sexta-feira, 15 de novembro de 2013

CRACK - INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA - CIDADANIA


CRACK: INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA E CIDADANIA
                                                            


Antonio José F. de S. Pêcego [1]
Zaiden Geriage Neto [2]



RESUMO: Com o movimento político que pretende promover a internação compulsória dos dependentes químicos que habitam as denominadas cracolândias (espaços públicos em que grupos de usuários e dependentes se reúnem para fazer uso da droga denominada crack), necessário se faz enfrentar essa problemática que envolve aqueles que, a partir de então, passaram a ter visibilidade social para que se promova a inclusão e não exclusão social por interesses econômicos e políticos, reconhecendo-se que têm direito ao exercício da liberdade, da autonomia de vontade e necessitam de tutela estatal com relação aos seus direitos sociais, sob pena de grave violação à dignidade humana dessas pessoas com a intervenção indevida do Estado nos direitos fundamentais à vida, liberdade e igualdade, de forma a macular a própria cidadania dessas pessoas que integram grupo que vivem à margem da inclusão social.

PALAVRAS-CHAVE: Tóxico. Dependente. Crack. Internação compulsória.

ABSTRACT: With the political movement that aims to promote the compulsory hospitalization of drug addicts who inhabit the so-called cracolândias (public spaces where groups of users and addicts come together to make the drug called crack), it is necessary to address this problem that involves those that, from then on, started to gain visibility for social action to promote inclusion and not exclusion by economic and political interests, recognizing that they are entitled to the exercise of freedom, autonomy and will require state protection in relation their social rights, under penalty of severe violation of human dignity of these people with the improper intervention of the state in fundamental rights to life, liberty and equality, so as to harm the very citizens of these people within the group who live on the margins of social inclusion.

KEYWORDS: Toxic. Dependent. Crack. Compulsory hospitalization.

SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Lei de Tóxicos e o usuário. 2.1. Política criminal e aspectos materiais. 2.2. Aspectos processuais. 2.3. Últimas tendências. 3. O crack e sua origem. 3.1. Efeitos. 3.2. Tratamento terapêutico. 3.3. Internação compulsória. 3.4. Cidadania. 4. Considerações finais. 5. Referências.

1. INTRODUÇÃO

O uso de drogas que alteram o estado mental, ocorre a milhares de anos e assim deverá continuar a ocorrer por toda a história da  humanidade, sendo certo que

Seja por razões culturais ou religiosas, seja por recreação ou como forma de enfrentamento de problemas, para transgredir ou transcender, como meio de socialização ou para se isolar, o ser humano sempre se relacionou com drogas.[3]

De algum tempo para cá passou a ganhar visibilidade social as, denominadas, cracolândias (centros de concentração de dependentes químicos em solo urbano) que estão se espalhando por inúmeras localidades em Estados diversos da nossa federação, procurando-se adotar inúmeras soluções para esse grave problema social.

Entretanto, até o presente momento, nota-se uma maior preocupação em tratar dos efeitos do que cuidar das causas, promovendo-se, em face da predominância de interesses políticos e econômicos privados pelas suas áreas, uma verdadeira exclusão social dos dependentes químicos que habitam essas localidades que não têm tido atenção social do poder público por serem, até então, um grupo de cidadãos e nacionais invisíveis, salvo aos olhos de alguns mobilizações sociais em prol da sua inclusão.

Nessa seara, de um lado temos a tentativa de alguns governantes de promover a internação compulsória desses dependentes químicos, agora com apoio político da Câmara dos Deputados e do Senado, de outro algumas mobilizações sociais contra essa ação e a favor de uma maior inclusão social desse grupo de invisíveis numa globalização hegemônica.

2. LEI DE TÓXICOS E O USUÁRIO

A Lei n. 11.343/2006 revogou expressamente as Leis n. 6.368/1976 e 10.409/2002, sendo que enquanto a primeira previa pena privativa de liberdade para o usuário de drogas, esta penúltima criou um imbróglio processual que reclamou à época dos operadores do direito grande esforço interpretativo sistemático para a sua viabilidade de aplicação prática.

