quarta-feira, 31 de outubro de 2012

CRACK E A INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA

Notícias

31 outubro 2012
Classificação e dependência

Parlamentar defende internação compulsória

O relator da proposta que altera a Lei Antidrogas (PL 7.663/2010), deputado Givaldo Carimbão (PSB-AL), afirmou que vai manter em seu relatório na comissão especial a internação compulsória e a classificação das drogas por sua capacidade de causar dependência, pontos criticados por técnicos do governo.

Segundo o parlamentar, a Justiça entende que a internação deve ser compulsória. No entanto, explicou o deputado, o juiz não pode mandar internar uma pessoa sem um laudo médico que indique a internação.

“Lamento meia dúzia de pessoas que se encastelaram no poder de repente dizerem que não aceitam em nome do povo brasileiro. Nós também representamos o povo brasileiro. Então eu vou discutir mais calmamente. Mas na hora de decidir, nós vamos decidir. Eu vou tentar convencer com diálogos. Se não, vamos ter que votar a matéria e mandar para a Câmara e o Senado votarem”, disse Carimbão, nesta terça-feira (30/10), em seminário sobre sistema nacional de políticas sobre drogas, promovido pela comissão especial que examina o assunto.

Dependência química

Para o subsecretário de política sobre drogas de Minas Gerais, Cloves Benevides, é preciso examinar com cuidado a classificação das drogas por sua capacidade de causar dependência. Apenas a Inglaterra usa esse sistema, diz ele.
 
“É preciso um debate com a academia brasileira, com a sociedade científica para que, então, a partir de parâmetros concretos, se possa avaliar a quantidade, tipo de droga, via de administração e riscos à saúde e à sociedade”, disse Benevides.

O coordenador estadual de políticas públicas sobre drogas do Espírito Santo, Renato Vieira, questionou que tipos de dados serão coletados e como será feita a coleta pelos sistemas nacionais de informação sobre drogas.

Já o presidente da comissão especial, deputado Jorge Silva (PDT-ES), disse que está trabalhando sobre o texto do PL 7.663/2010 para que possa produzir a melhor lei possível para o enfrentamento às drogas. Silva foi o autor do requerimento para o seminário. Com informações da Agência Camara.


Revista Consultor Jurídico, 31 de outubro de 2012


NOTA DO EDITOR: Flagrantemente inconstitucional a internação compulsória de viciados em crack ou qualquer outro tipo de droga. É exclusão social e não atenção social do problema que assola a sociedade. Qualquer um com o mínimo de experiência de vida, sabe que o dependente químico não vai se livrar dela se for forçado a tal. O que necessitamos é de reais políticas públicas de redução de danos e não soluções midiáticas e simbólicas.

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

CONSIDERAÇÕES SOBRE O CRIME CONTINUADO

29 outubro 2012
Ficção jurídica

Algumas considerações sobre o crime continuado


O direito antigo, ensina Fragoso[1], não conhecia o crime continuado. A figura foi introduzida pelos práticos italianos, mirando mitigar as penas do furto, que se praticado pela terceira vez, implicava na morte pela forca. A Feuerbach, informa Bruno[2], deve-se a sua introdução no Direito Positivo moderno, através do Código da Baviera de 1813.

De acordo com o nosso Código Penal (CP), que adotou a teoria puramente objetiva, considera-se crime continuado quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie, e pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subsequentes ser havidos como continuação do primeiro (artigo 71 do CP). Conforme dito, para a caracterização da continuidade delitiva “não se requer que haja qualquer dolo de conjunto ou propósito deliberado de praticar sucessivamente fatos delituosos”.[3] Sem qualquer consideração de ordem subjetiva, verificam-se na espécie somente elementos objetivos em relação aos vários crimes, quais sejam: i) crimes da mesma espécie; ii) conjunto das circunstâncias previstas no artigo 71 do CP (condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes).

Para Zaffaroni e Pierangeli[4], que se referem à figura do crime continuado como “falso crime continuado” ou “concurso material atenuado”, o artigo 71 do nosso Código Penal busca “estabelecer uma atenuação nos casos de menor culpabilidade, por causa da unidade ou condições objetivas, que fundamentam o juízo de culpabilidade.” Segundo os citados penalistas, as circunstâncias referidas pelo Código Penal fazem parte da culpabilidade, as que dizem respeito às motivações do agente, não podendo, portanto, ser desvinculada da culpabilidade do crime anterior.

Percebe-se, na verdade, que a figura do crime continuado é uma ficção jurídica, visando amenizar a regra do concurso material. Nosso Código adota em relação à natureza jurídica e para fins de aplicação da pena no crime continuado a teoria da ficção jurídica, já que existem vários delitos.

Constituem requisitos do crime continuado:

a) pluralidade de condutas (ações ou omissões): a pluralidade de condutas não deve ser confundida com pluralidade de atos, posto que uma única ação pode se desdobrar em vários atos. De tal modo, ensina Bruno[5], “pode o agente subtrair em atos sucessivo, mas na mesma ocasião, objetos diverso, esparsos no local em que se encontra, e nem por isso comete crime continuado, mas apenas um furto instantâneo e comum”. Nada impede, portanto, que os bens jurídicos ofendidos tenham diverso titular. Assim, o agente, por ex., que entra em um ônibus e furta inúmeros objetos de vários passageiros;

b) crimes da mesma espécie: apesar de alguns entendimentos contrários no sentido de que crimes da mesma espécie estão contidos no mesmo tipo penal, tal entendimento não deve prevalecer, não devem ser confundidos com crimes idênticos. Crimes da mesma espécie são aqueles que, embora não necessariamente descritos pelo mesmo tipo penal – se não a lei falaria em crimes idênticos -, ofendem o mesmo bem jurídico. Neste sentido Fragoso[6] para quem “crimes da mesma espécie não são apenas aqueles previstos no mesmo artigo de lei, mas também aqueles que ofendem o mesmo bem jurídico e que apresentam, pelos fatos que os constituem ou pelos motivos determinantes, caracteres fundamentais comuns”. Ex. roubo e extorsão; calúnia e difamação; peculato e corrupção e etc.;

c) circunstâncias semelhantes de tempo, lugar, modo de execução e outras. O conjunto de tais circunstâncias é que informa o critério de aferição da continuação criminosa, segundo a apreciação do julgador. Isoladamente, nenhuma delas é decisiva. Podem as condutas estar distanciadas no tempo e, não obstante, as infrações serem consideradas continuadas. É o caso, por exemplo, do viajante comercial que em cada mês se apropria indebitamente de uma parte das quantias em dinheiro que recebe para entregar à empregadora.[7]

Na hipótese de reconhecimento da continuidade delitiva o juiz deve aplicar a pena de um dos crimes se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços. Na determinação do quantum relativo ao aumento da pena influi o número de infrações praticadas. Contudo, não poderão influir circunstâncias já valoradas para efeito do cálculo da pena-base, o que configuraria bis in idem.[8]

Por outro, entende-se que o critério que leva em conta o número de infrações para a determinação do aumento da pena não deve ser engessado e tomado com rigor matemático. Além do número de crimes que compõem a série continuada, o juiz deve observar no aumento os efeitos e à gravidade desses crimes, bem como as outras circunstâncias que se relacionam com a continuidade delitiva.[9]

O Supremo Tribunal Federal (STF) ao editar a Súmula 711 (“A lei penal mais grave aplica-se ao crime continuado ou ao crime permanente, se a sua vigência é anterior à cessação da continuidade ou da permanência”) equipara, com a devida vênia, equivocadamente, o crime continuado ao crime permanente para ampliar a punibilidade. No crime permanente a ação se protrai no tempo, o fato, em sua inteireza, ainda está sendo executado em período duradouro. O crime é realmente único. Exemplos clássicos é o crime de sequestro e de cárcere privado (artigo 148 do CP). Assim, se uma lei nova, ainda que mais gravosa, entra em vigor enquanto não cessar a permanência ela deverá ser aplicada posto que presente todos os elementos objetivos e subjetivos do tipo penal. Aqui, como bem acentua Bitencourt[10], não há ofensa ao princípio constitucional da irretroatividade da lei penal mais grave (artigo 5º, XL, da CF), já que se trata da incidência imediata da lei nova a fato que está ocorrendo no momento da sua entrada em vigor. Não havendo, neste caso, critica a ser feita a citada súmula.

