sexta-feira, 18 de setembro de 2015

ESTUPRO: UMA (RE) LEITURA TIPOLÓGICA

DELITO DE ESTUPRO: UMA (RE) LEITURA TIPOLÓGICA 
CRIME OF RAPE: A TYPOLOGICAL (RE) READING 



Antonio José Franco de Souza Pêcego 


RESUMO: O delito de estupro com as alterações produzidas pela Lei n. 12.015/2009, diante da revogação do delito de atentado violento ao pudor, passou a abranger em seu tipo objetivo a descrição do gênero atos libidinosos, o que tem gerado controvérsia doutrinária e judicial sobre a classificação do referido tipo quanto à ação e, em consequência, violação de direitos e princípios fundamentais do condenado em virtude de uma exegese equivocada que está dando azo a condenações desproporcionais e desarrazoadas. O objetivo deste artigo é esclarecer a real classificação tipológica quanto à ação do delito de estupro, enfrentando o problema de se definir de qual se trata e suas implicações, utilizando o método hipotético-dedutivo para se chegar, como resultado, a uma interpretação mais razoável e adequada da classificação preconizada do tipo penal do estupro, o que viabilizará uma aplicação mais racional e equânime da lei penal num Estado Democrático de Direito. 

PALAVRAS-CHAVE: Estupro. Ação. Tipo penal. Classificação. 

SUMÁRIO: 1 – Introdução. 2 – Tipos penais quanto a conduta. 2.1 – Tipos simples ou unitários. 2.2 – Tipos mistos, compostos ou de conteúdo variável. 3 – Tipo legal do estupro com a Lei n. 12.015/2009. 3.1 – O tipo legal na doutrina. 3.2 – O tipo legal na jurisprudência. 3.3 – Reflexos na aplicação da pena e na dignidade da pessoa humana. 4 – Uma (re) leitura do tipo penal do estupro. 5 – Considerações finais. Referências. 


1 INTRODUÇÃO 

Os delitos de atentado violento ao pudor (CP; art. 214) e estupro (CP; art. 213), com a alteração promovida no Código Penal pela Lei n. 12.015/2009, foram unificados no artigo 213 (“Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”), o que tem gerado grande controvérsia judicial, pouco recomendável, sobre a viabilidade ou não do concurso de crimes na eventual prática cumulativa num mesmo contexto fático de conjunção carnal e outros atos libidinosos, bem como posições doutrinárias sobre essa classificação do tipo penal que aglutinou num único dispositivo as duas figuras que outrora eram separadas (atentado violento ao pudor e estupro). 

É certo que atos libidinosos são o gênero e, no caso, conjunção carnal é a espécie, assim como que é viável que aqueles antecedam ou não este num mesmo contexto fático, daí a importância de se enfrentar essa questão com a unificação ao delito de estupro do antigo atentado violento ao pudor, viabilizando uma exegese mais adequada. 

Dentro desse contexto, faz-se necessário enfrentar a problemática da classificação do tipo com relação à conduta que necessita ser aclarada de forma a evitar decisões judiciais que venham a macular a dignidade da pessoa humana, princípios penais constitucionais, direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição Federal.  

2 TIPOS PENAIS QUANTO A CONDUTA 

A doutrina penalista tem dado pouca atenção ao longo do tempo a essa classificação que tem reclamado, diante do quadro atual, uma atenção especial em virtude da posição de parte da doutrinária e jurisprudência sobre essa questão. Após a Lei n. 12.015/2009 que aglutinou num único tipo legal de estupro do art. 213 do CP (“Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”) parte do que dispunha o revogado delito do art. 214 do CP (“Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal”), se iniciou uma discussão jurisprudencial sobre a classificação do tipo, como posições judiciais diversas e graves reflexos na pessoa do condenado para uma das adotadas e no princípio da segurança jurídica. 

A exigência de alta produção judicial para alimentar o sistema capitalista, tem priorizado a quantidade em detrimento da qualidade, fomentando o senso jurídico comum em detrimento do crítico, fortalecendo uma exegese menos acurada e a opinião pública que se lastreia numa mídia sensacionalista movida pelo sentimento punitivista. Assim, diante do instável quadro atual, passamos a enfrentar o tema, afirmando, de plano, na esteira da doutrina autorizada que quanto à conduta, classificam-se os tipos penais em simples e mistos. 

