descriminalização de drogas no Brasil. Acessível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2013-05-05/em-carta-especialistas-criticam-internacao-forcada-de-dependentes-e-pedem-descriminalizacao-de-drogas>. Acesso em: 06 maio 2013.


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________. SENADO. CAS aprova a possibilidade de internação compulsória de usuários de drogas. Acessível em: <http://www12.senado.gov.br/noticias/materias/2013/04/10/cas-aprova-possibilidade-de-internacao-compulsoria-de-usuarios-de-drogas>.  Acesso em: 05 maio 2013.

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Integração de Competências no Desempenho da Atividade Judiciária com Usuários e Dependentes de Drogas. Coordenação geral de Arthur Guerra de Andrade. Brasília: Ministério da Justiça, Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas, 2011, 352 p.

JESUS. Damásio E. de. Lei dos juizados especiais criminais anotada. 5ed. ver. e atual. São Paulo: Saraiva, 2000, 160 p.

LAGRASTA NETO, Caetano (coord.) e outros. A lei dos juizados especiais criminais na jurisprudência. Coordenador Caetano Lagrasta Neto; Selecionadores Enéas Costa Garcia, Ricardo Cunha Chimenti, Waldemar Nogueira Filho. São Paulo: Editora Oliveira Mendes, 1998, 284 p.

MIRABETE, Julio Fabbrini. Juizados Especiais Criminais: comentários, jurisprudência, legislação. 4ed. São Paulo: Atlas, 2000, 486 p.
MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional. São Paulo: Atlas, 2002, 2921 p.
________. Direitos humanos fundamentais: teoria geral, comentários aos arts. 1º a 5º da Constituição da República do Brasil, doutrina e jurisprudência. 9ed. São Paulo: Atlas, 2011, 377 p.

SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos Direitos Fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 11ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, 504 p.

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Comentários à lei dos juizados especiais criminais. São Paulo: Saraiva, 2000, 199 p.



[1] Mestrando em Direitos Coletivos e Cidadania pela UNAERP. Especialista em Direito Público pela PUCMINAS. Especialista em Ciências Penais pela UNIDERP/REDE LFG. Professor de Penal e Processo Penal da FPU. Juiz de Direito de Entrância Especial em Minas Gerais.
[2] Mestre e Doutor em Direito pela PUCSP. Professor do Mestrado em Direitos Coletivos e Cidadania da UNAERP. Advogado e sócio fundador da Geraige Advogados Associados.
[3] Integração de Competências no Desempenho da Atividade Judiciária com Usuários e Dependentes de Drogas. Coordenação geral de Arthur Guerra de Andrade. Brasília: Ministério da Justiça, Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas, 2011, p. 93.
[4] CAS aprova possibilidade de internação compulsória de usuários de drogas. Acessível em: < http://www12.senado.gov.br/noticias/materias/2013/04/10/cas-aprova-possibilidade-de-internacao-compulsoria-de-usuarios-de-drogas>. Acesso em: 05 maio 2013.

[5] Em carta, especialistas criticam internação forçada de dependentes e pedem descriminalização de drogas no Brasil. Acessível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2013-05-05/em-carta-especialistas-criticam-internacao-forcada-de-dependentes-e-pedem-descriminalizacao-de-drogas>. Acesso em: 06 maio 2013.

[6] Idem. ob. cit.
[7] A droga – composição e ação no organismo. Crack é possível vencer. Acessível em: <http://www.brasil.gov.br/crackepossivelvencer/a-droga/composicao-e-acao-no-organismo>. Acesso em: 05 maio. 2013.
[8] Integração de Competências no Desempenho da Atividade Judiciária com Usuários e Dependentes de Drogas. Coordenação geral de Arthur Guerra de Andrade. Brasília: Ministério da Justiça, Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas, 2011, p. 129.
[9] Idem, p. 75.
[10] Idem, p. 100 -107.
[11] Idem, op.cit. p. 157.
[12] Idem. op. cit. p. 178-9.
[13] Congresso condena mudança na Lei Antidrogas. Acessível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2013-05-03/congresso-condena-mudanca-na-lei-antidrogas>. Acesso em: 06 maio 2013.
[14] Idem. ibidem.
[15] A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 11ed. rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, p. 46-7
[16] TJMG-AGrCv nº 1.0134.11.002747-8/001. Rel. Des. Wander Marotta, j. 16/11/2011, pub. 02/09/2011.
[17] Internação compulsória: ONU declara que pode ser forma de tortura. Acessível em: <http://www.projetolegal.org.br/index.php/artigos/232-internacao-compulsoria-onu-declara-que-pode-ser-forma-de-tortura>. Acesso em: 14 maio 2013.
[18] Direitos humanos e cidadania. 2ed. São Paulo: Moderna, 2011, p. 22.
[19] Idem. Ibidem.
[20] Idem. Ob. cit., p. 24.


Publicado: Revista da AJURIS - Ano XL - nº 130 - Junho de 2013, p. 73-88