Contudo, no que concerne ao crime continuado (uma ficção jurídica), já que na verdade vários crimes são praticados e os subsequentes tidos como continuação do primeiro, a Súmula 711 não deve prevalecer. De acordo com o Código Penal, “considera-se praticado o crime o momento da ação ou da omissão, ainda que outro seja o momento do resultado” (art. 4º). Ora, se no momento da pratica do primeiro crime, que servirá de base para a caracterização da continuidade delitiva, a lei é mais benéfica do que a dos crimes subsequentes, é evidente que a lei mais gravosa, ainda que atingido os crimes posteriores, não poderá ser aplicada, sob pena de violação do princípio constitucional da irretroatividade da lei mais grave, corolário do princípio da legalidade. Neste sentido, Bitencourt[11], para quem “o texto da Súmula 711, determinando a aplicação retroativa da lei penal mais grave, para a hipótese de crime continuado, estará impondo pena (mais grave) inexistente na data do crime para aqueles fatos cometidos antes de sua vigência”.

Em relação ao crime continuado é mister considerar as razões de política criminal que inspiraram o referido instituto no intuito de se evitar condenações às penas extremamente elevadas e desproporcionais contrariando sua própria finalidade. A figura do crime continuado, como destacado no início, tem por escopo beneficiar o infrator e mitigar os males de uma pena exacerbada.

[1] FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 1990, p.350.
[2] BRUNO, Aníbal. Direito Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 296.
[3] FRAGOSO, ob. cit.
[4] ZAFFARONI, Eugenio Raúl e PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte gera. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 626.
[5] BRUNO, Aníbal. Direito penal. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 302.
[6] FRAGOSO, ob. cit. p. 351.
[7] PIMENTEL, Manoel Pedro. Do crime continuado. 2. ed. rev. ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1969:146
[8] PRADO, Luiz Régis. Curso de direito penal brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p.465.
[9] FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições... ob. cit. p. 353.
[10] BITENCOURT, Cézar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 173.
[11] BITENCOURT, Cézar Roberto. Ob. cit. p. 174. No mesmo sentido QUEIROZ, para quem a Súmula 711 “implica uma inversão lógica e cronológica do conceito legal de continuação, ofendendo o princípio da legalidade. No delito continuado os crimes subsequentes são havidos como continuação do primeiro, e não o contrário...” (QUEIROZ, Paulo.http://pauloqueiroz.net/crime-continuado-e-a-sumula-711-do-supremo-tribunal-federal/)


Leonardo Isaac Yarochewsky é advogado criminalista e professor de Direito Penal da PUC-Minas.


Revista Consultor Jurídico, 29 de outubro de 2012

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

CONSTITUIÇÃO DE MILÍCIA PRIVADA

* Cezar Roberto Bitencourt
 
 
 
CONSTITUIÇÃO DE MILÍCIA PRIVADA
 
PARTE I
"Constituição de milícia privada

Art. 288-A. Constituir, organizar, integrar, manter ou custear organização paramilitar, milícia particular, grupo ou esquadrão com a finalidade de praticar qualquer dos crimes previstos neste Código:

Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos."

1. Considerações preliminares

A Lei nº 12.720, de 27 de setembro de 20
12, cria mais uma figura penal inserindo-o em nosso Código Penal de 1940, tipificando as ações dos denominados grupos de extermínio e das milícias privadas. Acrescenta, ademais, uma nova majorante ao crime de homicídio (§6º), quando praticado pelos referidos grupos. Igualmente, o crime de lesões corporais também é contemplado com majorante similar, nas mesmas circunstâncias, tendo redefinido seu parágrafo sétimo. Essas duas novas majorantes são, no entanto, examinadas conjuntamente com os respectivos crimes, em sede própria, lá no volume 2º, deste Tratado de Direito Penal.
Este novo tipo penal integra o Título IX do Código Penal, que é composto pelos crimes que, segundo o texto legal, pretendem tutelar a denominada paz pública. Mas, de plano, pode-se afirmar, que essa nova figura típica não se confunde com a “formação de quadrilha”, apresentando uma estrutura tipológica completamente diferente, v. g., não exige, a priori, a finalidade da prática indeterminada de crimes, e tampouco estabeleceu um número mínimo de participantes. Admite-se, na verdade, a finalidade de praticar qualquer dos crimes previstos no Código Penal, estando excluídos, por conseguinte, os crimes previstos na legislação extravagante, como veremos adiante.

2. Bem jurídico tutelado

Ao examinarmos, criticamente, o bem jurídico nos três crimes que, até então, integravam o presente Título do Código Penal, afirmamos: “Na verdade, ao longo de décadas a praxis encarregou-se de demonstrar que as três infrações penais que compõem o Título IX da Parte Especial não “criam” o pretendido “alarma social” (que produziria aquele sentimento de descrédito, de desconfiança etc.); pelo contrário, essa repercussão tem-se produzido não pela eventual prática de qualquer das referidas infrações, mas fundamentalmente pelo estardalhaço que as autoridades integrantes do sistema repressivo têm feito na grande mídia, sobretudo quando investigam os chamados “crimes empresariais”, cognominados “crimes de organizações criminosas”, particularmente aqueles considerados contra o sistema financeiro e contra o sistema tributário. Logo, o “alarma da coletividade” não é produzido pela eventual prática de crimes dessa natureza, mas sim pelo uso espalhafatoso que se faz de sua investigação (inclusive confundindo, intencionalmente ou não, concurso eventual de pessoas com quadrilha ou bando)” .

Ora, com a novel infração – constituição de milícia privada – a situação não é muito diferente, embora, pela estrutura da formação desse “novo” modelo de associação, possa produzir, in concreto, maior repercussão, mas pelos crimes que poderá cometer, normalmente, mais violentos e sanguinários, como veremos. No entanto, nesse caso, os crimes que o “grupo” praticar terão como objetos de tutela outros bens jurídicos, que não se confundem com o crime associativo em si, como pontificava Magalhães Noronha, examinando a figura da incitação ao crime (art. 286) : “Diverso, consequentemente, é o bem jurídico, aqui contemplado, daquele que é ofendido pelo crime objeto da instigação, v. g., linchamento, assalto etc.”.

Contudo, diferentemente das três figuras anteriores, a simples existência de organização paramilitar, milícia particular, grupo ou esquadrão, com finalidade de cometer crimes, sendo do conhecimento da população, é capaz de produzir-lhe, indiscriminadamente, um sentimento de medo, insegurança e até de pavor, atingindo aquele sentimento que nos referimos acima, e que, na ótica do legislador, seria a paz pública. Esse temor justifica-se exatamente pelos crimes que tais grupos, normalmente, dedicam-se a realizar, v. g. matanças, extermínios, sequestros etc.

O bem jurídico protegido, na nossa concepção, não é propriamente a “paz pública”, algo que até seria defensável nos ordenamentos jurídicos italiano e argentino, à luz de seus códigos penais da primeira metade do século passado, visto que eles enfatizavam o aspecto objetivo da ordem ou paz públicas. Como já referimos nos capítulos anteriores (arts. 286 a 288), nosso ordenamento jurídico prioriza o aspecto subjetivo, consequentemente, o bem jurídico protegido imediato, de forma específica, é o sentimento coletivo de segurança na ordem e proteção pelo direito, que se vê abalado pela conduta tipificada no art. 288-A, ora sub examine; não é, por certo, uma indemonstrável “paz pública”, pois, na maioria dos casos, a coletividade somente toma conhecimento de ditos crimes após serem debelados pelo aparato repressivo estatal, com a escandalosa divulgação que se tem feito pela mass media, como vem ocorrendo nos últimos anos.

Em síntese, paz social como bem jurídico tutelado não significa a defesa da “segurança social” propriamente. A rigor, bem jurídico tutelado imediato é a sensação ou o sentimento da população em relação a segurança social, ou seja, aquela sensação de bem-estar, de proteção e segurança geral, que não deixa de ser, em outros termos, uma espécie de reforço a mais da própria segurança ou confiança, qual seja, o de sentir-se seguro e protegido . No século passado, Enrico Contieri já sustentava, nesse sentido, que “bem jurídico objeto desses crimes é o sentimento coletivo de segurança de um desenvolvimento regular da vida social, de acordo com as leis”. E, a nosso juízo, essa doutrina continua atualizada e vigente em nosso sistema jurídico.

3. Sujeitos do crime

Sujeito ativo pode ser qualquer pessoa, em número mínimo de quatro (mais de três), tratando-se, por conseguinte, de crime de concurso necessário, a exemplo do que ocorre com o similar quadrilha ou bando.