2.1 TIPOS SIMPLES OU UNITÁRIOS 

São aqueles que têm apenas um núcleo do tipo que se expressa por meio de um verbo que informa a conduta reitora ou nuclear da ação que viola o bem jurídico tutelado pela norma penal. Expressam uma única ação desenvolvida por meio de apenas um verbo e, em consequência, o fato-crime em espécie, não reclamando maiores delongas.  

2.2 TIPOS MISTOS, COMPOSTOS OU DE CONTEÚDO VARIÁVEL 

Os tipos penais mistos - compostos para VARGAS (2014, p. 146) -, se dividem em alternativos e por acumulação. Parte da doutrina penal tem dado pouco ou nenhum enfoque a essa distinção, ou quando o faz, em regra, não se utiliza da profundidade necessária, contudo consignamos que FRAGOSO (1985, p. 161-162) com propriedade e profundidade abordou o tema à época. Para este penalista, os tipos penais mistos alternativos são aqueles em que o núcleo do tipo se apresenta em mais de um verbo, sendo indiferente se a conduta do agente se realiza mediante uma ação que se amolde apenas um deles ou não, já que há fungibilidade e a unidade delituosa não se altera, violando-se sempre um mesmo bem ou interesse tutelado. 

Já os tipos penais mistos por acumulação, não cumulativos como consigna (FRAGOSO, 1985, p. 162), igualmente são aqueles em que há no núcleo do tipo mais de um verbo a identificar a conduta do agente, contudo diversamente dos alternativos, elas são infungíveis entre si, havendo a possibilidade real e concreta da ocorrência de concurso de crimes dentro do mesmo contexto fático. 

Na mesma trilha se encontra MASSON (2012a, p. 260) para quem no tipo misto alternativo há descrição de mais de uma conduta como hipóteses de realização do mesmo delito, não alterando a unidade a prática de mais um núcleo do tipo, enquanto no misto, que chama de cumulativo, há realização de uma conduta leva ao concurso material, como se dá no abandono material do art. 244 do CP. 

De forma bem didática, há quem na atualidade registre ao tratar dessa classificação, que no tipo misto alternativo “há uma fungibilidade (conteúdo variável) entre as condutas, sendo indiferente que se realizem uma ou mais, pois a unidade delitiva permanece inalterada”, enquanto no tipo misto por acumulação “não há fungibilidade entre as condutas, o que implica, em caso de se realizar mais de uma, a aplicação da regra cumulativa – concurso material” (PRADO, 2011, p. 330-331). 

3 TIPO LEGAL DO ESTUPRO COM A LEI N. 12.015/2009

Dispõe, ipsis litteris, a atual redação do art. 213 do Código Penal: 

Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso. 

Destarte, para enfrentarmos a problemática a que nos dispomos, resta-nos fazer uma (re) leitura do dispositivo que nos permita apurar se estamos diante de que tipo penal, se simples ou composto, se este é alternativo ou por acumulação. 

3.1 O TIPO PENAL NA DOUTRINA 

O delito de estupro (CP; art. 213), com a nova redação dada pela Lei n. 12.015/2009 passou a aglutinar no seu elemento descritivo os atos libidinosos do revogado art. 214 do CP, como já pacificado pela doutrina e jurisprudência. A conjunção carnal sempre foi espécie do gênero atos libidinosos, como continua a ser, embora integrando na atualidade ambas as denominações no mesmo tipo legal (estupro), não sendo, portanto, de espécies diferentes antes ou depois da Lei n. 12.015/2009, o que sempre demonstrou a duvidosa admissibilidade de reconhecimento de crime continuado, concurso material ou formal de crimes quando praticado numa mesma situação fática, objeto de inúmeras controvérsias judiciais, inclusive no STJ e STF. 