A lei de tóxicos em vigor instituiu o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas - SISNAD e passou a prescrever medidas de prevenção do uso de drogas ilícitas, bem como de atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas, já demonstrando em seu preâmbulo a política criminal que pretendia implantar sobre essa questão, fazendo distinção e, ao mesmo, inclusão social no programa dos dois pólos que atuam no uso de drogas ilícitas (usuário e dependente), bem como apontando expressamente os princípios que iluminam o SISNAD, dentre os quais, destacamos o respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana, à diversidade e às especificidades populacionais existentes, e a promoção dos valores éticos, culturais e de cidadania do povo brasileiro (art. 4º, I, II e III), o que demonstra e comprova que o Estado é que deve servir ao seu povo e não o contrário, isso em face dos princípios fundamentais da dignidade humana e da cidadania que estruturam o nosso Estado Democrático e Social de Direito.

2.1. Política criminal e aspectos materiais

Conforme anunciado no preâmbulo, a Lei n. 11.343/2006 de fato inovou de forma progressista a problemática das drogas ilícitas, fornecendo o legislador infraconstitucional aspectos que permitissem ao julgador fazer uma mais correta, objetiva e transparente diferenciação do usuário/dependente do traficante de drogas, ao apresentar no § 2º do art. 28 da Lei de Tóxicos, os critérios que devem ser observados no caso concreto, como trago à colação:

Art. 28. ...
[...]
§ 2.º Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.

Ao contrário das legislações anteriores sobre tóxico, agora há parâmetros legais para análise tanto do Ministério Público, como titular da ação penal, como do Magistrado quando do julgamento do processo criminal, embora não vejamos com bons olhos a análise dos antecedentes do agente que nada diz respeito a um direito penal do fato, mas sim ao do autor pelo que fez no passado, questão de duvidosa recepcionalidade constitucional.

Lado outro, o legislador inspirado numa contemporânea política criminal de descarcerização e despenalização, deixou de impor sanção privativa de liberdade ao usuário para viabilizar a aplicação de medidas socioeducativas ou alternativas, como (I) advertência sobre os efeitos das drogas; (2) prestação de serviços à comunidade, e (3) medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo, considerando que quando em vigor das leis anteriores, havia previsão legal da pena de detenção de até dois anos e pagamento de multa para o usuário/dependente (art. 16 da Lei n. 6368/1976).

Assim, extrai-se do constante do preceito secundário do artigo 28 da Lei n. 11.343/2006, como acima citado, que o legislador, corretamente, gradativamente retira da ciência penal aquilo que diz respeito a outras ciências, ou seja, afasta do usuário/dependente a pena privativa de liberdade e à ele, dando-lhe certa visibilidade social, clama atenção das autoridades e da sociedade como um todo, desviando o foco criminal para o assistencial à saúde do usuário por meio de medidas socioeducativas e alternativas, bem como solidifica a competência exclusiva dos Juizados Especiais Criminais para processar e julgar os agentes que pratiquem essa infração penal por ser crime de menor potencial ofensivo, considerando que a Lei n. 11.313, de 28/06/2006, com cerca de dois meses antes da entrada em vigor da Lei n. 11.343, de 23/08/2006 (Lei de Tóxico), já havia determinada nova redação ao artigo 61 da Lei n. 9.099/1995 que conceitua os crimes de competência dos JEPSCrim.

2.2. Aspectos processuais

Com a fixação dessa competência, processualmente se abre a perspectiva de aplicação dos benefícios da transação penal (art. 76) e da suspensão condicional do processo (art. 89) da Lei dos Juizados Especiais Criminais àqueles que preencham os requisitos legais, sendo que o primeiro se dá na fase pré-processual e o segundo logo após iniciada a ação penal, mas ambos evitam o estigma dos malfadados antecedentes criminais e da reincidência, cumpridas as condições acordadas entre os sujeitos do processo, uma vez que não há em nenhuma das duas hipóteses sentença penal condenatória transitada em julgado, mas sim homologatória ou declaratória de extinção da punibilidade.

