quarta-feira, 26 de março de 2014

A TEORIA DA IMPUTAÇÃO OBJETIVA E ÂMBITO DE APLICAÇÃO




*Cezar Roberto Bitencourt



1. A TEORIA DA IMPUTAÇÃO OBJETIVA E ÂMBITO DE APLICAÇÃO

Como lembra Mir Puig, todo tipo doloso requer certos requisitos mínimos na conduta externa, que devem ser estudados na teoria geral do tipo doloso — e que geralmente são comuns a todo tipo objetivo, inclusive aos crimes culposos. Porém, a imputação do tipo objetivo somente é um problema da parte geral quando o tipo requer um resultado no mundo exterior separado, no tempo e no espaço, da ação do autor. Nos crimes de mera atividade, como o de falso testemunho, de ameaça, de injúria, a imputação do tipo objetivo se esgota na subsunção dos elementos do tipo respectivo, que abordamos em nosso Tratado na Parte Especial.

Como já afirmamos, a relação de causalidade não é o único elemento relevante para a imputação objetiva do resultado à conduta humana precedente. A teoria da imputação objetiva não tem, contudo, a pretensão de resolver a relação de causalidade, tampouco de substituir ou eliminar a função da teoria da conditio sine qua non. Objetiva não mais que reforçar, do ponto de vista normativo, a atribuição de um resultado penalmente relevante a uma conduta. Em outros termos, não pretende fazer prevalecer um conceito jurídico de imputação sobre um conceito natural (pré-jurídico) de causalidade, mas acrescentar-lhe conceitos normativos limitadores de sua abrangência. Com efeito, nos crimes de ação (os materiais), a relação de causalidade, embora necessária, não é suficiente para a imputação objetiva do resultado. Nos crimes comissivos por omissão, a imputação objetiva não requer uma relação de causalidade propriamente, mas apenas que o sujeito não tenha impedido o resultado quando podia e devia fazê-lo, em razão de sua condição de garante. 

Enfim, a relação de causalidade não é suficiente nos crimes de ação, nem sempre é necessária nos crimes de omissão e é absolutamente irrelevante nos crimes de mera atividade. Portanto, a teoria da imputação objetiva tem espaço e importância reduzidos.

2. Teoria da imputação objetiva e o risco não permitido

Para a teoria da imputação objetiva, o resultado de uma conduta humana somente pode ser objetivamente imputado a seu autor quando tenha criado a um bem jurídico uma situação de risco juridicamente proibido (não permitido) e tal risco se tenha concretizado em um resultado típico. Em outros termos, somente é admissível a imputação objetiva do fato se o resultado tiver sido causado pelo risco não permitido criado pelo autor. Para Roxin, “um resultado causado pelo agente somente pode ser imputado ao tipo objetivo se a conduta do autor criou um perigo para o bem jurídico não coberto pelo risco permitido, e se esse perigo também se realizou no resultado concreto”. Em síntese, determinado resultado somente pode ser imputado a alguém como obra sua e não como mero produto do azar. A teoria objetiva estrutura-se, basicamente, sobre um conceito fundamental: o risco permitido. Permitido o risco, isto é, sendo socialmente tolerado, não cabe a imputação; se, porém, o risco for proibido, caberá, em princípio, a imputação objetiva do resultado.

A teoria da imputação objetiva pode ser vista, sob essa perspectiva, como uma evolução da ideia da causa juridicamente relevante, na medida em que dá um passo adiante, em relação à proposta referida por Mezger, e oferece critérios normativos para a delimitação da tipicidade objetiva. Por outro lado, a teoria da imputação objetiva pode ser vista como uma evolução da teoria da adequação, na medida em que aperfeiçoa o critério da previsibilidade objetiva em prol de uma melhor delimitação da conduta típica relevante. Apresenta-se, nesse sentido, como uma teoria capaz de abordar os requisitos valorativos necessários para aferir a tipicidade objetiva de uma conduta, sem incorrer na clássica confusão entre o plano causal ontológico e o plano normativo.Para Martínez Escamilla, essa teoria hoje representa um contraponto ao método ontológico do finalismo e se estrutura a partir de considerações eminentemente valorativas, relacionadas com determinadas concepções de sistema penal, concretamente, com concepções funcionalistas. 

3. Requisitos básicos da imputação objetiva na visão de Roxin

Na concepção de Roxin, a teoria da imputação objetiva estabelece três requisitos básicos para a imputação objetiva do resultado, que representam, em realidade, três grandes grupos de problemas: a) a criação de um risco jurídico-penal relevante, não coberto pelo risco permitido; b) a realização desse risco no resultado; e c) que o resultado produzido entre no âmbito de proteção da norma penal. 

O primeiro requisito, (i) a criação de um risco jurídico-penal relevante, visa identificar se a conduta praticada pelo agente infringe alguma norma do convívio social, e pode ser valorada como tipicamente relevante. Concretamente, se se trata de uma conduta perigosa, idônea para a produção de um resultado típico, não coberta pelo risco permitido. Em caso afirmativo, pode-se dizer que a conduta representa a criação de um risco jurídico-penal proibido, sendo, nesse sentido, relevante para o Direito Penal. Em caso negativo, isto é, se a conduta praticada não é idônea para a produção do resultado típico, ou, sendo idônea, está permitida pelo ordenamento jurídico, então fica afastada a relevância típica da conduta, que não poderá sequer ser punida a título de tentativa. Uma vez constatada a relevância típica da conduta praticada, é necessário analisar se o agente pode ser responsabilizado pela prática de um crime consumado, ou seja, se está presente o segundo requisito, (ii) a realização do risco proibido no resultado. A responsabilidade pelo delito consumado deve ser inicialmente inferida pela constatação da relação de causalidade entre a conduta do agente e o resultado típico. Além disso, é necessário demonstrar se o resultado típico representa, precisamente, a realização do risco proibido criado ou incrementado pelo agente. Quanto ao terceiro requisito, (iii) âmbito de proteção da norma, trata-se de um limitador da imputação objetiva, que visa à interpretação restritiva dos tipos penais, de tal modo que, em determinados casos, seja possível negar a imputação do resultado, inclusive quando os outros dois requisitos estejam presentes. Como adverte Roxin, no momento de valorar se o resultado é a realização do risco não permitido, é necessário estabelecer uma correspondência entre a finalidade, o alcance da norma de cuidado (sob a perspectiva ex ante) e o resultado, de modo que não se pode imputar o resultado à conduta se a norma de cuidado era insuficiente ou inadequada para evitar o resultado finalmente produzido. Ou seja, apesar de a conduta gerar um risco tipicamente relevante, não amparado por um risco permitido, não haverá imputação se se verificar, ex post, que os cuidados exigidos, ex ante, não eram suficientes nem adequados para evitar o resultado desvalorado, na medida em que fatores imprevisíveis ou desconhecidos (ex ante) também interferiram na produção do resultado típico.