Nessa linha, com a nova redação do art. 213 do CP constata-se que, por uma questão de política criminal, o legislador infraconstitucional entendeu por bem fundir em um único tipo legal a conjunção carnal e outro ato libidinoso, não fazendo diferença se o agente no mesmo contexto fático realizou ou não ambas, uma vez que estaremos diante de uma única ação que caracteriza o delito de estupro e, em consequência - para os que assim sustentam a sua possível ocorrência - a unidade do delito de estupro não se irá alterar. Sobre esse aspecto, leciona BITENCOURT (2013, p. 52): 

O constrangimento ilegal objetiva a prática de atos de libidinagem (qualquer das duas modalidades, ou ambas, isoladas, conjuntas ou simultaneamente). A violência aliada ao dissenso da vítima – duas elementares típicas, uma expressa (violência), e outra implícita (dissenso) – devem ser longamente demonstradas, nas duas figuras típicas. Por outro lado, tratando-se de crime de ação múltipla (ou de conteúdo variado) não há que se falar em concurso de crimes, material ou formal, quando praticados no mesmo contexto. Supera-se, assim, aquela enorme dificuldade da jurisprudência majoritária que insistia interpretar, no mesmo contexto, a configuração de concurso material de crimes, ainda que se tratasse de meros atos preliminares ou até vestibulares. No entanto, quando tais fatos – conjunção carnal e atos libidinosos diversos – forem praticados em contextos distintos, não há como não admitir o concurso de crimes, a nosso juízo, em continuidade delitiva ou em concurso material, dependendo das circunstâncias, seja pela extrema gravidade, seja por desígnios autônomos ou simplesmente por política criminal para desencorajar a prática de atos tão repugnantes. (grifo do autor) 

NUCCI (2012, p. 940-941) é enfático ao assinalar, numa visão garantista, sobre a alteração produzida no dispositivo em comento pela Lei nº 12.015/2009 que: 

Hoje, tem-se o estupro, congregando todos os atos libidinosos (dos quais a conjunção carnal é apenas uma espécie) no tipo penal do art. 213. Esse modelo foi construído de forma alternativa, o que também não deve causar nenhum choque, pois o que havia antes, provocando o concurso material, fazia parte de um excesso punitivo não encontrado em outros cenários de tutela penal a bens jurídicos igualmente relevantes. A dignidade da pessoa humana está acima da dignidade sexual, pois esta é apenas uma espécie da primeira, que constitui o bem maior (art. 1º, III, CF). Logo, pretender alavancar a dignidade sexual acima de todo e qualquer outro bem jurídico significa desprestigiar o valor autêntico da pessoa humana, que ficaria circunscrita à sua existência sexual, portanto, deve ter todos os direitos respeitados, tal como o autor de qualquer outro delito grave. Particularmente, não se podem olvidar os princípios-garantia, constitucionalmente previstos, em nome de um subjetivismo individualista e, por vezes, conservador, para a interpretação do novo art. 213. Visualizar dois ou mais crimes, em concurso material, extraídos das condutas alternativas do crime de estupro, cometido contra a mesma vítima, na mesma hora, em idêntico cenário, significa afrontar o princípio da legalidade (a lei define o crime) e o princípio da proporcionalidade, vez que se permite dobrar, triplicar, quadruplicar etc., tantas vezes quantos atos libidinosos forem detectados na execução de um único estupro. [...] Essa é a visão do art. 213, que não deve comportar tergiversação. [...] A nova redação do art. 213 adotou a conhecida fórmula do tipo misto alternativo, que, em nome da legalidade e em respeito à proporcionalidade, garantias constitucionais fundamentais, deve ser respeitado. A submissão à lei é justamente o escudo protetor do indivíduo, caracterizando o Estado Democrático de Direito, cuja principal missão é tutelar a dignidade da pessoa humana. 

CAPEZ (2012, p. 37-38) ao tratar do tema, arremata no mesmo sentido dos demais doutrinadores acima que: 

Finalmente, pode suceder que o agente primeiro pratique atos libidinosos diversos da conjunção carnal (coito anal ou oral), vindo depois a realizar a conjunção carnal. Nesse contexto, caso o agente, por exemplo, viesse a ser surpreendido no momento em que estava para introduzir o pênis na cavidade vaginal, na antiga sistemática do Código Penal, havia o posicionamento de que poderia responder pelo crime de estupro tentado em concurso com o revogado crime de atentado violento ao pudor. No entanto, com o advento da Lei n. 12.015/2009, os atos libidinosos diversos da conjunção carnal passaram a integrar o tipo penal do art. 213 do CP, de forma que, uma vez tendo sido praticados no mesmo contexto fático, haverá crime único. 