Na nossa concepção, os inimputáveis (doentes mentais e menores de 18 anos) não podem ser incluído no número mínimo dessa figura típica, apenas para incriminar determinado indivíduo, sob pena de consagrar-se autêntica responsabilidade penal objetiva. Com efeito, incluí-los, em tal hipótese, em uma reunião se pessoas (constituição de milícia privada) representa uma arbitrariedade intolerável, mesmo que, in concreto, não se atribua responsabilidade penal a incapazes, utilizando-os tão somente para compor o número legal, pois violará a tipificação legal. Quando, por exemplo, o legislador de 1940 ao definir a tipificação do crime de quadrilha ou bando (288) referiu-se a “mais de três pessoas” visava, certamente, indivíduos penalmente responsáveis, isto é, aquelas pessoas que podem ser destinatárias das sanções penais. Reforçando esse nosso entendimento, invocamos o magistério de Sebastian Soler, in verbis: “Ese mínimo debe estar integrado por sujetos capaces desde el punto de vista penal, es decir, mayores de dieciseis años” .

Sujeito passivo, a exemplo do que ocorre no crime de quadrilha ou bando, é a coletividade em geral, um número indeterminado de indivíduos, ou seja, o próprio Estado, que tem a obrigação de garantir a segurança e o bem estar de todos. A admissão da sociedade como sujeito passivo não afasta, contudo, a possibilidade de, casuisticamente, existir individualmente um ou mais sujeitos passivos, como, por exemplo, quando for individualizável a vítima in concreto nos crimes praticados pela milícia privada; mas, nesse caso, já não será o sujeito passivo desta infração penal, mas daquelas que a própria milícia vier a praticar, isto é, serão sujeito passivo de outro tipo penal, e não deste.

4. Tipo objetivo: adequação típica

A Lei 12.720/12 criou nova modalidade de reunião de pessoas para delinquir, que não se confunde com o concurso eventual, e tampouco com a formação de quadrilha ou bando, sem falar no concurso para ao tráfico de drogas ilícitas (art. 35 da Lei 11.343/06). Naquele há uma associação ocasional, eventual, temporária, para o cometimento de um ou mais crimes determinados; nesta, a associação para delinquir é duradoura, permanente e estável, com o objetivo de praticar, indiscriminadamente, crimes indeterminados. No concurso eventual de pessoas exige-se no mínimo dois participantes para formar o concurso (art. 29), embora o texto legal nada diga a respeito. Concurso eventual de pessoas é a consciente e voluntaria participação de duas ou pessoas na prática de uma mesma infração penal; na quadrilha ou bando a exigência mínima é mais de três associados (art. 288). Em outros termos, configura-se a quadrilha ou bando quando mais de três pessoas formam uma associação organizada, estável e permanente, com programas previamente preparados para a prática de crimes, indeterminados. Associação de forma estável e permanente, com a finalidade de praticar crimes, indiscriminadamente, é o que distingue a formação de quadrilha do concurso eventual de pessoas. Assim, a simples organização ou acordo prévio para a prática de crimes previamente determinados está mais para o concurso eventual de pessoas do que para formação de quadrilha, ao contrário do que se tem apregoado indevidamente.

E na nova figura da constituição de milícia privada haveria um número mínimo necessário para configurá-la, e, nesse caso, qual seria?

O texto legal é, no particular, completamente omisso, voluntária ou involuntariamente, ficando a cargo de doutrina e jurisprudência sua interpretação e criação que deve ocorrer lógica e racionalmente. Poder-se-ia admitir a configuração de organização, milícia, grupo ou esquadrão composto somente por duas pessoas, que é, claramente, a menor reunião de pessoas? Logicamente, não, pois nenhuma das figuras mencionadas, por definição, admite sua formação tão somente com dois membros. Vejamos, exemplificativamente, o “grupo” - que nos parece, de todos, o menor agrupamento de seres -, não se coaduna com a ideia de “par”, isto é, dois indivíduos não formam um grupo, mas apenas uma dupla, que não se confunde com grupo.

Podemos ter dúvida, enfim, sobre a quantidade mínima, se três ou mais membros, mas uma coisa é certa: não pode ser menos, pois, nesse caso, repetindo, não seria um grupo, mas somente uma dupla, ou seja, apenas um par e não um grupo! Assim, no nosso entendimento, o crime de “constituição de milícia privada” não pode ser composto somente de duas pessoas; estamos convencidos de que, ante a lacuna legal, seja adequado exigir-se, a exemplo do crime de quadrilha (288), o mínimo de mais de três pessoas. Realmente, sua similaride e proximidade geográfica com aquele autoriza o entendimento que exige a mesma estrutura numérica, qual seja, mais de três pessoas reunidas com a finalidade de praticar crimes previstos no Código Penal. Essa interpretação restritiva é uma exigência da tipicidade estrita, que não permite uma interpretação extensiva que poderá alcançar conduta não abrangida pelo texto legal incriminador.

Com efeito, afronta a lógica e o bom senso imaginar-se a formação de “esquadrão”, “milícia particular” ou “organização paramilitar” com número de participantes inferior à quadrilha prevista no art. 288 do CPP. Tratam-se, na verdade, de agrupamentos ou associações de pessoas com a finalidade delinquir que envolvem inúmeras pessoas, os quais não se estruturam apenas com dois ou três indivíduos e, in concreto, não será difícil identificar essa quantidade mínima (mais de três) como integrantes de tais milícias. Pensar diferente significa criar figura mais rigorosa que a pretendida pelo legislador, agravando a situação de envolvidos ao conceber como típicas condutas não recepcionadas pelo texto legal. No mínimo, está-se diante de um risco que o intérprete não tem o direito de correr em prejuízo do cidadão, ante uma lacuna legal.

Há, a rigor, um grande equívoco do legislador, qual seja, a elaboração de um tipo penal aberto, criando uma modalidade de reunião de pessoas para delinqüir, sem estabelecer o número mínimo de participantes. Logo, a interpretação mais correta deve socorrer-se de figuras similares, isto é, que se ocupem de algo semelhante, e a mais próxima (tanto em termos de conteúdo, quanto anatomicamente) é a formação de quadrilha, que exige, como mínimo, mais de três participantes.

A criação de uma figura plurissubjetiva, isto é, que implique, necessariamente, a participação de vários agentes, o legislador penal, em obediência ao principio da tipicidade e da legalidade, não pode deixar de fixar o número mínimo de participantes. A configuração de um tipo penal não pode ficar, para a garantia do próprio cidadão, na dependência da interpretação livre de cada aplicador da lei, cujo resultado final será sempre lotérico, violando a taxatividade da tipicidade estrita.

Trata-se de um crime de ação múltipla ou de conteúdo variado, representado por quatro verbos nucleares, quais sejam: (i) constituir (que significa criar, estruturar, formatar, dar forma ao grupamento criminoso, em qualquer das modalidades elencadas); organizar (não deixa de ser, de certa forma, sinônimo de constituir, mas, especificamente, é ordenar, regularizar sua estrutura, engenharizar o formato adequado para otimizar seu funcionamento, ou, pensar sua dinâmica funcional, encontrando a melhor forma de rendimento); integrar (é fazer parte, ser um de seus membros, fundador ou não do grupo); manter ou custear (significa sustentar, arcar com os custos, ou ao menos compartilhar com os demais participantes, não apenas financeiramente, mas com toda e qualquer ajuda, material, moral e até psicológica. Nesse tipo de empreendimento criminoso, pode o participante contribuir inclusive com fornecimento de armamento, de materiais de construção ou de qualquer natureza, armas, munições etc.).

A tipificação do crime constituição de milícia privada afronta o princípio da legalidade estrita ao não definir “organização paramilitar, milícia particular, grupo ou esquadrão”, dificultando gravemente a segurança exigida em um Estado Democrático de Direito. Ademais, criando uma nova modalidade de reunião de pessoas para delinquir olvidou-se o legislador de estabelecer o número mínimo de participantes, gerando insegurança inaceitável para um direito penal da culpabilidade, fundado em seus dogmas históricos. Na realidade, o legislador devia ter conceituado e definido o significado dos grupos que elenca, atendendo, assim, o princípio da taxatividade estrita. A questão situa-se especialmente na grande dificuldade, inclusive doutrinária e jurisprudencial, de estabelecer exatamente os conceitos dessas novas figuras.