2.3. Últimas tendências

Em virtude dos reclamos sociais que vinculam o uso de drogas ao aumento da criminalidade, por meio de um viés populista e simbólico, num verdadeiro retrocesso, o ex-senador Demóstenes Torres apresentou à época o Projeto de Lei 111/2010 que visa restabelecer a pena privativa de liberdade de detenção para usuários de drogas, tendo sido aprovado em 10/04/2013 pela Comissão de Assuntos Sociais do Senado.[4]

No que, no mesmo sentido de recrudescer só que de forma mais ampla, com internação compulsória ou não voluntária, embora não preveja pena privativa de liberdade para o usuário, mas apenas agravamento do prazo das medidas socioeducativas e alternativas, se encontra o Projeto de Lei n. 7.663/2010 do Deputado Osmar Terra (PMDB-RS) na Câmara de Deputados.

Sobre o PL 7663/2010, vale registrar que está havendo uma mobilização social por parte de ativistas e especialistas, contra a sua aprovação o que deu ensejo a uma carta à Presidenta Dilma Rousseff, ao Congresso Nacional e ao Supremo Tribunal Federal “cobrando a elaboração de uma nova política antidrogas que não seja baseada em medidas proibicionistas”, quando da recente realização do Congresso Internacional sobre Drogas – 2013.[5]

Uma das principais críticas reside justamente na internação compulsória dos usuários prevista no projeto de lei, tendo assinalado o neurocientista Sidarta Ribeiro, integrante da comissão científica e organizadora do congresso supracitado:

Constatamos a falência do modelo proibicionista, nos preocupa que o PL do Osmar Terra aponte na direção contrária, em particular, priorizando a internação forçada, que a própria ONU [Organização das Nações Unidas] declara como sendo tortura. Consideramos inadmissível que o governo da presidenta Dilma, que tem um histórico de defesa dos direitos humanos, admita que isso venha a ocorrer.[6]
           
3. O CRACK E SUA ORIGEM

A origem do nome crack, segundo Adriano Maldaner, Perito da Polícia Federal, decorre do barulho produzido pela droga quando queimada para uso. Essa droga ilícita é derivada da cocaína refinada ou da pasta-base de coca (Erythroxylon coca) em que se mistura bicarbonato de sódio e água, sendo que “aquecido a mais de 100ºC, o composto passa por um processo de decantação, em que as substâncias líquidas e sólidas são separadas. O resfriamento da porção sólida gera a pedra de crack, que concentra os princípios ativos da cocaína” [7], sendo que o efeito dessa droga no cérebro dura de cinco a dez minutos, mas a sua chegada ao sistema nervoso central leva, em média, de oito a quinze segundos, o que pode levar mais rapidamente à dependência química ou orgânica se comparada a outras drogas ilícitas ou lícitas.

No Brasil o surgimento do crack foi detectado em 1990 por agentes que atuavam no desenvolvimento de uma política de redução de danos com usuários de drogas injetáveis, visando inibir a proliferação do vírus do HIV com distribuição de seringas e “camisinhas de vênus”.[8]

3.1. Efeitos

A atuação dessa droga gera os efeitos de sensação intensa de euforia e poder; estado de excitação; hiperatividade; insônia; falta de apetite e perda da sensação de cansaço, sendo que em doses maiores tem-se observado irritabilidade, agressividade, delírios e alucinações, de forma a caracterizar um verdadeiro estado psicótico, assim como aumento da temperatura e convulsões, dilatação das pupilas, aumento da pressão arterial e até convulsões, o que faz com que esses efeitos possam levar a uma parada cardíaca por fibrilação ventricular, uma das causas de morte por superdosagem.[9]

O dependente químico - aqui, entendido como aquele que não consegue mais cumprir com suas obrigações do dia a dia em decorrência do uso da droga ou dos efeitos colaterais decorrentes do dia seguintes (“ressaca ou rebordosa”) - passa praticamente o dia e a noite fazendo uso da droga, curando-se da “ressaca” ou tentando obter mais droga para uso próprio, alimentando esse círculo vicioso que faz com que viva efetivamente dependente ou me função da substância entorpecente, não restando mais espaço para outras ocupações salutares ao convívio humano em sociedade.