Assim, sem embargo, podemos afirmar que no tipo penal misto alternativo a ação é única que se pode dar por mais de uma conduta nuclear, por isso há fungibilidade entre elas e a unidade do delito não se altera com a prática ocasional de mais de uma delas. Lado outro, no tipo misto por acumulação há viabilidade da prática, no mesmo contexto ou não, de mais de uma ação dentro do mesmo tipo legal, ainda que mediante mais de uma conduta, violando sempre, em ambos os tipos penais, o mesmo bem jurídico, contudo estas ações são infungíveis entre si que, em regra, estão separadas gramaticalmente por ponto e vírgula, levando em consideração que toda ação humana dolosa, que não seja instintiva, decorre da necessária presença subjetiva dos elementos volitivos e intelectivos, sem que necessariamente se faça presente o elemento subjetivo especial. 

Temos como exemplo de tipo misto alternativo, de ação múltipla ou conteúdo variável, dentre outros, o “Tráfico de Drogas” (art. 33 da Lei n. 11.343/2006), bem como do tipo misto por acumulação o delito de “Parto Suposto. Supressão ou alteração de direito inerente ao estado civil de recém-nascido” (CP; art. 242). 

Dessa forma, entendem os doutrinadores supracitados que se trata o atual artigo 213 do CP de um tipo misto alternativo em que as condutas referentes à ação delituosa estão separadas pela conjunção alternativa ou, mas não um tipo misto por acumulação, uma vez que não há fatos ou ações distintas que integram o mesmo tipo legal, mas apenas a possibilidade de haver uma pluralidade de atos por parte do agente em uma única ação (estupro) que se desenvolva dentro do mesmo contexto fático, contrariamente a MASSON (2012b, p. 17-18) que crítica esse posicionamento por entender se tratar o delito de estupro de um tipo penal simples. 

3.2 O TIPO PENAL NA JURISPRUDÊNCIA 

Na atualidade, após as modificações introduzidas pela Lei n. 12.015/2009, para configurar o tipo penal do estupro de não-vulnerável (CP; art. 213) ou de vulnerável (CP; art. 217-A), tanto faz se há conjunção carnal ou ato libidinoso diverso, requisito necessário que o Superior Tribunal de Justiça, mutatis mutandis, já pacificou com relação ao estupro de vulnerável diante da clareza descritiva do tipo legal: 

AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. PRÁTICA DE CONJUNÇÃO CARNAL OU DE ATO LIBIDINOSO DIVERSO CONTRA MENOR. PRESUNÇÃO DE VIOLÊNCIA. NATUREZA ABSOLUTA. ART. 217-A DO CP. AGRAVO REGIMENTAL IMPROVIDO. 1. Para a consumação do crime de estupro de vulnerável, não é necessária a conjunção carnal propriamente dita, mas qualquer prática de ato libidinoso contra menor. Jurisprudência do STJ. 2. Agravo regimental improvido.5 Entretanto, no que diz respeito à classificação do tipo penal do crime de estupro de não-vulnerável, o Superior Tribunal de Justiça se encontrava dividido de longa data, notadamente quando há a prática de conjunção carnal seguida de atos libidinosos no mesmo contexto fático ou vice-versa. À unanimidade, a 6ª Turma entendia que a nova redação do art. 213 do CP, dada pela Lei n. 12.015/2009, fundiu em um único tipo legal o atentado violento ao pudor e o estupro6 , o que o caracteriza como tipo misto alternativo, enquanto a 5ª Turma, igualmente à unanimidade, entende que as referidas condutas foram reunidas num único tipo legal (CP; art. 213), viabilizando, neste caso, o concurso de crimes quando praticados num mesmo contexto fático7 , entendendo, portanto, se tratar de um tipo misto. STJ. AgRg no REsp 1244672/MG. 5ª Turma. Rel. Min. CAMPOS MARQUES (Desembargador Convocado do TJ/PR). j. 21/05/2013. DJe 27/05/2013. Igualmente, neste último sentido, encontramos precedentes do Supremo Tribunal Federal por meio dos Informativos nº 577, 578 e 595.