O legislador destaca denominações já conhecidas no meio jurídico, estereotipadas, quais sejam, organização paramilitar, milícia particular e grupo ou esquadrão. Fala-se, informalmente, que vêm operando na criminalidade, especialmente no Rio de Janeiro e São Paulo, causando grande insegurança à população, segundo noticia a imprensa de um modo geral.

Acreditamos que seja exaustiva essa enumeração de reunião de pessoas - organização paramilitar, milícia particular, grupo ou esquadrão -, com a finalidade de praticar qualquer crime previsto no Código Penal. Contudo, sua identificação ou nomeação é aleatória e sem rigor científico, isto é, admite quaisquer agrupamentos (mesmo que possa receber outra denominação), desde que tenha a mesma finalidade delituosa. Vejamos, sucintamente, cada uma dessas figuras.

a) Organização paramilitar é uma associação civil armada constituída, basicamente, por civis, embora possa contar também com militares, mas em atividade civil, com estrutura similar à militar. Trata-se de uma espécie de organização civil, com finalidade civil ilegal e violenta, à margem da ordem jurídica, com características similares à força militar, mas que age na clandestinidade. Para Rogério Sanches, “Paramilitares são associações civis, armadas e com estrutura semelhante à militar. Possui as características de uma força militar, tem a estrutura e organização de uma tropa ou exercito, sem sê-lo” .

b) Milícia particular tem sido definida como um grupo de pessoas (que podem ser civis e/ou militares), que, alegadamente, pretenderia garantir a segurança de famílias, residências e estabelecimentos comerciais ou industriais. Haveria, aparentemente, a intenção de praticar o bem comum, isto é, trabalhar em prol do bem estar da comunidade, assegurando-lhe sossego, paz e tranqüilidade, que foram perdidos em razão da violência urbana.

No entanto, essa atividade não decorre da adesão espontânea da comunidade, mas é imposta mediante coação, violência e grave ameaça, podendo resultar, inclusive, em eliminação de eventuais renitentes. Na realidade, há uma verdadeira ocupação de território, numa espécie de Estado paralelo, com a finalidade de explorar as pessoas carentes. Em sentido semelhante, destaca Rogério Sanches: “por milícia armada entende-se grupo de pessoas ... armado, tendo como finalidade (anunciada) devolver a segurança retirada das comunidades mais carentes, restaurando a paz. Para tanto, mediante coação, os agentes ocupam determinado espaço territorial. A proteção oferecida nesse espaço ignora o monopólio estatal de controle social, valendo-se de violência e grave ameaça” .

c) grupo ou esquadrão, embora o legislador não tenha dito, está referindo-se aos famosos grupos de extermínios que ganharam espaço, basicamente, no Rio de Janeiro e São Paulo, tanto que o texto utiliza a locução “grupo ou esquadrão”. Curiosamente, no entanto, ao contrário da definição deste crime, na majorante que o mesmo diploma legal acrescentou ao crime de homicídio, refere-se expressamente a “grupo de extermínio”, reforçando nossa interpretação quanto ao sentido da terminologia utilizada na definição da novel infração sub examine. “Esquadrão”, por sua vez, ficou conhecido no final do regime militar como “esquadrão da morte”. Ou seja, ambos têm, fundamentalmente, o mesmo significado. Grupo de extermínio, enfim, é a denominação atribuída no Brasil a grupos de matadores que atuam nas classes mais desprivilegiadas de algumas das grandes cidades deste País, normalmente, nos subúrbios ou nas periferias. Em sentido semelhante, é o entendimento de Rogério Sanches, verbis: “Por grupo de extermínio entende-se a reunião de pessoas, matadores, “justiceiros” (civis ou não) que atuam na ausência ou leniência do poder público, tendo como finalidade a matança generalizada, chacina de pessoas supostamente etiquetadas como marginais ou perigosas” .

Esses grupos de extermínio, convém que esclareça, surgem quase sempre na omissão ou inoperância do Poder Público; não raras vezes esses grupos contam com o apoio e simpaatia (e até mesmo a contratação) de comerciantes e moradores de comunidades pobres, pois, supostamente, manteriam marginais mais perigosos afastados e, muitas vezes, até os eliminam. A ação desses grupos exterminadores (grupos ou esquadrão) já foi alvo de investigações da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal. Contudo, a sua eliminação ou o desmantelamento é dificultado pelo fato de, principalmente, terem quase sempre ligações com as polícias locais. Ademais, a carência probatória da ação desses grupos reside na dificuldade de encontrar quem testemunhe a prática de seus crimes, pois, a sociedade é atemorizada pela ação violenta de referidos grupos.
 
PARTE II

CONSTITUIÇÃO DE MILÍCIA PRIVADA

4.1. Distinção entre o crime de constituição de milícia privada e os crimes praticados por seus integrantes

Não é demais repisar que o crime de constituição de milícia não se confunde com os crimes que eventualmente essa entidade cometer, pois, somente o integrante ou “associado” que concorre, in concreto, isto é, que participa efetivamente da prática des
te ou daquele crime responde por ele, e, nessa hipótese, em concurso material com o previsto no art. 288-A. Os demais membros ou integrantes do grupo ou da milícia respondem somente por esse crime (constituição de milícia privada), ou, se for o caso, por aqueles crimes para os quais tenham efetivamente concorrido.

A situação é exatamente a mesma do crime de formação de quadrilha ou bando. Examinando esse tipo penal tivemos oportunidade de fazer a seguinte afirmação: “Convém deixar claro que uma coisa é associar-se para delinquir, de forma mais ou menos geral — formação de quadrilha —, outra, completamente diferente, é reunir-se, posteriormente, para a prática de determinado crime — concurso eventual de pessoas. Esta segunda ação — a prática de determinado crime — não depende, necessariamente, daquela primeira (formação de quadrilha). Essa é uma forma didática de demonstrar a quem tem dificuldade de perceber a diferença: na primeira hipótese, “associar-se” para delinquir, de forma indiscriminada, configura quadrilha ou bando; “reunir-se”, posteriormente, para a prática de determinado crime ou crimes configura o similar instituto concurso eventual de pessoas, que são coisas ontológica e juridicamente distintas” . Enfim, só responde por estes crimes aqueles integrantes da quadrilha que concorrem efetivamente para a sua prática.

Mutatis mutandis, ocorre o mesmo com a novel infração de constituição de milícia, que configura em si mesmo crime, consistindo na sua simples constituição com a finalidade de praticar algum crime previsto no Código Penal. Sendo, contudo, a finalidade dessa “associação” praticar outros crimes previstos na legislação extravagante, não tipificará esta novel infração, consequentemente, esses sujeitos responderão somente pelos crimes para os quais tenham concorrido. Não é outra a interpretação de Rogério Sanches, para quem tipifica-se “... a nova associação apenas quando tiver como finalidade a prática de crimes previstos no CP, não se cogita deste delito quando visar a prática de crimes estampados em legislação extravagante, sob pena de analogia incriminadora” . Com efeito, a prática de qualquer crime objeto da finalidade da “associação” (organização paramilitar, milícia particular, grupo ou esquadrão) não necessita da participação de todos, podendo, inclusive, ser praticado por um só ou apenas alguns dos seus integrantes. Pelo crime de constituição de milícias privada (art. 288-A) respondem todos os seus integrantes; no entanto, pelos crimes que esta (organização paramilitar, milícia particular) praticar responde somente quem deles tomar parte (concurso de pessoas): uma coisa é o crime de constituição de milícia privada, outra, completamente distinta, são os crimes que ela efetivamente pratica; por aquela, com efeito, respondem todos os seus membros, por estes, somente os agentes que efetivamente deles tomaram parte.

Por isso mesmo que o concurso material entre o crime de constituição de milícia privada e os crimes que seus membros praticam não representam um bis in idem. O crime praticado em concurso (material) não absorve nem exclui o de constituição de milícia, pela simples razão de que não é necessária a precedência deste para a prática daquele. Pela mesma razão, o simples fato de integrar uma determinada milícia privada ou organização paramilitar (ou grupo ou esquadrão) não implica a responsabilidade por todos os crimes que esta realiza: também nesses casos a responsabilidade continua sendo subjetiva e individual, isto é, cada um responde pelos fatos que praticar (direito penal do fato).

5. Tipo subjetivo: adequação típica

Elemento subjetivo é o dolo, representado pela vontade consciente de reunir-se para praticar crimes previstos no Código Penal, criando um vínculo associativo entre os participantes. É a vontade e a consciência dos diversos componentes reunirem-se em milícia privada (organização paramilitar, milícia particular, grupo ou esquadrão), de forma estável e permanente, para a prática de crimes definidos no Código Penal.