4. Critérios da imputação objetiva na visão de Jakobs

Por outro lado, Jakobs propõe um desenvolvimento da teoria da imputação objetiva também distinto. Atribui, em princípio, uma finalidade similar à formulada por Roxin para a teoria da imputação objetiva. Com efeito, na concepção de Jakobs, essa teoria tem a missão de identificar “as propriedades objetivas gerais da conduta imputável”. Entretanto, opta por uma via metodológica diferente à de Roxin, para determinar os critérios de imputação objetiva, estreitamente vinculada à sua concepção funcional normativista do sistema penal. Essa concepção vem sendo duramente criticada pela doutrina especializada por conduzir a um juízo de valor eminentemente formal e abstrato da relevância típica da conduta, carente de um referente material estável e empírico contrastável, para fins de delimitação da conduta punível. Além disso, questiona-se o alcance que essa teoria assume na formulação de Jakobs, que pretende reinterpretar, em sua totalidade, o conteúdo e significado dos elementos que compõem o injusto penal, ultrapassando os limites da relevância típica de uma determinada conduta para projetar-se, inclusive, sobre o tratamento da autoria e participação no delito.

5. A teoria da imputação objetiva encerra um duplo juízo de imputação

A teoria da imputação objetiva, a nosso juízo, tem grande utilidade para a delimitação da tipicidade nos crimes de resultado, isto é, para aqueles casos em que a descrição dos elementos do tipo exige que a consumação do delito somente ocorra com um resultado no mundo exterior separado, no tempo e no espaço, do comportamento que o precede (os denominados crimes materiais). Nesse âmbito, os critérios de imputação objetiva servem tanto para a delimitação da conduta penalmente relevante como para a atribuição do resultado típico àquela(s) conduta(s) que se identifique(m) como relevante(s) para o Direito Penal, e apta(s) para a produção do resultado. Com essa configuração, estamos de acordo com Roxin, Jakobs, Martínez Escamilla, Mir Puig, entre outros, no sentido de que a teoria da imputação objetiva encerra um duplo juízo de imputação: (i) um juízo ex ante sobre a relevância típica da conduta, e (ii) um juízo ex post, sobre a possibilidade de atribuição do resultado típico àquela conduta.

No nosso entendimento, o primeiro juízo de imputação (relevância típica da conduta) está diretamente vinculado à valoração da criação de um risco proibido. Vale advertir, desde logo, que as considerações sobre a criação de um risco jurídico-penalmente relevante não constituem uma descoberta da teoria da imputação objetiva. Em realidade, desde que Welzel destacou que o ilícito penal não poderia ser explicado somente como desvalor do resultado, e que a lesão ou exposição ao perigo de um determinado bem jurídico somente interessa se, previamente, se identifica uma conduta relevante para o Direito Penal, os estudiosos da dogmática penal vêm se preocupando com os requisitos que identificam a perigosidade da conduta ex ante e sua relevância típica, isto é, o desvalor da ação. O mérito da teoria da imputação objetiva consiste em haver sistematizado critérios para este fim desde uma perspectiva normativa, consolidando na doutrina o entendimento de que as valorações jurídico-penais não devem estar limitadas a considerações ontológicas. Cabe, sem embargo, destacar que, com a afirmação da necessidade de identificar a criação de um risco jurídico-penalmente relevante, somente estamos indicando o problema normativo que deve ser resolvido, e não, propriamente, os critérios que nos auxiliam na sua resolução. Com efeito, existe ampla discussão acerca de quais seriam esses critérios, bastando, por exemplo, comparar as diferenças existentes entre a postura de Jakobs e a de Roxin.

5.1. Juízo ex post, sobre a possibilidade de atribuição do resultado típico àquela conduta

Ultrapassado esse primeiro filtro valorativo, o passo seguinte consiste em identificar se o risco ex ante adequado à produção do resultado é, de fato, um risco permitido, ou se constitui um risco proibido. É nesse momento que começamos a valorar se a conduta corresponde, ou não, à prática de uma atividade lícita, socialmente útil, realizada dentro do limite mínimo da prudência, isto é, atendendo aos cuidados minimamente necessários para a vida em sociedade. Esse critério pode ser explicado por meio da função preventiva do Direito Penal, no sentido de que este não tem a finalidade de proteger de maneira absoluta os bens jurídicos relevantes para a sociedade, mas somente de maneira residual e fragmentária. Com relação ao segundo juízo de imputação – ex post -, neste âmbito, trata-se de verificar se o resultado típico pode ser atribuído à conduta previamente identificada como relevante. Para este fim, são úteis os seguintes critérios sistematizados pela teoria da imputação objetiva que passamos a analisar a seguir.

Em primeiro lugar, é necessário constatar a relação de causalidade nos termos da teoria da conditio sine qua non. Esta constitui, como já advertimos, o primeiro fator a levar em consideração: se a conduta não pode ser vista como causa do resultado, não há que seguir indagando sobre a relevância típica do comportamento. Superado esse primeiro requisito, isto é, constatado que a conduta deu causa ao resultado, desde uma perspectiva naturalista, passamos a indagar se esse resultado representa, desde uma perspectiva normativa, justamente a realização do risco proibido criado pelo autor, ou se outros fatores interferiram na sua produção. A esse respeito são precisas as palavras de Frisch, segundo o qual, “os resultados que não possam ser concebidos como a realização do risco típico desaprovado, criado pelo autor, ficam excluídos como resultado típico imputável ao (obra do) autor”.

5.2 Conduta que representa diminuição do risco 

Pode ocorrer, no entanto, que, apesar de a conduta do sujeito ser adequada para a produção do resultado e de representar a criação de um risco proibido, não deve ser considerada relevante para efeitos penais. Referimo-nos aos casos em que a conduta realizada represente uma diminuição do risco de lesão do bem jurídico. Este critério, proposto por Roxin, aplica-se às hipóteses em que o sujeito modifica o curso causal e diminui a situação de perigo já existente para o bem jurídico, e, portanto, melhora a situação do objeto da ação. Assim, de acordo com esse critério, “Apesar de ser causa do resultado, quem pode desviar a pedra que vê voar em direção à cabeça de outrem, sem a tornar inócua, mas fazendo-a atingir uma parte do corpo menos perigosa, não comete lesões corporais. Tampouco as comete o médico que, através de suas medidas, consegue unicamente postergar a morte de seu paciente”. E a aplicação desse critério possibilitaria decidir, já no âmbito da tipicidade, a relevância penal da conduta, não sendo necessário, nesses casos, indagar sobre a caracterização de uma causa de justificação.

6. Solução de casos duvidosos: o fim de proteção da norma

Sob essa perspectiva crítica, a doutrina especializada considera mais adequado solucionar os casos duvidosos por meio do critério do fim de proteção da norma, refletindo sobre os riscos que a norma penal pretende e pode evitar. Mediante esse critério, não poderá ser atribuído um resultado típico a uma conduta perigosa se a medida de proteção, ex ante adequada para evitar o resultado típico, é considerada ex post inadequada para evitá-lo. Na verdade, não entraria no âmbito de proteção da norma de cuidado evitar resultados impossíveis de controlar, de maneira ex ante planificada: assim, ficaria afastada a imputação do resultado, mesmo estando demonstrado o nexo de causalidade entre a conduta e o resultado. 