Por sua vez, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais ainda se encontra dividido sobre o tema, aliando-se uma parte ao entendimento do STF e da 5ª Turma do STJ, enquanto outra, não menos qualificada, comungava do posicionamento da 6ª Turma do STJ e de grande parte da doutrina, como se posicionou a sua 3ª Câmara Criminal ao negar provimento à apelação do Ministério Público que pretendia ver reformada a sentença singular para ser reconhecido o concurso de crimes dentro do mesmo contexto fático de um delito de estupro (CP; art. 213), com base na tese de que se tratava de um tipo misto por acumulação. 

Contudo, recentemente a 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça que congrega a 5ª e 6ª Turma, pacificou o entendimento que se trata de crime único por ser um tipo misto alternativo, se praticadas as condutas descritas no delito num mesmo contexto, o que deve gerar reflexos positivos nos Tribunais de Justiça dos Estados.   

3.3 REFLEXOS NA APLICAÇÃO DA PENA E NOS DIREITOS FUNDAMENTAIS 

Na aplicação da pena, a incidência de concurso de crimes no mesmo contexto fático, com base no entendimento que o atual delito de estupro é um tipo misto por acumulação, nos levará à absurda e desproporcional possibilidade de se apenar com maior gravidade o estupro de não-vulnerável que o de vulnerável, uma vez que este é flagrantemente um tipo penal misto alternativo, o que reclama uma interpretação mais racional, equânime e sistemática do disposto no atual artigo 213 do Código Penal. 

Nessa linha, considerar o delito de estupro um tipo misto por acumulação quando da aplicação da pena, viola o princípio constitucional da individualização da pena, da humanidade das penas e também o princípio do ne bis in idem, já que o agente estará sendo apenado de forma cruel duas ou mais vezes pelo mesmo fato, ou até mesmo de forma mais ousada, é afirmar que se está adotando, pura e simplesmente, a teoria das essências de Platão (OMMATI, 2012, p. 69-70) sob o fundamento simplório de que a nova redação do delito de estupro contém também a figura do revogado crime de atentado violento ao pudor, por isso se trata de um tipo misto por acumulação, quando se essa fosse a mens legis, bastaria permanecer vivo o revogado art. 214 do CP com a edição da Lei n. 12.015/2009. 

Assim, para nós, a decisão judicial que reconhece se tratar de tipo misto por acumulação para considerar eventual ocorrência de concurso de crimes, viabiliza uma intervenção estatal além da necessária, desmedida, extrapolando os limites do ius puniendi ao permitir um agravamento desproporcional e abusivo da pena quando da sua fixação, o que vai de encontro ao moderno direito penal garantista e, a nosso sentir, macula o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana (vetor dos demais direitos fundamentais) que lastreia um Estado Democrático e Social de Direito, sendo a melhor solução aquela “de tomar a norma penal como instrumento de delimitação entre o poder de intervenção do Estado e a liberdade individual” (TAVARES, 2000, p. 158). 

Como sabido, a dignidade da pessoa humana é princípio fundamental do nosso Estado Democrático de Direito (CF; art. 1º, III) e é direito individual fundamental, por isso falar da dignidade da pessoa humana é falar de direitos humanos e não de coisas ou objetos, razão pela qual todo e qualquer réu em um processo criminal, por pior que tenha sido o crime praticado, tem direitos como todo e qualquer ser humano, notadamente, no caso, de ser tratado com dignidade de forma a não ter maculada a sua liberdade de forma desarrazoada e a sua integridade física e moral de maneira desproporcional já que por seus atos se encontra sendo julgado com possibilidades de sofrer as sanções legais pertinentes. 

Nesse viés, é razoável que sofra, no caso de condenação pela prática do referido delito de estupro, uma pena proporcional à sua culpabilidade, dentro dos limites legais, mas não que venha a sofrer qualquer sanção desmedida com base numa exegese decorrente de um movimento punitivista que enfatiza o efeito simbólico do Direito Penal para gerar a falsa sensação de segurança à sociedade. 

O direito é uma ciência da regulação que nos conduz com facilidade ao senso comum jurídico, perigoso terreno movediço por onde tramitam os operadores do direito por poder nos levar a cometer injustiças na falta de exercício de um senso jurídico crítico que leve o nosso conhecimento a estar em crise, viabilizando, assim, dar a cada um, o que é seu por direito de forma mais equânime e racional que afaste as injustiças. 