Em sendo assim, não há dúvidas que os transtornos causados pelo uso de substâncias psicoativas na esfera biopsicossocial, podem ser qualificados como de grave problema de saúde pública que reclama uma atuação mais incisiva do Estado na proteção desse direito coletivo fundamental por meio, dentre outros, de um estudo e análise epidemiológica, ação que decorre da epidemiologia que, etimologicamente significa “ciência do que ocorre com o povo”.[10]



3.2. Tratamento terapêutico

Há vários modelos de tratamento do dependente químico que muitas vezes se estende ao seio familiar por se tornarem co-dependentes, uma vez que na questão há o envolvimento de “aspectos individuais, biológicos, psicológicos, sociais e culturais” [11], não sendo o nosso propósito nesse curto ensaio com propósitos específicos de enfrentar a problemática da internação compulsória, qualquer aprofundamento nessa questão, mas apenas demonstrar que em contradição com a atuação política que estão querendo impor aos dependentes químicos para satisfazer interesses que agravam o quadro de exclusão social, se encontram estudos do Ministério da Justiça por meio da Secretaria Nacional de Políticas Sobre Drogas – SENAD, bem como na “atual Política do Ministério da Saúde para a Atenção Integral a Usuários de Álcool e Outras Drogas que se baseia nas recomendações básicas para ações na área de saúde mental da Organização Mundial da Saúde (2002)” [12]

Sobre esse tópico, registramos as seguintes recomendações constantes do texto acima citado:

1) Promover assistência no âmbito de cuidados primários;
2) Disponibilizar medicamentos de uso essencial em saúde mental;
3) Promover cuidados comunitários;
4) Educar a população;
5) Envolver comunidades, famílias e usuários;
6) Estabelecer políticas, programas e legislação específicos;
7) Desenvolver recursos humanos;
8) Atuar de forma integrada com outros setores;
9) Monitorar a saúde mental da comunidade;
10) Apoiar mais pesquisas.

Nessa linha, constatamos que essas recomendações da OMS estão em sintonia com a dignidade humana, concluindo o tópico supracitado, assinalam de forma categórica:

Ainda que existam várias formas de tratamento nos dias atuais, nenhuma intervenção se mostrou mais efetiva que outra, pois a efetividade do tratamento depende de sua indicação adequada. Considerando que o quadro clínico e as consequências advindas da dependência de álcool e drogas dependem de (1) quem usa (indivíduo e fase de vida), (2) em que momento usa (contexto), (3) tipo de droga consumida, (4) quantidade e (5) freqüência de uso, a indicação de tratamento dependerá de avaliação minuciosa inicial. Como essas consequências variam muito, a diversidade de tratamentos existentes é benéfica, uma vez que torna possível atender a diferentes demandas de indivíduos distintos ou de um mesmo indivíduo em outra fase dessa doença crônica.
Portanto, o tratamento deve ser o mais individualizado possível. (grifo nosso)  

3.3. Internação compulsória

Tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei n. 7663/2010 do Deputado Osmar Terra (PMDB-RS) que prevê a internação compulsória de usuários de drogas, sendo que é noticiado na imprensa escrita e falada que os governos do Rio de Janeiro e São Paulo pretendem implantar essa política pública, contudo esse atuar vai de encontro às recomendações da OMS no que diz respeito ao tratamento terapêutico do usuário e dependente de drogas, como inicialmente apresentado, já tendo sido assinalado por Léon Garcia, Representante do Ministério da Saúde e Coordenador Adjunto de Saúde Mental, em entrevista à Agência Brasil que:

A internação involuntária é o fracasso da clínica no campo da saúde mental. Qualquer psiquiatra que faz uma internação involuntária o faz através do fracasso da sua capacidade de cuidar. Ela ocorre quando nada mais deu certo. Não podemos ter uma política pública baseada no fracasso.[13]
Sobre essa questão, igualmente à Agência Brasil, Luciana Boiteux, Professora de Direito Penal da UERJ, pontuou que essa ação compulsória é arbitrária e gera mais gastos e danos econômicos do que resultados, consignando que esse projeto de lei é um retrocesso ao assemelhar as internações compulsórias ao tratamento dado aos dependentes químicos antes da Lei Antimanicomial (Lei nº 10.216/2001), finalizando a sua crítica à pretensão legislativa ao assinalar: “Essa é uma lógica que amplia o tratamento não no âmbito da saúde pública, por meio de comunidades terapêuticas, mas pela institucionalização de forma higienista”.[14]
Essa política mediática e simbólica para satisfazer interesses econômicos e políticos, promove uma verdadeira exclusão social desse grupo invisível de usuários e dependentes químicos que passaram a ter visibilidade a partir do instante que criaram um espaço próprio na via pública para fazer uso da droga crack, denominados de cracolândia. É uma promoção que ocasiona uma falsa sensação de segurança à população e de se estar tutelando à saúde pública, quando na verdade se está excluindo do espaço público um grupo que o Estado deve proteger com a implementação de seus direitos sociais previstos na Constituição e assegurar o livre exercício da cidadania, tratando das causas e não apenas dos efeitos.

Com esse atuar, macula-se o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana num Estado Democrático e Social de Direito, a liberdade e a igualdade, estes direitos humanos fundamentais de primeira dimensão que reclamam uma ação negativa do Estado que deve se abster de intervenção na esfera individual do indivíduo, conforme leciona Ingo Wolfgang Sarlet,[15] uma vez que a internação compulsória do dependente de drogas só é possível judicialmente quando estiver sob a curatela do art. 1767 do CC e, nos moldes que se pretende implantar, fica inviável a necessária individualização terapêutica do usuário/dependente de crack, de forma que de fato essa ação nefasta irá produzir realmente uma higienização social, o que interessa à globalização hegemônica do neoliberalismo, mas não à globalização contra-hegemônica que se espelha no Fórum Mundial da Saúde – FMS e não no Fórum Econômico Mundial - FEM.

A própria Lei de Tóxicos (Lei n. 11.343/2006) prevê em no Título III (“Das atividades de prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas”) - diga-se de passagem, modernamente - como se deve atuar nessas duas frentes da prevenção e reinserção social, bastando a implementação ou continuidade desses serviços de relevância social, com o Estado tutelando a saúde pública como deve fazer por se tratar de um direito social fundamental.

Sob esse aspecto, trazemos à colação importante julgado em que se apontam dados relevantes que reclamam ações afirmativas a serem observadas pelo poder público:

O problema do uso de drogas (crack, em especial) é atualmente uma questão de inadiável relevância e importância social, que requer permanente e cada vez mais aguda atenção das entidades federadas, em todos os níveis de governo, estas que não se podem esquivar das obrigações que lhes são constitucionalmente traçadas, sob o argumento (sempre invocado) da ausência de estrutura física, de pessoal ou de projetos e/ou ações de implementação de uma política de prevenção, tratamento e recuperação de dependentes químicos. - É verdade que há dificuldades orçamentárias. Todos os sabem. Mas todos sabem também que os recursos existem. O que não existe é a aplicação desses recursos, que se evaporam como água no calor. Dos mais de 400 milhões de reais disponibilizados pela SENAD (Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas) apenas cerca de 20% foram aplicados. O Brasil disponibiliza menos de ½ (meio) leito para cada Município (2 mil e quinhentos leitos para todo o País) (Fonte: Estado de Minas de 11.7.2011 - pág. 7). Ora, num quadro assim caótico falar-se em reserva do possível é quase um abuso. - Como bem anotou o Exmo. Ministro Celso Mello, quando do julgamento do AgRg no RE 271.286-8/RS: O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política - que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro - não pode converter-se em promessa constitucional inconsequente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado.[16]

Essa política nefasta da internação compulsória dos dependentes químicos já ganhou repercussão mundial, tendo recentemente, no último dia 05/03/2013, em Genebra na Suíça, Juan E. Mendez, Relator da ONU para o enfrentamento à Tortura

apresentou relatório ao Conselho de Direitos Humanos no qual sinaliza que as internações compulsórias para tratamento de usuários de Crack, prática adotada por autoridades em várias capitais do Brasil, como São Paulo e Rio de Janeiro, podem se constituir forma de tortura.[17]

Em sendo assim, a política da internação compulsória está andando na contramão da inclusão social e do respeito aos direitos humanos e sociais fundamentais que englobam, dentre outros, a saúde, a educação, a segurança, a proteção à infância e a assistência aos desamparados.