Ocorre que, inclusive entre os autores que defendem esse critério, não existe unanimidade quanto ao seu alcance. E essa é uma questão de especial importância, porque repercute diretamente no juízo de valoração acerca da atribuição, ou não, de responsabilidade penal. Se entendermos, como Martínez Escamilla, que no caso dos pelos de cabra a finalidade da norma de cuidado (o dever de esterilização) abrange, de modo geral, o dever de evitar ou diminuir os riscos de contágio de enfermidades pela manipulação de ditos pelos, então esse critério fundamenta a relação de risco e justifica a imputação do resultado ao empresário que infringiu a referida norma de cuidado. Entretanto, se entendemos, como Corcoy Bidasolo, que a norma de cuidado corresponde ao dever de cuidado a ser observado no caso concreto, com conhecimento de todas as circunstâncias existentes (ex ante e ex post), então o conteúdo e a finalidade do dever de cuidado se limitariam ao âmbito da capacidade desta norma de efetivamente controlar ou evitar os riscos de contágio da enfermidade específica transmitida pela, até então desconhecida, bactéria, quando da manipulação dos pelos de cabra. Considerando que a esterilização convencional não era apta a evitar o específico contágio produzido, porque era desconhecida essa possibilidade, então esse dever não se circunscreve no âmbito do fim de proteção da norma; logo, não é possível demonstrar o nexo entre a criação do risco proibido e o resultado produzido, nem justificar a imputação do resultado ao empresário, porque a norma de cuidado no caso, ex ante aplicável, não tinha por finalidade evitar aquele tipo de contágio, nem, finalmente, o resultado produzido.

12. Considerações críticas

Os reflexos da teoria da imputação objetiva e suas versões devem ser muito mais modestos do que o furor de perplexidades que andou causando no continente latino-americano. Afinal, as únicas certezas, até agora, apresentadas pela teoria da imputação objetiva são a incerteza dos seus enunciados, a imprecisão dos seus conceitos e a insegurança dos resultados a que pode levar quando comparamos as inúmeras propostas formuladas pela doutrina a respeito! Aliás, o próprio Claus Roxin, maior expoente da teoria em exame, afirma que “o conceito de risco permitido é utilizado em múltiplos contextos, mas sobre seu significado e posição sistemática reina a mais absoluta falta de clareza”. Por isso, sem se opor às inquietudes e às investigações que se vêm realizando, já há alguns anos, recomenda-se cautela e muita reflexão no que se refere aos progressos e resultados “miraculosos” sustentados por determinado segmento de aficionados de tal teoria.

Na realidade, a teoria da imputação objetiva tem natureza complementar, uma vez que não despreza de todo a solução oferecida pela teoria da conditio, pois admite essa solução causal. Propõe-se, na verdade, a discutir e a propor critérios normativos limitadores dessa causalidade, sendo desnecessário, consequentemente, projetar critérios positivos, mostrando-se suficientes somente critérios negativos de atribuição. Nesse sentido, afirma, com muita propriedade, Juarez Tavares que “a teoria da imputação objetiva, portanto, não é uma teoria para atribuir, senão para restringir a incidência da proibição ou determinação típica sobre determinado sujeito. Simplesmente, por não acentuarem esse aspecto, é que falham no exame do injusto inúmeras concepções que buscam fundamentá-lo”. E, nessa mesma linha, afirma Paulo Queiroz que ela “é mais uma teoria da ‘não imputação’ do que uma teoria ‘da imputação’”. Na verdade, a teoria da imputação objetiva, mais que imputar, tem a finalidade de delimitar o âmbito e os reflexos da causalidade física.

Por fim, as dificuldades ainda existentes na sistematização dos critérios de imputação objetiva não desvirtuam, contudo, o grande mérito dessa teoria, qual seja, a consolidação na dogmática penal da utilização de considerações normativas, próprias do discurso jurídico, já na delimitação da tipicidade. De tal forma que sempre que realizarmos o juízo de subsunção de uma conduta em face de um delito de resultado, deveremos analisar se a conduta sobre a qual recai o juízo de tipicidade cria um risco proibido (desvalor e ação) e, para a atribuição do delito consumado, se esse risco se realizou no resultado típico (desvalor de resultado). A eleição dos critérios valorativos é, certamente, discutível, mas não a necessidade de realizar esse duplo juízo de imputação.

* Doutor em Direito Penal pela Universidade de Sevilha/ES. Advogado.

FONTE: https://www.facebook.com/cezarroberto.bitencourt/posts/625714970772242

domingo, 23 de março de 2014

... NOVO MANIFESTO DOS CRIMINALISTAS CONTRA TEXTO DA REFORMA PENAL ...

“Este Código não é digno do povo brasileiro”

  
O que já estava ruim ficou ainda pior.
A comunidade jurídica reage, novamente, de forma enfática e contundente contra o PLS 236, que se pretende o novo Código Penal, de autoria do senador Pedro Taques, com base no texto que havia sido produzido pela “Comissão Sarney”, e já recebera fortes críticas de criminalistas de todo o país.
Por isso, e pelo frontal ataque aos princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito, é que o os juristas estão dizendo novamente não apenas que o “texto não constitui a síntese das críticas e colaborações científicas que lhe foram dirigidas”, como ainda, e o que é significativamente mais grave, “surpreende ao manter inalterado ou mesmo promover e incrementar seus vícios primitivos mais evidentes”.
O texto que segue foi produzido em Seminário realizado em homenagem ao Doutor e Juiz da Corte Constitucional Alemã Winfried Hassemer, na Escola da Magistratura do Rio de Janeiro, entre os dias 20 e 21 de Março de 2014, foi abraçado pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais e está aberto a subscrições.
 
NOVO MANIFESTO DOS CRIMINALISTAS BRASILEIROS CONTRA O PLS 236
Oposição democrática contra o absurdo codificado
 