COMPARATO (2013, p. 50) se posiciona com acerto quando afirma que 

a compreensão da dignidade suprema da pessoa humana e de seus direitos, no curso da História, tem sido, em grande parte, o fruto da dor física e do sofrimento moral. A cada grande surto de violência, os homens recuam, horrorizados, à vista da ignomínia que afinal se abre claramente diante de seus olhos; e o remorso pelas torturas, pelas mutilações aviltantes faz nascer nas consciências, agora purificadas, a exigência de novas regras de uma vida mais digna para todos. 

O princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento do nosso Estado Democrático e Social de Direito (CF; art. 1º, III), “constitui o valor unificador de todos os direitos fundamentais, que, na verdade, são uma concretização daquele princípio”, não se podendo negar que todo aquele que sofre qualquer restrição de sua liberdade de forma desmedida ou ilegal, tem maculada a sua dignidade humana que tem nesse direito fundamental de primeira dimensão (liberdade) a sua direta correspondência mais elementar. (SARLET, 2012, p. 95) 

4 UMA (RE) LEITURA DO TIPO PENAL DO ESTUPRO 

O que dá origem a um fato-crime é a pratica de uma ação típica, ilícita e culpável, sendo que ela pode se desenvolver por uma ou mais condutas que possam estar descritas no tipo penal. Nessa esteira, se sabe que são os verbos que informam as condutas nucleares ou reitoras, mas há tipos penais que possuem vários verbos, embora apenas alguns possam ser tidos como núcleos do tipo, fazendo-se necessária uma leitura acurada com base na classificação dos tipos penais quanto as suas condutas para uma correta e racional identificação daquelas que são tidas pela norma penal como incriminadoras. 

No caso, o delito de estupro de não-vulnerável na sua redação atual assim preceitua em seu tipo fundamental: Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso. 

Nessa toada, podemos afirmar sem medo de errar que temos descrito no referido tipo penal os verbos constranger, praticar e permitir, o que tem levado e/ou levava, com o devido respeito, há interpretações equivocadas sobre a classificação do delito de estupro quanto à conduta. Com efeito, a conduta nuclear desse delito se expressa no verbo constranger, sendo que este se dá por meio de violência ou grave ameaça, para que alguém tenha com o (a) autor (a) conjunção carnal, ou que seja, assinalo, constrangido da mesma forma a praticar ou permitir com ele se pratique outro ato libidinoso, como bem pontua MASSON (2012b, p. 18), pois afinal, com consentimento não há constrangimento. 

Ora, em sendo assim, inegavelmente a conduta reitora ou nuclear se expressa por meio do verbo constranger que é o núcleo do tipo, sendo os verbos praticar e permitir apenas informadores de outras formas possíveis de se dar a violência sexual, porque tanto para a conjunção carnal como para os outros atos libidinosos, há de estar presente o dissenso da vítima que ocorre por meio da conduta de constranger. 

Dessa forma, entendemos que o delito de estupro de não-vulnerável na atualidade, numa releitura do dispositivo, respeitado entendimentos contrários, se trata de um tipo penal simples ou unitário, o que inviabiliza - assim como para parte da doutrina e jurisprudência que entendem se tratar de um tipo misto alternativo - que se dê a ocorrência de concurso de crimes quando num mesmo contexto fático forem praticadas a conjunção carnal e outro (s) ato (s) libidinoso (s). 

Entendimento em contrário, como sustenta parte da jurisprudência, é afirmar equivocadamente que o delito de estupro após a Lei n. 12.015/2009 se trata de um tipo misto por acumulação, sendo certo que nada obsta, muito pelo contrário, antes se recomenda, na hipótese da prática concomitante e/ou simultânea desses atos libidinosos acima citados, que quando da sentença e análise da primeira circunstância judicial da culpabilidade prevista no art. 59 do CP para a fixação da pena-base, se leve em consideração esse fato em face do necessário enfrentamento de um juízo de censurabilidade ou reprovabilidade da conduta do agente na prática do referido delito. 

Lado outro, no que tange ao delito de estupro de vulnerável do art. 217-A do CP, o mesmo, ao contrário daquele praticado contra não-vulnerável, não reclama que a vítima tenha sido constrangida, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar outro ato libidinoso, admitindo-se, portanto, a prática do ato sexual com o seu consentimento. 