3.4. Cidadania

A cidadania, juntamente com a dignidade da pessoa humana, faz parte dos princípios fundamentais que constituem o nosso Estado Democrático e Social de Direito (CF; art. 1º, II e III), não se podendo restringir esse princípio ao direito fundamental de ser cidadão àquele que tem capacidade de votar e ser votado, assinalando Dalmo de Abreu Dallari que

Através do conceito de cidadania afirmam-se os direitos fundamentais da pessoa humana, na perspectiva da convivência, que é necessidade essencial de todos os seres humanos. Assim, conjugando-se os aspectos individuais e sociais, acentua-se também o dever de participação, inerente à cidadania.[18]

Com efeito, se efetivamente cidadania se revela na capacidade que um conjunto de direitos confere à pessoa de participar da vida e do governo de seu povo, de forma ativa, quem não a tem se encontra na condição de excluído da vida social, à sua margem, [19] ou seja, invisível, não participando da tomada de decisões por se encontrar sem visibilidade, na condição indesejável de vulnerável socialmente.

Ora, diante desse quadro, faz-se necessária a participação obrigatória de representantes da comunidade na área da educação e saúde, bem como em órgãos públicos que tratem dos direitos da criança e do adolescente, concretizando a democratização da sociedade que se dá por meio do exercício dos direitos da cidadania[20], que inclui o fomento à inclusão social daqueles que vivem à margem da sociedade civil, dando-lhes reais condições dignas de vida e moradia.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ante todo o exposto, entendemos que a política da internação compulsória de dependentes químicos que estejam em situação de vulnerabilidade social, sem que sejam curatelados, não atinge as recomendações terapêuticas da OMS e SENAD, viola direitos humanos fundamentais e promove a exclusão social daqueles que vivem na invisibilidade em sociedade.

Tal procedimento atende interesses econômicos e políticos, mas não o público de promover o bem-estar da população ao assegurar o acesso e a concretude dos direitos sociais fundamentais, aproximando-se de uma conduta que pode vir a configurar tortura, conforme consta de relatório enviado ao Conselho de Direitos Humanos da ONU, prática vedada na legislação constitucional e infraconstitucional no Brasil.

5. REFERÊNCIAS

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MIRABETE, Julio Fabbrini. Juizados Especiais Criminais: comentários, jurisprudência, legislação. 4ed. São Paulo: Atlas, 2000, 486 p.
MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional. São Paulo: Atlas, 2002, 2921 p.
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TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Comentários à lei dos juizados especiais criminais. São Paulo: Saraiva, 2000, 199 p.



[1] Mestrando em Direitos Coletivos e Cidadania pela UNAERP. Especialista em Direito Público pela PUCMINAS. Especialista em Ciências Penais pela UNIDERP/REDE LFG. Professor de Penal e Processo Penal da FPU. Juiz de Direito de Entrância Especial em Minas Gerais.
[2] Mestre e Doutor em Direito pela PUCSP. Professor do Mestrado em Direitos Coletivos e Cidadania da UNAERP. Advogado e sócio fundador da Geraige Advogados Associados.
[3] Integração de Competências no Desempenho da Atividade Judiciária com Usuários e Dependentes de Drogas. Coordenação geral de Arthur Guerra de Andrade. Brasília: Ministério da Justiça, Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas, 2011, p. 93.
[4] CAS aprova possibilidade de internação compulsória de usuários de drogas. Acessível em: < http://www12.senado.gov.br/noticias/materias/2013/04/10/cas-aprova-possibilidade-de-internacao-compulsoria-de-usuarios-de-drogas>. Acesso em: 05 maio 2013.

[5] Em carta, especialistas criticam internação forçada de dependentes e pedem descriminalização de drogas no Brasil. Acessível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2013-05-05/em-carta-especialistas-criticam-internacao-forcada-de-dependentes-e-pedem-descriminalizacao-de-drogas>. Acesso em: 06 maio 2013.