Em síntese, para que determinado indivíduo possa ser considerado sujeito ativo do crime de constituição de milícia privada, isto é, para que responda por essa infração penal é indispensável que tenha consciência de que participa de uma “reunião de pessoas” que tem a finalidade de praticar crimes previstos no Código Penal. É insuficiente que, objetivamente, tenha servido ou realizado alguma atividade que possa estar abrangida pelos objetivos criminosos do grupo. Não respondem por esse crime, por exemplo, eventuais “laranjas”, que desconhecem a existência ou finalidade da milícia privada, apenas emprestando o nome sem qualquer proveito pessoal, ou determinados empregados que apenas cumprem ordem de seus superiores. Pela mesma razão, essas pessoas que, na linguagem da teoria do domínio do fato, são meros executores e não autores do crime , tampouco podem ser consideradas para completar aquele número mínimo exigido (mais de três) como elementar da tipificação da milícia: falta-lhes o elemento subjetivo da ação de associar-se para a prática de crimes.

Exige-se, ademais, o elemento subjetivo especial do tipo, caracterizado pelo especial fim de constituir milícia privada com a finalidade de praticar qualquer dos crimes previstos neste Código, sob pena de não se implementar o tipo subjetivo, a exemplo do que se exige no crime de quadrilha ou bando. Convém destacar, por sua extraordinária importância dogmática, que esse fim especial do tipo é um fim coletivo, e, como tal, tem natureza objetiva, por isso, não se comunica, deve ser identificado individualmente para cada participante. Com efeito, o conhecimento dessa finalidade especial, por cada participante, é regido pelos princípios gerais da culpabilidade .

6. Consumação e tentativa

Consuma-se o crime com a simples constituição de milícia privada, isto é, com a mera associação de mais de três pes¬soas para a prática de crimes definidos no Código Penal, colocando em risco a paz pública É absolutamente desnecessária a prática de qualquer crime pelo grupo representativo da figura penal constituição de milícia privada, em qualquer de suas modalidades. Pune-se o simples fato de associar-se para a prática de crimes tipificados no Código Penal. A constituição de milícia privada pode, em outros termos, configurar-se, ter existência real e, a final, extinguir-se sem ter praticado nenhum delito, e mesmo assim ter tipificado essa figura penal. Contrariamente, no entanto, no concurso de pessoas (coautoria e participação), pune-se somente os concorrentes se concretizarem a prática de algum crime, tanto na forma tentada quanto na consumada.

Ademais, “tratando-se de um crime tipicamente estável e permanente, a consumação se protrai até a cessação do estado antijurídico”33 criado pela constituição de milícia privada.¬
A tentativa é absolutamente inadmissível, pois se trata de crime abstrato, de mera atividade. A impossibilidade de configurar-se a tentativa decorre do fato de tratar-se de meros atos preparatórios (uma exceção à impuni¬bilidade dos atos preparatórios), fase anterior ao “início da ação”, que é o elemento objetivo configurador da tentativa.

7. Classificação doutrinária

Trata-se de crime comum (aquele que pode ser praticado por qualquer pessoa, não requerendo qualidade ou condição especial); formal (não exige para sua consumação a produção de nenhum resultado naturalístico); de forma livre (pode ser praticado por qualquer meio que o agente escolher); comissivo (o verbo núcleo indica que somente pode ser cometido por ação); permanente (sua consumação alonga-se no tempo, dependente da atividade do agente, que pode ou não cessá-la ou interrompê-la quando quiser, não se confundindo, contudo, com crime de efeito permanente, pois neste a permanência é do resultado ou efeito (v. g., homicídio, furto etc.), e não depende da manutenção da atividade do agente; de perigo comum abstrato (perigo comum que coloca um número indeterminado de pessoas em perigo; abstrato é perigo presumido, não precisando colocar efetivamente alguém em perigo); plurissubjetivo (trata-se de crime de concurso necessário, isto é, aquele que por sua estrutura típica exige o concurso de mais de uma pessoa, no caso, mais de três) unissubsistente (crime cuja conduta não admite fracionamento).

8. A desproporcional cominação de penas e sua questionável constitucionalidade
Incompreensível e injustificadamente o legislador brasileiro restringe exageradamente a margem de discricionariedade do julgador para efetuar a adequada dosagem de pena ao fixar a pena mínima em quatro anos de reclusão e o máximo de oito. Na verdade, com essa postura abusiva e arbitrária do legislador praticamente inviabiliza a individualização judicial da pena, esquecendo que essa fase, compõe-se de três estágios, nos termos do art. 68 do Código Penal, quando devem ser analisadas as circunstâncias judiciais (art. 59), as circunstâncias legais (agravantes e atenuantes) e as majorantes e minorantes (causas de aumento e de diminuição de pena). Essa agressividade do legislador asfixiando o Juiz, retira-lhe a possibilidade de dosar a pena de acordo com os dados que envolvem cada caso concreto, com suas peculiaridades, além dos aspectos pessoais de cada participante do crime, viola a garantia constitucional da individualização judicial da pena (art. 5º, XLVI).

Ademais, no caso concreto, o legislador praticamente elimina a possibilidade de o julgador fixar livremente o regime de cumprimento, pois, qualquer ajuste na pena mínima (quatro anos) afasta de plano a possibilidade do regime aberto, bem como de substituição de penas, os quais, a rigor, deveriam ser disponibilizados ao julgador para bem poder aplicar a pena justa, necessária e suficiente a reprovação e prevenção do crime (art. 59, in fine).

O Poder Legislativo não pode atuar de maneira imoderada, nem formular regras legais cujo conteúdo revele deliberação absolutamente divorciada dos padrões de razoabilidade assegurados pelo nosso sistema constitucional, afrontando diretamente o princípio da proporcionalidade. Para Sternberg-Lieben , o princípio de proporcionalidade parte do pressuposto de que a liberdade constitucionalmente protegida do cidadão somente pode ser restringida em cumprimento do dever estatal de proteção imposto para a preservação da liberdade individual de outras pessoas. Essa concepção abrange tanto a proteção da liberdade individual, como a proteção dos demais bens jurídicos, cuja existência é necessária para o livre desenvolvimento da personalidade. Ademais, de acordo com o princípio de proporcionalidade, a restrição da liberdade individual não pode ser excessiva, mas compatível e proporcional à ofensa causada pelo comportamento humano criminoso. Sob essa configuração, o exercício legítimo do direito de punir, pelo Estado, deve estar fundamentado não apenas na proteção de bens jurídicos, mas na proteção proporcional de bens jurídicos, sob pena de violar o princípio constitucional da proporcionalidade.

Mas não basta a identificação de um bem jurídico a proteger, nem a demonstração de que esse bem jurídico foi, de alguma forma, afetado, para legitimar a resposta penal estatal. De acordo com princípio de proporcionalidade, enquanto limite do ius puniendis estatal, é necessário que: a) a intervenção do Estado seja idônea e necessária para alcançar o fim de proteção de bem jurídico, e b) que exista uma relação de adequação entre os meios, isto é, a ameaça, imposição e aplicação da pena, e o fim de proteção de bem jurídico .

Em matéria penal, mais especificamente, segundo Hassemer, a exigência de proporcionalidade deve ser determinada mediante “um juízo de ponderação entre a carga ‘coativa’ da pena e o fim perseguido pela cominação penal” . Com efeito, pelo princípio da proporcionalidade na relação entre crime e pena deve existir um equilíbrio — abstrato (legislador) e concreto (judicial) — entre a gravidade do injusto penal e a pena aplicada. Ainda segundo a doutrina de Hassemer, o princípio da proporcionalidade não é outra coisa senão “uma concordância material entre ação e reação, causa e consequência jurídico-penal, constituindo parte do postulado de Justiça: ninguém pode ser incomodado ou lesionado em seus direitos com medidas jurídicas desproporcionadas” .

Para Ferrajoli , as questões que devem ser resolvidas através desse princípio no âmbito penal podem ser subdividas em três grupos de problemas: em primeiro lugar, o da predeterminação por parte do legislador das condutas incriminadas e da medida mínima e máxima de pena cominada para cada tipo de injusto; em segundo lugar, o da determinação por parte do juiz da natureza e medida da pena a ser aplicada no caso concreto; e, em terceiro lugar, o da pós determinação da pena durante a fase de execução.