Antes da alteração legal, ao estupro de menor de 14 anos era aplicado o antigo art. 213 do CP porque se presumia a violência em face do disposto no revogado art. 224, “a”, do CP, contudo, na atualidade, essa conduta tida como hedionda que passou a ter dispositivo próprio. Nessa toada, o legislador passou a considerar a vulnerabilidade da vítima em detrimento da presunção anterior de violência, ou seja, não mais se lastreou na violência ficta que se baseava na incapacidade da vítima consentir validamente ou oferecer resistência, mas sim, agora, na situação de fragilidade ou perigo em decorrência de sua fraqueza moral, social, cultural, fisiológica e etc. 

Destarte, para esse delito, em se caracterizando como um tipo misto alternativo, como inicialmente afirmado, não importa se o agente, no mesmo contexto fático, praticou a conjunção carnal e outro ato libidinoso contra a mesma vitima que ele responderá por crime único, embora a sua conduta possa sofrer maior reprovabilidade quando da análise da culpabilidade do art. 59 do CP para a fixação da pena-base. Entretanto, finalizando, não podemos deixar de consignar, ad cautelam, que o novo delito do art. 217-A do CP prevê uma sanção penal mais gravosa do que a do revogado art. 214 do CP, no que, forçosamente, se aos tempos dos fatos ainda estava em vigor o supracitado dispositivo, quando da sentença criminal necessariamente deve ser o mesmo aplicado, ainda que se encontre revogado, em respeito ao principio constitucional da irretroatividade da lei penal mais gravosa. 

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS 

Como salientamos neste pequeno e específico trabalho, diversamente da posição doutrinária e de parte da jurisprudência apresentada sobre a nova redação dada ao art. 213 do CP pela Lei nº 12.015/2009, entendemos que se trata de um tipo penal simples ou unitário e não misto alternativo ou por acumulação, uma vez que constranger é a única conduta nuclear contida no tipo penal em espécie. 

Considerando-se que a conjunção carnal é espécie do gênero atos libidinosos, e que o dispositivo acima visa tutelar o bem imediato (liberdade sexual) e mediato (dignidade sexual), é razoável, justo e equânime desenvolver uma exegese que dê racionalidade à referida norma penal de forma que consideremos como uma única ação, por meio da conduta de constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter uma pluralidade de atos sexuais dentro de um mesmo contexto fático, como um crime único, seja como tipo simples ou, alternativamente, para os que sustentam a sua existência, como misto alternativo, mas não misto por acumulação. 

Dessa forma, em assim se posicionando juridicamente, faz-se com que o Estado na ânsia de ver concretizar o seu ius puniendi se abstenha de violar os princípios da dignidade da pessoa humana, proporcionalidade, humanidade, legalidade e do ne bis in idem, limitando-o por meio do direito penal de forma a assegurar o ius libertatis que exige uma individualização da pena garantista, que efetivamente atenda os seus fins e respeite os direitos e garantias fundamentais de um Estado Democrático de Direito. 

REFERÊNCIAS 

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Geral. 11ed. São Paulo: Saraiva, 2007, 754 p., vol. 1. 

______. Tratado de Direito Penal: Parte Especial. 7 ed. rev., ampl. e atual., São Paulo: Saraiva, 2013, 599 p., vol. 4. 

______. Código Penal Comentado. 7ed. São Paulo: Saraiva, 2012, 1348 p. 

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/informativo/pesquisarInformativo.asp>. Acesso em: 8 jun. 2013.
http://www.stf.jus.br/portal/informativo/ . Acesso em: 8 jun. 2013. Antonio José Franco de Souza Pêcego Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 66, pp. 75 - 93, jan./jun. 2015 91 

______. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no REsp 1244672/MG. 5ª Turma. Rel. Min. CAMPOS MARQUES (Desembargador Convocado do TJ/PR). j. 21/05/2013. DJe 27/05/2013. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia/doc.jsp?livre=estupro+e+tipo+penal&&b=ACOR&p=true=&t=&l=10&i=16>. Acesso em: 08 jun. 2013. 

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FONTE: http://www.direito.ufmg.br/revista/index.php/revista/article/view/1679/1595 

*Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 66, pp. 75 - 93, jan./jun. 2015