[6] Idem. ob. cit.
[7] A droga – composição e ação no organismo. Crack é possível vencer. Acessível em: <http://www.brasil.gov.br/crackepossivelvencer/a-droga/composicao-e-acao-no-organismo>. Acesso em: 05 maio. 2013.
[8] Integração de Competências no Desempenho da Atividade Judiciária com Usuários e Dependentes de Drogas. Coordenação geral de Arthur Guerra de Andrade. Brasília: Ministério da Justiça, Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas, 2011, p. 129.
[9] Idem, p. 75.
[10] Idem, p. 100 -107.
[11] Idem, op.cit. p. 157.
[12] Idem. op. cit. p. 178-9.
[13] Congresso condena mudança na Lei Antidrogas. Acessível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/noticia/2013-05-03/congresso-condena-mudanca-na-lei-antidrogas>. Acesso em: 06 maio 2013.
[14] Idem. ibidem.
[15] A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 11ed. rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, p. 46-7
[16] TJMG-AGrCv nº 1.0134.11.002747-8/001. Rel. Des. Wander Marotta, j. 16/11/2011, pub. 02/09/2011.
[17] Internação compulsória: ONU declara que pode ser forma de tortura. Acessível em: <http://www.projetolegal.org.br/index.php/artigos/232-internacao-compulsoria-onu-declara-que-pode-ser-forma-de-tortura>. Acesso em: 14 maio 2013.
[18] Direitos humanos e cidadania. 2ed. São Paulo: Moderna, 2011, p. 22.
[19] Idem. Ibidem.
[20] Idem. Ob. cit., p. 24.


Publicado: Revista da AJURIS - Ano XL - nº 130 - Junho de 2013, p. 73-88

terça-feira, 5 de novembro de 2013

TRÁFICO DE DROGAS E O DEVIDO PROCESSO PENAL



Em meio a tantos dilemas, eis um tema e meio:

A Lei 11.343/06 (Tráfico de Drogas) prevê o recebimento da denúncia apenas após a resposta do réu, o que não existia à época nos demais procedimentos. E prevê o interrogatório ao início da instrução, como era de praxe àquele tempo (2006).

A Lei 11.719/08, ao alterar os ritos processuais no CPP, rejeitou a proposta que constava do anteprojeto de lei originário e determinou o recebimento da acusação antes do recebimento da denúncia ou queixa (art. 396, CPP). No particular, fez a escolha errada, segundo nos parece. Mas, não temos dúvida que se trata de matéria sujeita à conformação legislativa, isto é, que depende da opção do legislador.

E a citada Lei 11.719/08 dispôs também (art. 394, §4º) que: "as disposições do art. 395 a art. 398 (revogado) aplicam-se a todos os procedimentos penais de primeiro grau, ainda que não regulados por este Código". É dizer: aos procedimentos especiais seriam aplicadas as fases do art. 395 ao 397, seguindo-se a partir daí o respectivo rito.


Com isso, pode-se "ler" a Lei 11.343/06 com o seguinte significado: a peça acusatória será recebida antes da resposta (modificando-se o art. 55, caput, da citada Lei), e, não sendo o caso de absolvição sumária, inicia-se a instrução com o interrogatório do réu.



Contudo, pensamos possível outra interpretação: a se fazer a interpretação literal do citado art. 394, §4º, CPP, enquanto nos demais procedimentos o interrogatório seria o último ato de instrução, apenas na Lei de Drogas é que ele manteria o seu aspecto inquisitorial. Possível, portanto, argumentar-se com a modificação parcial da norma contida no art. 55, caput, da referida Lei. Também aqui, portanto, o interrogatório deverá ser o último ato da instrução.



Já o recebimento da denúncia, por força de dispositivo expresso nesse sentido (art. 394, §4º), deverá ser feito antes da resposta escrita. Recusar essa leitura terá por consequência a instituição de um rito mais favorável à defesa unicamente para um e específico procedimento. É dizer, o argumento utilizado para validar a mudança do interrogatório (para último ato da instrumento) - adequação do especial ao geral - seria solenemente ignorado, a fim de que o especial continue a prevalecer sobre o geral, apesar de norma expressa em sentido contrário.
Podemos ser contra as modificações e bobagens legislativas; nem por isso, devemos tê-las por inconstitucionais. Afinal, a Constituição é de todos...

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