Quanto ao primeiro problema, isto é, o da proporcionalidade que deve existir entre o injusto tipificado e a medida da pena em abstrato, é evidente a desproporcionalidade da previsão legal constante do preceito secundário deste art. 288-A, sub examine. Com efeito, essa absurda aproximação entre o mínimo e o máximo, impede a adequada dosimetria judicial da pena. Não se pode esquecer que gravidade de uma conduta, tipificada, no mesmo dispositivo, pode apresentar grande variação, sendo, portanto, injustificável uma cominação mínima tão elevada, como no caso desse dispositivo legal.

Nelson Hungria , já na década de cinquenta do século passado, questionando a escala de cominação de pena privativa de liberdade, com mínimo de dois e máximo de quatro anos, concluiu: “Como se compreende que, não obstante a extensa gradação de gravidade da receptação, se cominasse uma pena que, praticamente, não permite individualização, tal a aproximação entre o seu elevado mínimo e o seu máximo? Será, porventura, que se deva punir com a mesma severidade o receptador primário e o habitual, o que recepta um paletó usado e o que recepta um solitário de Cr$ 100.000,00?”. Na mesma linha, Nilo Batista recordando essa passagem de Hungria, também questiona a constitucionalidade do “engessamento” do julgador, in verbis: “A constitucionalização do princípio da individualização da pena questiona, hoje mais fundamentadamente do que ao tempo em que Hungria levantava a questão, essas escalas penais em que o patamar mínimo representa a metade do máximo, e o juiz se converte num refém das fantasias prevencionistas do legislador, que passa a ser uma espécie de “juiz oculto” por ocasião da individualização judicial, usurpando previamente à magistratura sua indelegável tarefa” .

9. Pena e ação penal

A pena cominada, isoladamente, é a de reclusão, de quatro a oito anos. Não há previsão de pena pecuniária. A ação penal é pública incondicionada, não dependendo, por conseguinte, de qualquer manifestação de vontade da vítima ou de seu representante legal.
 
*Doutor em Direito Penal (Universidade de Sevilha, Espanha). Advogado e Professor Universitário.
 
Fonte: Facebook

TEORIA DO DOMÍNIO DO FATO

24 outubro 2012
Participação no crime

Teoria do domínio do fato diferencia autor e partícipe


Podem ser indicados como precursores da utilização do conceito de domínio do fato no tratamento da autoria e da participação em Direito Penal diversos autores alemães, que, a exemplo de H. Bruns, Hellmuth v. Weber, Eb. Schmidt, Lobe e, finalmente Welzel — este último já inserindo o conceito na teoria da ação — escreveram sobre o tema na década de 1930.


Posteriormente, a teoria do domínio do fato encontrou sofisticado e quiçá pleno desenvolvimento com os trabalhos oferecidos à comunidade jurídica pelo renomado professor emérito da Universidade de Munique Claus Roxin, a partir dos anos 1960. Segundo suas contribuições, pode o fato ser dominado de três diferentes formas:


I — Pelo domínio da ação, que se dá quando o agente realiza o fato típico pelas próprias mãos, portanto como autor e não instigador ou cúmplice (mero partícipe);

II — Pelo domínio da vontade, que se dá quando o autor imediato realiza o tipo atuando em erro ou sob coação, tendo sua vontade dominada pelo autor mediato, que, assim, deixa de ser mero partícipe instigador ou cúmplice, não se podendo olvidar aqui a formulação relativa ao domínio da vontade no âmbito de estruturas organizadas de poder; e, finalmente,

III — Pelo domínio funcional do fato, que fundamenta a coautoria, baseada na divisão de tarefas entre os autores.


O que nunca imaginaram os referidos autores tedescos é que a teoria por eles cuidadosamente estudada e desenvolvida viria a ser um dia desvirtuada e utilizada para flexibilizar a análise rigorosa que deve ser feita em um processo penal acerca da prova dos autos, a partir da presunção de que alguém tenha participado da prática de determinado crime em razão de sua posição hierárquica dentro de determinada estrutura de poder, como ocorreu recentemente em determinadas passagens do julgamento da Ação Penal 470.


Com base no que ouviram dos votos ali proferidos, não faltaram manifestações na imprensa no sentido de que a “nova” teoria do domínio do fato — que, como visto, de nova nada tem — possibilitaria condenações com base em prova indiciária.


Não se quer aqui questionar a existência de provas para a condenação de qualquer um dos que figuram como acusados no processo em questão, menos ainda afirmar ser inadmissível a condenação em ações penais em geral com base em provas indiciárias. Mas o que não se pode conceber é que a teoria do domínio do fato seja utilizada para finalidades para as quais não foi desenvolvida.


Como visto, a teoria do domínio do fato, notadamente em suas formulações mais modernas, serve simplesmente à distinção entre autor e partícipe (instigador ou cúmplice). É autor, e não partícipe, quem tem o domínio final sobre os fatos típicos, seja pelo domínio da ação, pelo domínio da vontade ou pelo domínio funcional dos fatos. A distinção é de fundamental importância, notadamente para fins de dosimetria da pena a ser aplicada em caso de condenação. Mas, querer vincular a análise da prova dos autos acerca da participação de acusados nos crimes que lhes foram imputados à teoria do domínio do fato é demonstração de supremo desconhecimento sobre sua origem e finalidade.


O concurso de acusados em determinada empreitada criminosa, seja na qualidade de meros partícipes (instigadores ou cúmplices) ou na qualidade de autores, deve ser comprovado independentemente da interferência da teoria em questão. E, uma vez comprovado, aí sim se poderá lançar mão do conceito de domínio do fato para que se conclua terem os acusados atuado como autores ou simples partícipes.


No Peru foi a teoria do domínio do fato utilizada corretamente por sua Corte Suprema, possibilitando-se a condenação do ex-presidente Fujimori como autor mediato dos crimes cometidos durante o seu governo por autores plenamente responsáveis, integrantes dos órgãos de repressão então existentes. No julgamento de Fujimori, ao contrário do que se fez aqui, a teoria em nada dizia respeito à análise da prova dos autos. Lá o que se fez foi condenar Fujimori como autor, e não mero partícipe, considerando-se ter ele exercido, por meio de uma estrutura organizada de poder, o domínio da vontade dos autores que realizaram o tipo pelas próprias mãos (imediatos). E isso por ter sido verificada a presença de quatro requisitos: o poder de Fujimori para emitir ordens, o afastamento da ordem jurídica da estrutura de poder, a fungibilidade do autor imediato — consistente no fato de que qualquer outra pessoa poderia substituir o autor originariamente designado — e a sua alta disposição para a realização do fato criminoso. Sem a teoria do domínio do fato, Fujimori não teria sido absolvido, mas condenado como partícipe.


Como se vê, ali teve a teoria, adotando-se formulação criada pelo professor Claus Roxin, aproveitamento adequado. Já no julgamento em andamento em nossa Corte Suprema, além de se lançar, de forma absolutamente descontextualizada, que determinados acusados tinham domínio “final” ou “funcional” do fato, nem se chegou a indicar de que forma se pretendeu utilizar a teoria em questão. De resto, no caso brasileiro, a teoria dos aparelhos organizados de poder sequer seria adequada, pois um aparato organizado de poder é, ao menos segundo a formulação original da teoria, uma organização alheia ao direito, isto é, algo como um grupo terrorista, um estado dentro do Estado, e não um partido político legalmente reconhecido.


A teoria do domínio do fato assumiu no julgamento da Ação Penal 470 ares de novidade. A adoção de teorias aparentemente herméticas, e, de toda sorte, conhecidas por uma parcela pequena da população e mesmo da comunidade jurídica, costuma servir de álibi para drásticas alterações de orientação de entendimento jurídico. A culpa passa a ser da “nova” teoria, como se ela não existisse antes, e como se servisse aos fins para os quais foi utilizada.


Fernanda Lara Tórtima é advogada criminal e presidente da Comissão de Prerrogativas da OAB-RJ.