            Os Professores, Magistrados, Advogados, Defensores, membros do Ministério Público e Juristas que abaixo subscrevem, na ocasião da homenagem à vida e obra do eminente Doutor e Juiz da Corte Constitucional Alemã Winfried Hassemer, em Congresso realizado na Escola da Magistratura do Rio de Janeiro, nos dias 20 e 21 de março de 2014, manifestam seu veemente e inequívoco repúdio ao texto revisado do Projeto de Lei 236, objeto de Parecer de autoria do Senador Pedro Taques, cujo conteúdo é absolutamente incompatível com os princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito.
            O texto que precedia a revisão, produto dos esforços da chamada “Comissão Sarney”, foi, desde cedo e merecidamente, criticado por criminalistas de todo o país, especialmente por suas grosseiras deficiências técnicas, em boa medida determinadas pelo Programa de Política Penal que tem por base, tão conhecido quanto atrasado.
Na tentativa de salvar um Projeto de Lei além de qualquer possibilidade de salvação e após sucessivos encontros com especialistas em Direito Penal, o trabalho de revisão coordenado pelo mencionado Senador vem agora a público e surpreende ao manter inalterado ou mesmo promover e incrementar seus vícios primitivos mais evidentes. Neste sentido, ao contrário do que afirma, o texto não constitui a síntese das críticas e colaborações científicas que lhe foram dirigidas.
            Nele se descobre, infelizmente e mais uma vez, que a classe política brasileira é carente da mínima informação científica em matéria criminal, impedindo qualquer elogio dogmático ao texto. Alguns pontos são graves: no que se refere à distinção entre dolo eventual e culpa consciente, o texto adota a ultrapassada “teoria da indiferença”, superada há mais de 100 anos e historicamente resgatada pelos juristas nazistas para facilitar a imputação dolosa contra os “inimigos” da “comunidade do povo”, tragédia que agora corre o risco de se repetir como farsa. Mas a filiação a categorias privilegiadas por fascistas – justificada porque “mais precisa”, segundo os termos do Parecer – está longe de esgotar seu conteúdo antidemocrático. De fato, o mesmo se pode dizer em relação à definição de autoria, onde se pretende incorporar a chamada “teoria do domínio do fato” para ampliar o alcance da lei penal e estender aos crimes comuns a figura duvidosa dos aparelhos organizados de poder, que só poderia caber nos regimes políticos autoritários. Temos, aqui, aliás, possível caso de erro legislativo inescusável, pois bastaria ler a obra do autor que desenvolveu a teoria – o celebrado Professor alemão Claus Roxin – para perceber que seu objetivo fundamental é restringir, ao invés de estender, o chamado conceito unitário, previsto no artigo 29 do atual Código Penal.
            Mas não é só: preso à obtusa e reacionária ideia de pena como “vingança social”, o Parecer também pretende justificar a criação de novas hipóteses qualificadoras do homicídio de natureza puramente subjetiva, ataca o princípio da legalidade ao admitir expressões elusivas como “grave lesão à sociedade” para agravar punições e propõe a criminalização temerária do terrorismo e pormenorizada da eutanásia. Para piorar, em relação ao mais importante ponto do sistema de justiça criminal contemporâneo, distancia-se da pesquisa criminológica das últimas décadas e aumenta a pena cominada ao tráfico para até 21 anos, ao mesmo tempo em que “descriminaliza” o consumo não ostensivo, perpetuando com isso uma Política Criminal de Drogas contraditória, classista, fracassada e perigosamente suscetível a oportunistas oscilações interpretativas.
Esse é, a propósito, o traço distintivo do Projeto, com ou sem revisão: todo e qualquer aparente avanço é imediatamente anulado por uma medida draconiana – por todas, o aumento do tempo necessário para progressão de regime na execução da pena privativa de liberdade, que passa de um sexto para um quarto da pena, mesmo para réus primários em crime doloso.
Da mesma forma, se, por um lado, o Projeto propõe abolir a lei de contravenções, por outro, transforma em crimes a “exploração de jogos de azar” e a “perturbação do sossego”, o que é simplesmente irracional.
O caráter meramente retórico da tentativa de democratização do sistema penal, anunciada como propósito do Projeto de Lei, é igualmente visível na ampliação do rol dos crimes hediondos, no irresponsável desrespeito à proporcionalidade entre penas, bens jurídicos e graus de lesão descritos nos tipos legais; no retrocesso quanto aos casos de descriminalização do aborto; no aumento da pena de quase todos os crimes; na eliminação da prescrição pela pena em concreto depois de transitada a sentença para a acusação; na exclusão da circunstância atenuante especial (hoje prevista no art. 66 do Código Penal); ao impedir a combinação de leis mais favoráveis; ao eliminar a diminuição de pena para fato dolosamente distinto; ao restaurar a antiga categoria da multa temerária, que é tipicamente de direito civil; ao adotar no tocante ao erro a teoria extrema da culpabilidade, já abandonada pela doutrina jurídica universal desde 1975; ao aumentar o valor máximo do dia-multa, considerando que para isso o valor de máximo de referência será de 720 dias e não 360; ao abolir a distinção entre reclusão e detenção e de institutos democráticos como o livramento condicional e a suspensão condicional da pena, teses defendidas sem qualquer prognóstico realista sobre suas consequências humanas e financeiras.
Mas, esforçando-se para soar suficientemente “contemporâneo” e fugir de seu paradoxal anacronismo, o Parecer defende adiante a criação de “novos crimes”, tão desnecessários quanto caricatos, em mais uma demonstração de vulgar adesão ao populismo penal. Assim, diante dos delitos de “stalking”, “bullying”, “corrupção entre particulares” e “crimes cibernéticos” não parece desarrazoado supor o predomínio da vontade de atrair atenção midiática em detrimento do propósito real de efetivamente atualizar o ordenamento jurídico-penal. Nem isso se conseguiu.
            Em conclusão, considerando que nenhum avanço eventualmente trazido pelo texto justifica os gravíssimos erros e retrocessos que endossa, aqueles que insistirem em sua tramitação e eventual aprovação prestarão um verdadeiro desserviço à democracia e à ciência jurídico-penal.
Logo, este manifesto, abaixo assinado e abraçado pelo sempre combativo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, não se resume à declaração de inconformismo com um projeto de lei autoritário por parte de juristas politicamente comprometidos com democracia, reunidos para homenagear um dos maiores expoentes na defesa de um Direito Penal submetido à razão e coerente com a promoção dos direitos fundamentais. À sombra dos 50 anos do golpe militar, esta declaração pública de repúdio ao absurdo codificado também estende um convite a todos os criminalistas brasileiros, para que resistam intransigentes à escatológica possibilidade de ceder a mais essa tentação punitiva que se gesta no Congresso Nacional: este Código não é digno do povo brasileiro.
 
Rio de Janeiro, 21 de março de 2014
 
Juarez Tavares (UERJ)
Juarez Cirino dos Santos (ICPC)
Jacinto Nelson de Miranda Coutinho (UFPR)
Geraldo Prado (UFRJ)
Maurício Dieter (USP)
Jacson Zillio (MPPR)
Antonio Martins (Uni-Frankfurt)
Ulfrid Neumann (Uni-Frankfurt)
Rubens Casara (TJRJ)
Alexandre Morais da Rosa (TJSC)
Leonardo Costa de Paula (UCAM)
Cezar Roberto Bitencourt (Advogado)
Ademar Borges (UNB)
Marcelo Semer (TJSP)
Ana Elisa Bechara (USP)
Alexandre Mendes (UERJ)
Patrick Cacicedo (DPSP)
Fauzi Hassan Choukr (MPSP)
Isabel Coelho (TJRJ)
Sergio Verani (TJRJ)
Fernanda Tortima (OABRJ)
Reinaldo Santos de Almeida Júnior (UFRJ)
Leonardo Yarochewsky (PUCMG)
Alexandre Mallet (UCAM)
Katie Arguello (UFPR)
Tiago Joffily (MPRJ)
Antonio Sergio Altieri de Moraes Pitombo (Advogado)
Luciano Cirino dos Santos (Advogado)
Soraya Vieira Gomide (Advogada)
Simone Dalila Lopes (TJRJ)
Julia Thomaz Sandroni (Advogada)
Wadih Damous (Advogado)
Maria Gabriela Peixoto (Advogada)
Gisela Baer (Advogada)
Janine Fernanda Fanucchi de Almeida Melo (Advogada)
Nathalia de Paula Moreira Frattezi (Consultora)
André Lozano Andrade (Advogado)
Gabrielle Stricker do Valle (Consultora)
Jair Cirino dos Santos (MPPR)
André B. do Nascimento (Advogado)
June Cirino dos Santos (Consultora)
Caio Patricio de Almeida (Consultor)
Ricardo Krug (Consultor)
Elisa Blasi (Advogada)
Wanisy Roncone Ribeiro (Advogada)
Leomar Wittig (Advogada)
Carlos Eduardo Machado (Advogado)
Luiza Labatut (Consultora)
Fernando Augusto Fernandes (Advogado)
Vitor Barra Veiga (Advogado)
Marcia Dinis (Advogada)
Lourinelson Vladmir (Advogado)
Priscila Pedrosa (Advogada)
Mayra Cotta de Souza (UNB)
Ana Carolina Andrade Carneiro (DPU)


Vera Regina Pereira de Andrade (UFSC)

Marcio Sotelo Felippe (Advogado) 

Pedro Estevam Serrano (PUC-SP) 

Marcos Peixoto (TJRJ) 

Felipe Caldeira (Advogado)

Antônio José Pêcego (TJMG)
 
FONTE: http://blog-sem-juizo.blogspot.com.br/ 

sábado, 15 de março de 2014

CONVITE PARA LANÇAMENTO DO LIVRO: "PROVA PENAL E SISTEMA DE CONTROLES EPISTÊMICOS"


SEMINÁRIO DE DIREITO PENAL, CRIMINOLOGIA E PROCESSO PENAL EM HOMENAGEM A WINFRIED HASSEMER


TEORIA UNITÁRIA DO PROCESSO X TEORIA GERAL DO PROCESSO PENAL




Sobre o debate: teoria unitária do processo vs teoria geral do processo penal:

Recentemente, em uma lista de discussão de que participo, o tema da possibilidade de uma teoria unitária do processo voltou a ocupar lugar de destaque.

Penso que para além do cerne da controvérsia, ou seja, de saber se há ou não condições para uma teoria unitária do processo, a reiterada retomada do assunto - que é de fato relevante no âmbito do saber jurídico e não cabe nos limites de um post, no FB - tem aprisionado as categorias do processo penal em um marco de referências tradicional, que para o caso brasileiro é autoritário, e está condicionando toda a discussão conforme as categorias jurídicas elaboradas neste contexto inquisitório.

Indagar se há ou não lide penal, conflito de interesses ou o que significa a pretensão processual parece implicar em manter as questões no nível discursivo que é funcional à resistência às transformações que a Constituição e os tratados sobre os direitos humanos devem representar.

Do ponto de vista epistemológico há ainda outras derivações, a começar pelas consequências relativamente à perseverança em avaliar as teorias a partir de supostas qualidades epistemológicas superiores, por meio de um padrão de crítica e análise próprio do positivismo.

Não creio que este seja o melhor caminho.

Em vista disso, divulgo minha mensagem enviada à lista como contribuição, com alterações em respeito à privacidade do grupo e para facilitar o entendimento do contexto.

Forte abraço,
Geraldo

"O tema é muito interessante, como todos sublinharam.
Karl Popper sustentou, em um momento específico de sua produção intelectual, na década de 1920, que o corpus teórico "é algo que o entendimento tenta prescrever à natureza; algo que a natureza frequentemente não permite que se prescreva a ela."

Sob a ótica positivista – e Popper era positivista - teorias seriam hipóteses com alta probabilidade de "descrição" dos fenômenos e isso delimitaria, portanto, o campo de teste de seu êxito.

Sua elaboração acerca dos aspectos concretos coincidentemente explicados pela física newtoniana e pela einsteiniana, a partir de pressupostos que as antagonizavam a ponto de apenas uma delas poder ser considerada correta, isto é, justificada, colocou em evidência o paradoxo das teorias: conhecimento, certeza, justificação e refutação estariam permanentemente juntos, uns como possibilidade dos outros.

A conclusão de Popper, transposta para o debate e exposta no seguinte argumento, aponta para as dificuldades de julgamento acerca da validade da(s) teoria(s) do processo:

"… A situação lógico-epistêmica revelada pela teoria einsteiniana é revolucionária. Pois mostra que mesmo para a teoria empírica mais bem-sucedida T1 [newtoniana]… pode haver uma teoria concorrente T2 [einsteiniana] que, por um lado, contradiz logicamente T1 (de tal modo que ao menos uma entre ambas deve ser falsa) e, que, por outro, seja confirmada por todos os experimentos prévios que confirmam T1."

Os vários argumentos citados pelos defensores da teoria unitária confirmam a validade – justificam a – da teoria unitária; os argumentos mencionados pelos defensores da teoria dualista igualmente justificam esta teoria. 

Ambos tratam da mesma realidade.

Creio que se o debate ficar circunscrito ao campo da filosofia positivista da ciência, cada lado terá sua "razão" mesmo exauridos os argumentos.

Há algum tempo tenho optado por percorrer outros caminhos.

Não creio que as teorias sociais – e talvez quaisquer outras – sejam "descritivas" ou "meramente descritivas". 

O belo livro de Iñigo Ortiz sobre o positivismo jurídico denuncia o quanto há de "prescritivo" em qualquer corpus teórico.

O Direito lida com o Poder e em minha opinião as disputas de sentido, os embates hermenêuticos, são embates políticos.

A teoria unitária "prescreve" um tipo de juiz; a dualista prescreve outro.

Bourdieu assinala que do resultado sempre provisório destes embates resultam decisões científicas e pragmáticas no âmbito da economia da ciência (quem será titular da cadeira da disciplina de processo, quem será indicado parecerista no MJ, para opinar sobre projetos de lei, quem será ministro da Justiça, do STF etc.).

Não é recomendável acreditar em neutralidade científica quando o quadro visível é este.
Thomas Kuhn e mais recentemente Hassemer, que será homenageado semana que vem, na EMERJ (21/03/14), defendiam que uma teoria não era necessariamente "substituída" por outra em virtude de uma suposta melhor qualidade epistêmica da segunda; isso é um mito.

Teorias são abandonadas quando deixam de cumprir a sua função no mundo prático.
A posição de Kuhn e Hassemer soa a heresia para os positivistas. 

E é a crença positivista sobre a "melhor teoria" que suscita muitos dos debates entre escolas… com todas as consequências, relativamente ao capital científico, referidas por Bourdieu.

Sou da opinião de que devemos abandonar este caminho. 

Evitar um debate entre escolas que pareça um embate, confronto.

Para ficar somente no âmbito do "conflito" (propositalmente excluo o "de interesses"), porque o discurso o enquadra, em geral, na perspectiva da teoria unitária, em 1980 Zaffaroni chamava a atenção para o fato de que o Código Penal havia sido idealizado como um programa de "resolução de conflitos", algo irreal, simbólico.