Revista Consultor Jurídico, 24 de outubro de 2012

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

FORMALISMO, DEMOCRACIA E CINISMO NA REFORMA PENAL


18 outubro 2012
Críticas ignoradas




“Engenheiros de obra pronta.” Assim se referiu Técio Lins e Silva, integrante da comissão de juristas que se dispôs a reformar o Código Penal brasileiro no prazo de sete meses, aos críticos deste mais novo movimento reformador[1]. A expressão é infeliz, ainda que não na mesma medida em que o é o projeto (PLS 236/2012). Os integrantes da comissão podem e devem defender o seu trabalho. Afinal, assinaram-no. A expressão é infeliz, porque errada. Fosse, por exemplo, o Projeto 236 uma obra de engenharia, já teria vindo abaixo, não em razão das pedras atiradas pela crítica científica, mas pela fragilidade do próprio alicerce. Se obra fosse, haveria no alicerce areia da praia ao invés de cimento. Tampouco pronta está a obra, pois, até que se negue vigência à Constituição da República, o Projeto 236 possui um longo caminho a trilhar em seu trâmite legislativo[2]. Sequer no Senado Federal, que requereu a instalação da comissão, o projeto foi votado.


Mas a infelicidade da expressão revela mais um traço deste movimento reformador: a nova postura do legislador em relação à ciência. O projeto se crê inovador, marco zero do Direito Penal, arauto de tudo que há de mais novo, a ponto de ignorar as reformas passadas e a ciência jurídica[3]. O projeto, ao contrário do que afirma a comissão de juristas que o elaborou, não é fruto de uma opção científica em detrimento de outra, mas retrato da ausência completa da ciência no processo de elaboração das leis. Não bastasse essa atitude, a crítica científica realizada ex post, isto é, após a publicação do projeto, é solenemente ignorada. Neste trabalho, quero chamar a atenção para as inovações ligadas não à técnica utilizada[4], mas à postura apresentada pelos integrantes da comissão durante o movimento reformador.


O apologeta e o voto vencido

Há, essencialmente, duas posturas assumidas pelos integrantes da comissão. De um lado, os apologetas, que, a despeito das graves falhas do Projeto 236, o defendem com vigor. Postura igualmente legítima, ela é ademais corajosa, verdadeiro ato de bravura e renitência. Essa é a postura do relator da comissão, Luiz Carlos dos Santos Gonçalves, que tem vindo a público com relativa frequência.


A segunda postura é, ao contrário, lamentável. Há os que, cônscios do resultado e da má aceitação científica do Projeto 236, anunciam-se como os votos vencidos da comissão, os abnegados que, embora tenham se esforçado, foram derrotados por forças vindas sabe-se lá de onde. Corifeus da resistência. Com um detalhe: não abrem mão da assinatura ao final do projeto. Essa foi a postura manifestada, por exemplo, por Luiz Flavio Gomes, em manifestação pública realizada durante o 18o Seminário Internacional do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais[5]. Há que se entrar na história, mas com uma espécie de escusa geral: “O que há de errado, adianto, não foi obra minha; fui voto vencido.” Como o combatente que, nunca tendo estado em uma troca de tiros, exige as mesmas honrarias militares dos que nela estiveram. Há tantos votos vencidos na comissão, que parece ser um instigante mistério desvendar quem aprovou os equívocos. Talvez ninguém.


Aníbal Bruno, por discordar dos rumos fundamentais da comissão Hungria instaurada em 1961, pediu que seu nome fosse retirado dos documentos oficiais[6]. Também Nilo Batista optou por essa postura em outra oportunidade mais recente[7]. Assinar linhas nas quais não é possível se reconhecer soa escandaloso a qualquer jurista sério. Pois a presente comissão inaugura não apenas nos equívocos técnicos já amplamente denunciados[8], mas também na postura. Ao que parece, passa a ser possível assinar um documento ainda que não se concorde com pontos essenciais dele constantes. Refiro-me a pontos essenciais, não a discordâncias pontuais. Melhor é a postura séria, transparente e responsável — no sentido de que responde pelos méritos e defeitos —, por exemplo, do relator da comissão, Luiz Carlos dos Santos Gonçalves, do que a flexibilidade invulgar dos legisladores de ocasião, que anseiam, ao mesmo tempo, a glória de legislar e a admiração da ciência. Ninguém exige unanimidade em um Projeto de Código Penal. Ao contrário. Mas assinado o projeto, tampouco há espaço para desincumbir-se da responsabilidade. Ou se assina, ou não[9]. Tertium non datur. O militar da metáfora acima mencionada seria, sem dúvida, taxado de covarde pelos colegas.


A relação da comissão com a crítica científica é, nesse ponto, estranha e preocupante. Um espetáculo degradante, em que o legislador debocha da ciência[10]. Talvez alguns membros da comissão não gostem das críticas, ou do tom das críticas, ou mesmo daqueles que as formularam. Se o crítico é jovem jurista, “não possui autoridade para criticar”. Se é jurista consagrado, “está com ciúmes, alimentava o desejo de participar da comissão”. Se não for nem um, nem outro, “deveria ter criticado antes”. Se não criticar, “omitiu-se de seu mister democrático”. Até aqui, nada novo[11]. Também a crítica científica não gostou do Projeto 236, do tom da Exposição de Motivos, ou da escolha de alguns integrantes da comissão, cujas canetas, que escreveram pela primeira vez sobre Direito Penal, produzirão palavras que hão de vigorar erga omnes e sustentar prisões.


São dois os pontos que chamam verdadeiramente a atenção: o formalismo e a democracia cínica da comissão.


Formalismo como resposta ao açodamento

Sete meses. É o prazo regimental para as comissões legislativas instauradas no Senado Federal. “Estamos obedecendo ao regimento interno”, “o açodamento, não fomos nós que o determinamos”, “somos apenas fiéis cumpridores do que estabelece o regimento”. Essa é a atitude formalista da comissão. Impossível não lembrar do célebre artigo de Radbruch, publicado em 1946, em que o autor defendeu a tese de que os juristas da época do nacional-socialismo eram reféns das leis, e estavam desarmados juridicamente na luta contra as atrocidades do nacional-socialismo. Lei é lei[12].


Regimento é regimento. A comissão, em seu afã por obediência, crê poder alterar toda a legislação penal de um país, mas não se crê capaz de explicar ao Senado Federal uma obviedade, a de que reformar e consolidar toda a vasta e complexa legislação penal de um país em sete meses é atividade temerária, que demanda um prazo excepcional. Provavelmente o Senado, disposto a colocar em votação a maior alteração legislativa dos últimos tempos, não quisesse, via um mero ato normativo interno, conceder prazo maior a essa comissão. Mais uma novidade deste movimento reformador: há cláusulas pétreas no regimento interno do Senado Federal. A pressa existe e, para não maltratar a ingenuidade alheia, seria interessante que o verdadeiro motivo — aquele que se esconde por trás do regimento — da carreira vertiginosa do projeto viesse a público[13].


Democracia e cinismo

Já foi dito, mas parece necessário repetir: a ciência não foi convidada para a elaboração do Projeto 236[14]. A crítica científica não se ressente da ausência de convite, pois não se constrange em entrar como intrusa em uma festa cuja temática é a criação de crimes e a cominação de penas. Antes sente-se compelida a fazê-lo. Legisladores legislam; crítica científica critica. A comissão clama por sugestões. O que é a crítica científica, artigo por artigo da matéria relativa à teoria do delito no Projeto 236 (art. 1o a 44), se não uma espécie de sugestão? Talvez a comissão interprete restritivamente o termo “sugestão”, e inove vez mais, agora em nosso vernáculo: sugestão possuiria apenas conteúdo positivo. De toda a forma, a crítica técnica e criteriosa já foi realizada, embora permaneça sem resposta. Enquanto não houver resposta, é ardiloso o clamor da comissão por sugestões[15].


Em forma de depoimento pessoal, estive em evento na Universidade Federal do Paraná, no final do mês de março deste ano, oportunidade na qual foi apresentada pelo então relator da parte geral, René Dotti, uma outra parte geral, que não a apresentada no relatório final da comissão. A redação dos artigos era outra, as preocupações eram outras[16]. Ou seja: após a eloquente saída voluntária do então relator, elaborou-se nova parte geral, não mais em sete meses, mas em quatro. Naquela oportunidade, várias críticas foram realizadas e apresentadas formalmente a René Dotti. Também não encontro no sítio oficial do Senado Federal os anais das discussões, de que fala Técio Lins e Silva na entrevista já citada. Pode ser que eles existam. Mas nenhum penalista os possui. O Projeto 236 é obra de fancaria jurídica, cirurgia arriscada realizadas às escuras por mãos atabalhoadas. Se queriam entrar para a história, irão.