Ressalto: esta denúncia de Zaffaroni sobre o ponto tem apenas 34 anos, formulada no contexto de exame de propostas do Conselho da Europa (Informe do Comitê Europeu sobre problemas da criminalidade, 1980).

Muito pouco tempo, portanto, em termos de história de sistema penal.

Os antropólogos, por sua vez, com razão afirmam que a ideia de conflito foi responsável por avanços, relativamente aos métodos de responsabilização criminal (Edmundo Hendler), porque introduziram a publicidade no processo penal com o objetivo de quebrar a espinha do modelo inquisitório (se não há conflito, mas mera apuração de um fato e sua autoria, dizia-se ao tempo da Inquisição, por quê o processo necessita ser público?). 

A publicidade para o modelo autoritário deveria ser – e está voltando a ser – a publicidade da punição e não do processo.

Neste caso, revela-se a centralidade do "conflito" sob a ótica estrita do processo penal, com base em experiências concretas, mesmo sem falar em mediação penal e restauratividade.

Para se ter noção do caráter complexo de se pautar o debate em "que teoria é melhor?", a dogmática do processo penal norte-americano desconhece solenemente a expressão "princípio acusatório", que nós empregamos para defender um tipo de processo semelhante à estrutura adversarial que eles sustentam, mas não aplicam, porque dão preferência à inquisitorial barganha.

Neste contexto, e me perdoem pela longa mensagem, defendo a posição de que é preferível ocupar espaços institucionais, em fileiras cerradas em torno de um processo penal que defenda a concretização das garantias da CR e do Pacto de São José da Costa Rica, independentemente de filiações teóricas.

No plano interno da doutrina, claro, a reflexão sobre que tipo de juiz, MP e defesa queremos é importante, mas deve ser fruto da noção de que a pauta, relativamente às funções dos sujeitos e do próprio processo, determinará as opções. Uma coisa não exclui a outra.

Pode ser significativo que os mais conservadores profissionais do direito sejam, em geral, os mais ardorosos defensores da teoria unitária na atualidade e empreguem como argumento o que o prof. Cruz e Tucci, com precisão inigualável, definiu como uma comum teoria da linguagem processual, algo que é muito diferente de uma teoria (da função) do processo penal.

Não necessariamente isso importará em alinhar os filiados a essa corrente em um grupo que se opõe às garantias ou que os defensores da teoria dualista sejam sempre progressistas em seus posicionamentos e ações.

Forte abraço,

Fonte: https://www.facebook.com/geraldoprado 

sábado, 1 de março de 2014

DISTINÇÃO DOGMÁTICA ENTRE ASSOCIAÇÃO CRIMINOSA E CONCURSO EVENTUAL DE PESSOAS

* Cezar Roberto Bitencourt




1. Associação criminosa e concurso eventual de pessoas


A despeito da pluralidade de participantes na prática delituosa, e da existência de vínculos psicológicos entre os autores, o crime de associação criminosa, que é de concurso necessário, não se confunde com o instituto de concurso de pessoas, que é eventual e temporário. Com efeito, o crime de associação criminosa, com sua natureza de infração autônoma, configura-se quando os componentes do grupo formam uma associação organizada, estável e permanente, com programas previamente preparados para a prática de crimes, reiteradamente, com a adesão de todos. Concurso eventual de pessoas, por sua vez, é a consciente e voluntária participação de duas ou mais pessoas na prática da mesma infração penal. A intervenção de inúmeras pessoas (quatro, cinco ou mais), por si só, é insuficiente para caracterizar a associação criminosa, ao contrário do que tem sido, amiudemente, interpretado. O magistério de Antolisei relativamente ao Código Penal Rocco, que serviu de modelo para nosso Código Penal de 1940, mais uma vez, ilustra essa distinção no nosso Direito Penal: “L’associazione per delinquere presenta qualche affinità con la comparteci­pazione criminosa, ma ne differisce profondamente nel concorso di persone, infatti, l’accordo fra i compartecipi è circoscritto allá realizzazione di uno o più delitti nettamente individuati, commessi i quali l’accordo medesino si esaurisce e, quindi viene meno ogni pericolo per la comunità. Nell associazione a delinquere, invece, dopo l’eventuale commissione di uno o più reati, il vincolo associativo permane per l’ulteriore attuazione del programma di delinquenza prestabilito e, quindi, persiste quel pericolo per l’ordine pubblico che è caratteristica esenciale del reato”.

A associação de forma estável e permanente, bem como o objetivo de praticar vários crimes, é o que diferencia o crime de associação criminosa do concurso eventual de pessoas (coautoria ou participação). Para a configuração do crime é irrelevante que o bando tenha ou não praticado algum delito. Com efeito, o crime de associação criminosa (art. 288) pode consumar-se e extinguir-se sem ter sido cometido um só crime, embora se tenha constitui­do para a prática de um número indeterminado deles.

Ao contrário da associação criminosa, no entanto, a simples organização ou acordo prévio para a prática de crimes previamente determinados está mais para concurso eventual de pessoas do que para associação criminosa. O concurso de pessoas compreende não só a contribuição causal, puramente objetiva, mas também a contribuição subjetiva, que não necessita revestir-se da qualidade de acordo prévio, como exigia a velha doutrina francesa. Segundo o magistério de Sebastian Soler , é suficiente o conhecimento da própria ação como parte de um todo, sendo desnecessário o pacto sceleris formal, ao qual os franceses deram um valor exagerado; mas, se existir, representará a forma mais comum e ordinária de adesão de vontades na realização de uma ação delituosa . 

Enfim, não se pode confundir coparticipação (coautoria e participação), que é associação ocasional ou eventual para a prática de um ou mais crimes determinados, com associação para delinquir, tipificadora do crime de associação criminosa. Para a configuração desse crime, repetindo, exige-se estabilidade e o fim especial de praticar crimes indeterminadamente. E, ademais, a tipificação do antigo crime de quadrilha ou bando (hoje denominado associação criminosa) corporifica-se com a simples formação da quadrilha (crime contra a paz pública), voltamos a afirmar, independentemente de praticar qualquer outro tipo de infração penal, ao passo que o concurso eventual de pessoas (coautoria ou participação), como caracterizador da pluralidade de autores, somente tem relevância penal se levar a efeito a prática de algum crime, pelo menos em sua forma tentada. O “concurso de pessoas” (vínculo subjetivo), por si só, não tipifica crime algum, embora possa, em alguns casos, majorar a pena, como ocorre, por exemplo, nos crimes de roubo, furto etc. 

Finalmente, visando limitar essa prática abusiva, o legislador foi mais contundente na definição do elemento subjetivo especial do tipo, prevendo expressamente na nova redação do tipo penal: “associarem-se ... para o fim específico de cometer crimes”. 

2. Tipo objetivo: adequação típica 

A Lei n. 12.850/2013 redefiniu o crime de quadrilha ou bando, adotando a terminologia associação criminosa, mais adequada e mais consentânea com a própria estrutura tipológica, cujo verbo nuclear associar-se identifica a conduta incriminada. Reduz, por outro lado, o mínimo de participantes para três, e atribui vacatio legis de 45 dias. 

Não vemos, contudo, como mudança significativa a simples alteração terminológica sobre o nomen iuris do crime de quadrilha ou bando, trazida pela Lei n. 12.850/2013, sendo, portanto, incorreto afirmar-se que acabou o crime de quadrilha ou bando, na medida em que foi mantida, basicamente, a sua estrutura típica. Sua alteração mais significativa foi, na verdade, a redução dos seus componentes para apenas três ou mais. O grande ganho foi, acima de tudo, a distinção precisa entre organização criminosa e associação criminosa, impedindo-se, de uma vez por todas, a condenável confusão intencional que se fazia sobre os dois institutos. 

O núcleo do tipo continua sendo associar-se, que significa unir-se, juntar-se, reunir-se, agrupar-se. É necessária a união de mais de três pessoas para se caracterizar associação criminosa, ou seja, exigem-se no mínimo quatro pessoas reunidas com o propósito de cometer crimes. Entende-se por associação criminosa, com efeito, a reunião estável ou permanente (que não significa perpétua) para o fim de perpetrar uma indeterminada série de crimes. A associação tem como objetivo a prática de crimes, excluindo-se a contravenção e os atos imorais. Se, no entanto, objetivarem praticar um único crime, ainda que sejam três ou mais pessoas, não se tipificará associação criminosa, cuja elementar típica exige a finalidade indeterminada. Nesse sentido, destacava, com a precisão de sempre, Antolisei: “Obiettivo dell’associazione deve essere la commissione di più delitti (non di contravvenzioni). In altri termini, si esige che l’associazione abbia come scopo l’attuazione di un programma di delinquenza, e cioè il compimento di una serie indeterminata di delitti. Associarsi per commettere un solo delitto non integra la fattispecie in esame” . 

Estabilidade e permanência são duas características específicas, próprias e identificadoras da associação criminosa. Destaca Regis Prado , com acerto, que não basta para o crime em apreço um simples ajuste de vontades. Embora seja indispensável, não é suficiente para caracterizá-lo. É necessária, além desse requisito, a característica da estabilidade. No mesmo sentido, pontificava Hungria que “a nota de estabilidade ou permanência da aliança é essencial. Não basta, como na ‘cooparticipação criminosa’, um ocasional e transitório concêrto (sic) de vontades para determinado crime: é preciso que o acôrdo (sic) verse sobre uma duradoura situação em comum...” . 

Se a finalidade for a prática de crime determinado ou crimes da mesma espécie, a figura será a do instituto do concurso eventual de pessoas e não a associação criminosa, na mesma linha do entendimento da doutrina italiana antes invocada. 

Na verdade, a estrutura central do núcleo desse crime reside na consciência e vontade de os agentes organizarem-se em associação criminosa, com o fim especial — elemento subjetivo especial do injusto — e imprescindível de praticar crimes variados. Associação criminosa é crime de perigo comum e abstrato, de concurso necessário e de caráter permanente, inconfundível, pelo menos para os iniciados, com o concurso eventual de pessoas. É indispensável que os componentes da associação criminosa concertem previamente a específica prática de crimes indeterminados, como objetivo e fim do grupo. Para a configuração do crime de associação criminosa, ademais, deve, necessariamente, haver um mínimo de organização hierárquica estável e harmônica, com distribuição de funções e obrigações organizativas. Na mesma linha, invocamos novamente o magistério de Antolisei: “‘Associazione’ non equivale ad ‘acordo’, come si può rivelare dal confronto dell’art. 304 com l’art. 305 (infra n. 240). Affinché esista associazione occorre qualche cosa di più: è necessaria l’esistenza di un minimum di organizzazione a carattere stabile, senza che, però, ocorra alcuna distribuzione gerarchica di funzioni” . 

Não se pode deixar de deplorar, na verdade, o uso abusivo, indevido e reprovável que se tem feito no quotidiano forense, a partir do episódio Collor de Mello, denunciando-se, indiscriminadamente, por formação de quadrilha (agora denominada associação criminosa), qualquer concurso de três ou mais pessoas, especialmente nos chamados crimes societários, em autêntico louvor à responsabilidade penal objetiva, câncer tirânico já extirpado do ordenamento jurídico brasileiro. Essa prática odiosa beira o abuso de autoridade (abuso do poder de denunciar) . 

Na realidade, queremos demonstrar que é injustificável a confusão que rotineiramente se tem feito entre concurso eventual de pessoas (art. 29) e associação criminosa (art. 288). Com efeito, não se pode confundir aquele — concurso de pessoas —, que é associação ocasional, eventual, temporária, para o cometimento de um ou mais crimes determinados, com esta associação criminosa, que é uma associação para delinquir, configuradora do crime de associação criminosa, que deve ser duradoura, permanente e estável, cuja finalidade é o cometimento indeterminado de crimes. Agora, mais do que nunca, é inadmissível esses abusos do poder de denunciar contando com a complacência do Judiciário, pois, visando limitar essa prática abusiva, o legislador foi mais contundente na definição do elemento subjetivo especial do tipo. Prevê expressamente, nos termos da Lei n. 12.850/2013, o fim específico da associação criminosa, verbis: “associarem-se 3 (três) ou mais pessoas para o fim específico de cometer crimes” (grifamos). Esse destaque não mais pode ser ignorado, como se vinha fazendo até então. 

Merece, nesse sentido, outra vez, ser invocado o magistério de Antolisei: “L’associazione per delinquere presenta qualche affinità con la comparteci­pazione criminosa, ma ne differisce profondamente. Nel concorso di persone, infatti, l’accordo fra i compartecipi è circoscritto alla realizzazione di uno o più delitti nettamente individuati, commessi i quali l’accordo medesimo si esaurisce e, quindi, vieni meno ogni pericolo per la comunità. Nell’associazione a delinquere, invece, dopo l’eventuale commissione di uno o più reati, il vincolo associativo permane per l’ulteriore attuazione del programma di delinquenza prestabilito e, quindi, persiste quel pericolo per l’ordine pubblico che è caratteristica essenziale del reato” . 

Enfim, a configuração típica do crime de associação criminosa compõe-se dos seguintes elementos: a) concurso necessário de, pelo menos, quatro pessoas; b) finalidade específica dos agentes de cometer crimes indeterminados (ainda que acabem não cometendo nenhum); c) estabilidade e permanência da associação criminosa . Em outros termos, a formação de quadrilha ou bando exige, para sua configuração, união estável e permanente de criminosos voltada para a prática indeterminada de vários crimes, como já afirmamos alhures. 