A postura democrática da comissão é a seguinte: as críticas são “legítimas e naturais”[17], mas ignoradas. Porque a comissão de reforma vende o processo de elaboração como uma aula magna de democracia. O “Alô Senado” recebeu várias sugestões, e isso conferiria legitimidade democrática à comissão. Durante a gestação do projeto, os membros da comissão insistiam em se manifestar sobre os temas polêmicos, pautando a mídia, em inversão incrível de papéis[18]. A mídia, sentada na antessala vip do Senado Federal, aguardava ansiosa os primeiros rabiscos da comissão. Os temas polêmicos, como aborto, eutanásia, maus tratos aos animais, descriminalização das drogas foram noticiados à exaustão. Por coincidência, estes temas polêmicos foram os únicos a que fez referência o presidente do Senado, José Sarney, manifestando-se contrário às alterações propostas[19], prenunciando algo incrível: os temas noticiados amplamente, e, portanto, de conhecimento geral da população e dos juristas, permaneceriam como estão; os não noticiados, como as viscerais mudanças na parte geral, seriam aprovados, na medida em que sobre questões técnicas, as Casas do Congresso Nacional teriam pouco a objetar. A parte geral de um Código Penal é assunto técnico, a ser debatido de forma lúcida e refletida, para que apenas depois seja apresentado ao Congresso Nacional para que este exerça sua missão constitucional. A humildade da comissão poderia ser demonstrada ao se abster em alterar ao menos a parte geral de nosso Código.


Essa é a democracia cínica da comissão, a sua esnobe humildade, mais uma das novidades introduzidas. Aceitam as críticas; depois de extinta a comissão. Exaltam a existência das críticas como parte do jogo democrático; mas não as respondem. É sempre bom desconfiar de uma humildade que precisa sair fantasiada às ruas para afirmar que existe.

[1] Em entrevista acessível em: http://www.conjur.com.br/2012-out-10/tecio-lins-silva-rebate-criticas-anteprojeto-codigo-penal (acessado em 17.10.2012). O vídeo com a entrevista completa pode ser acessado em http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI165431,21048-Tecio+Lins+e+Silva+anteprojeto+do+novo+CP+nao+contempla+a+unanimidade (acessado em 18.10.2012). Aconselho ao leitor a contemplação do vídeo, cujo conteúdo revela por si a postura da comissão.
[2] Como corretamente afirmam outros integrantes da comissão, Santos Gonçalves/Gomes/Eluf, Democracia e Código Penal, in: Folha de São Paulo, Tendências e Debates, 17.10.2012, acessível em: http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/1170305-tendenciasdebates-democracia-e-codigo-penal.shtml (acessado em 17.10.2012).
[3] Referências completas em A. Leite, Erro, causas de justificação e causas de exculpação no novo Projeto de Código Penal (Projeto de Lei 236/20120 do Senado Federal), Revista Liberdades Especial – Reforma do Código Penal, 2012, p. 59 e ss., acessível em http://www.ibccrim.org.br/site/revistaLiberdades/_pdf/10A/artigo3.pdf
[4] Ver a critica detalhada e técnica no número especial da Revista Liberdades, acessível em http://www.ibccrim.org.br/site/revistaLiberdades/_pdf/10A/integra.pdf
[5] Manifestação de Luis Flavio Gomes que pode ser vista nos seguintes links: http://www.youtube.com/watch?v=7tIQplUlma8 ; http://www.youtube.com/watch?v=9uxv1Qo1dpg&feature=relmfu e http://www.youtube.com/watch?v=S26VkZ2BU30 (acessados em 17.10.2012).
[6] Como noticia Fragoso, Subsídios para a história do novo Código Penal, publicado originariamente em Revista de Direito Penal, n. 03, p. 7 e ss. e acessível atualmente em: http://www.fragoso.com.br/eng/arq_pdf/heleno_artigos/arquivo67.pdf (acessado em 17.10.2012).
[7] Batista,Prezada senhora Viegas: o anteprojeto de reforma no sistema de penas, in. Discursos sediciosos, n. 9-10, 2000, p. 107 e ss.
[8] Na já mencionada Revista Liberdades especialmente dedicada à reforma (cf. nota 4).
[9] Nessa medida é que é interessante a proposta de Salo de Carvalho, O papel dos atores do Sistema Penal na era do punitivismo, Rio de Janeiro, 2010, p. 262 e ss., de uma lei de responsabilidade político-criminal, que preveja, entre outras coisas, estudos prévios dos impactos concretos das novas leis penais.
[10] Relembro ao leitor a entrevista de Técio Lins e Silva: http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI165431,21048-Tecio+Lins+e+Silva+anteprojeto+do+novo+CP+nao+contempla+a+unanimidade.
[11] Sobre a retórica da comissão ver Greco, O Projeto de Lei do Código Penal e sua retórica, 14.10.2012, acessível em: http://www.conjur.com.br/2012-set-14/luis-greco-projeto-lei-codigo-penal-retorica (acessado em 17.10.2012).
[12] Radbruch, Gesetzliches Unrecht und übergesetzliches Recht, in: Süddeutsche Juristenzeitung 1946, p. 105 e ss.
[13] Enfatizaram esse ponto igualmente Reale Júnior/Mello Silveira/Livianu/Bartoletti, Por um Código Penal democrático, in: Folha de São Paulo, tendência e Debates, 04.10.2012, acessível em: http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/1163516-tendenciasdebates-por-um-codigo-penal-democratico.shtml (acessado em 17.10.2012). Ninguém está pedindo mais 24 anos, como faz crer a entrevista concedida pela relator da comissão, acessível em http://www.gazetamaringa.com.br/online/conteudo.phtml?tl=1&id=1307788&tit=Nao-podemos-mais-esperar-24-anos-diz-relator-da-CP (acessado em 18.10.2012). Perceba-se que mais de cem outros Projetos de Lei foram anexados ao Projeto n. 236/2012, conforme o sitio do Senado: http://www12.senado.gov.br/noticias/materias/2012/08/31/mais-de-cem-projetos-foram-anexados-a-proposta-de-reforma-do-codigo-penal (acessado em 18.10.2012).
[14] A. Leite, Erro, causas de justificação e causas de exculpação no novo Projeto de Código Penal (Projeto de Lei 236/20120 do Senado Federal), Revista Liberdades Especial – Reforma do Código Penal, 2012, p. 59 e ss.
[15] Um ofício do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) logo foi interpretado como uma “sugestão”, quando na verdade era uma reafirmação do posicionamento contrário à reforma desta instituição, causando mal-entendido desfeito posteriormente por nota oficial do IBCCrim acessível em: http://www.ibccrim.org.br/site/noticias/conteudo.php?not_id=14093 (acessado em 17.10.2012).
[16] Basta observar a regulamentação contraria à responsabilidade penal da pessoa jurídica propagada defendida pelo então relator da parte geral, René Dotti com a regulamentação favorável a essa forma de responsabilização constante do texto final do Projeto n. 236/2012. A esse respeito ver Busato, Responsabilidade penal de pessoas jurídicas no Projeto do novo Código Penal brasileiro, Revista Liberdades Especial – Reforma do Código Penal, 2012, p. 98 e ss., acessível em: http://www.ibccrim.org.br/site/revistaLiberdades/_pdf/10A/integra.pdf (acessado em 17.10.2012). 
[17] Assim afirmam os integrantes da comissão, Santos Gonçalves/Gomes/Eluf, Democracia e Código Penal, in: Folha de São Paulo, Tendências e Debates, 17.10.2012, acessível em: http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/1170305-tendenciasdebates-democracia-e-codigo-penal.shtml (acessado em 17.10.2012).
[18] A comissão permanece focada nesses assuntos, como comprova a recente entrevista de Luiz Flavio Gomes: http://globotv.globo.com/rede-globo/bom-dia-pe/v/reforma-do-codigo-penal-brasileiro-e-discutido-em-encontro-no-recife/2071808/ (acessado em 17.10.2012)
[19] Manifestação de José Sarney, in: Justificação do Projeto de Lei 236/2012, p. 196 e ss., acessível no sítio oficial do Senado Federal (http://www.senado.gov.br/atividade/materia/getPDF.asp?t=111516&tp=1), a que fiz referência em A. Leite, Erro, causas de justificação e causas de exculpação no novo Projeto de Código Penal (Projeto de Lei 236/20120 do Senado Federal), Revista Liberdades Especial – Reforma do código Penal, 2012, p. 61, nota 6.




*Alaor Leite é mestre e doutorando em Direito pela Universidade Ludwig Maximilian, de Munique.


FONTE: Consultor Jurídico