Para concluir, destacamos o ensinamento do Ministro Sepúlveda Pertence, cujo talento e brilho invulgar incontestáveis autorizam que se invoque sua síntese lapidar: “Mas, data venia, isso nada tem a ver com o delito de quadrilha, que pode consumar-se e extinguir-se sem que se tenha cometido um só crime, e que pode constituir-se para a comissão de um número indeterminado de crimes de determinado tipo, ou dos crimes de qualquer natureza, que se façam necessários para determinada finalidade, como é o caso que pretende a denúncia neste caso. Pelo contrário, a associação que se organize para a comissão de crimes previamente identificados, mais insinua coautoria do que quadrilha” . 

Associação criminosa, enfim, é crime de perigo comum e abstrato, de concurso necessário, comissivo e de caráter permanente, que não se confunde com o simples concurso eventual de pessoas. É necessário que os componentes da associação estejam previamente concertados para a específica prática de crimes indeterminados. Por tudo isso, associação criminosa somente se configura quando realmente de associação estável se tratar, caso contrário estar-se-á diante de concurso eventual de pessoas (art. 29), independentemente do número de pessoas envolvidas na prática delituosa, que não tipifica a figura qualificada em exame. 

3. Tipo subjetivo: adequação típica 

Elemento subjetivo é o dolo, representado pela vontade consciente de associar-se a outras pessoas com a finalidade de praticar crimes indetermi­nados, criando um vínculo associativo entre os participantes. É a vontade e a consciência dos diversos componentes de organizarem-se em associação criminosa, de forma permanente e duradoura, para a prática indiscriminada de crimes. Elemento subjetivo do crime, na visão de Hungria, “é a vontade consciente e livre de associar-se (ou participar de associação já existente) com o fim de cometer crimes (dolo específico)” . 

3.1 Elemento subjetivo especial do tipo 

Exige-se o elemento subjetivo especial do tipo, caracterizado pelo especial fim de organizar-se em associação criminosa para cometer crimes indiscriminadamente, sob pena de não se implementar o tipo subjetivo. Com acerto, nesse particular, destacava Soler: “a) la médula de esta infracción está dada por la finalidad genéricamente delictuosa que la caracteriza. Debe observarse, en este punto, que lo requerido por la ley es que la asociación esté destinada a la comisión de delitos. Se, trata, pues, de un fin colectivo, y como tal tiene naturaleza objetiva con respecto a cada uno de los partícipes. El conocimiento de esa finalidad por parte de cada partícipe, se rige por los princípios generales de la culpabilidad. 

Em síntese, para que determinado indivíduo possa ser considerado sujeito ativo do crime de associação criminosa, isto é, para que responda por essa infração penal é indispensável que tenha consciência de que participa de uma “organização” que tem a finalidade de delinquir; é insuficiente que, objetivamente, tenha servido ou realizado alguma atividade que possa estar abrangida pelos objetivos criminosos da quadrilha. Não respondem por esse crime, por exemplo, eventuais “laranjas”, que desconhecem a existência ou finalidade da associação criminosa, apenas emprestando o nome sem qualquer proveito pessoal, ou determinados empregados que apenas cumprem ordem de seus superiores. Pela mesma razão, essas pessoas que, na linguagem da teoria do domínio do fato, são meros executores e não autores do crime tampouco podem ser consideradas para completar aquele número mínimo exigido (três) como elementar da tipificação de associação criminosa: falta-lhes o elemento subjetivo da ação de associar-se para a prática de crimes indeter­minados. 

Finalmente, a partir da Lei n. 12.850/2013, mais do que nunca, se deve ser mais rigoroso na distinção entre concurso eventual de pessoas e associação criminosa, pois, visando impedir essa prática abusiva, o legislador foi mais contundente na definição do elemento subjetivo especial do tipo, prevendo expressamente: “associarem-se 3 (três) ou mais pessoas para o fim específico de cometer crimes” (grifamos). 

4. Associação criminosa e concurso com os crimes por ela praticados 

O “associado” que não participou de algum crime abrangido pelo plano da associação também responderá por ele? Em outros termos, aquele vínculo associativo que une os membros da associação é suficiente para torná-los igualmente responsáveis por todos os crimes que o bando eventualmente praticar, a despeito da consagração da responsabilidade penal subjetiva? A resposta, evidentemente, é negativa. Com efeito, quando a associação criminosa pratica algum crime, somente o integrante que concorre, in concreto, para sua efetivação responde por ele e, nesse caso, em concurso material com o previsto no art. 288 do CP. Os demais responderão exclusivamente pelo crime de associação criminosa, que é de perigo. O próprio Hungria já adotava esse entendimento, in verbis: “o simples fato de pertencer à quadrilha ou bando não importa, inexoràvelmente (sic), ou automaticamente, que qualquer dos associados responda por todo e qualquer crime integrado no programa da associação, ainda que inteiramente alheio à sua determinação ou execução”. No mesmo sentido, Antolisei: “I compartecipi che commettono uno o più dei reati formano oggetto dell’associazione, ne rispondono individualmente in concorso col delitto di cui stiamo occupando. La responsabilità per i detti reati si estende esclusivamente a quei soci che ne sono compartecipi ai sensi degli artt. 110 e segg. del codice” . 

Convém deixar claro que uma coisa é associar-se para delinquir, de forma mais ou menos geral — associação criminosa —, outra, completamente diferente, é reunir-se, posteriormente, para a prática de determinado crime — concurso eventual de pessoas. Esta segunda ação — a prática de determinado crime — não depende, necessariamente, daquela primeira (associação criminosa). Essa é uma forma didática de demonstrar a quem tem dificuldade de perceber a diferença: na primeira hipótese, “associar-se” para delinquir, de forma indiscriminada, configura associação criminosa; “reunir-se”, posteriormente, para a prática de determinado crime ou crimes configura o similar instituto concurso eventual de pessoas, que são coisas ontoló­gica e juridicamente distintas. Associação criminosa é crime em si mesmo, consistindo na simples associação estável e permanente para a prática de crimes não determinados ou individualizados. A prática, no entanto, de qualquer crime objeto da programação da “sociedade” não exige a participação de todos, podendo, inclusive, ser praticado por um só dos integrantes do bando. Pelo crime de associação criminosa respondem todos os integrantes do bando; agora, pelos crimes que este (bando) praticar responde somente quem deles tomar parte (concurso de pessoas): uma coisa é a associação criminosa, outra, são os crimes que ela efetivamente pratica; por aquela, com efeito, respondem todos os seus membros, por estes, somente os agentes que efetivamente o perpetuaram. Nesse sentido, já era a conclusão de Soler, “no todo miembro de la asociación responde necesariamente por los delitos efectivamente consumados por algunos de los miembros” . Por isso mesmo que o concurso material entre o crime de associação criminosa e os crimes que ela pratica não representam um bis in idem. O crime praticado em concurso (material) não absorve nem exclui o de associação criminosa, pela simples razão de que não é necessária a precedência deste para a prática daquele; pela mesma razão, o simples fato de integrar uma determinada associação criminosa não implica a responsabilidade por todos os crimes que esta realizar: também aí a responsabilidade continua sendo subjetiva e individual — cada um responde pelos fatos que praticar (direito penal do fato). 


* Doutor em Direito pela Universidade de Sevilha/Espanha


Fonte: https://www.facebook.com/cezarroberto.bitencourt