sábado, 31 de maio de 2014

LINCHAMENTO: UMA MULTIDÃO DELINQUENTE

Foto: Cezar Roberto Bitencourt



LINCHAMENTO: UMA MULTIDÃO DELINQUENTE


1. Direito Penal num Estado Democrático de Direito 

O Direito Penal pode ser concebido sob diferentes perspectivas, dependendo do sistema político por meio do qual um Estado soberano organiza as relações entre os indivíduos pertencentes a uma determinada sociedade, e da forma como exerce o seu poder sobre eles. Nesse sentido, o Direito Penal pode ser estruturado a partir de uma concepção autoritária ou totalitária de Estado, como instrumento de persecução aos inimigos do sistema jurídico imposto, ou a partir de uma concepção Democrática de Estado, como instrumento de controle social limitado e legitimado por meio do consenso alcançado entre os cidadãos de uma determinada sociedade.

Tomando como referente o sistema político instituído pela Constituição Federal de 1988, podemos afirmar, sem sombra de dúvidas, que o Direito Penal no Brasil deve ser concebido e estruturado a partir de uma concepção democrática do Estado de Direito, respeitando os princípios e garantias reconhecidos na nossa Carta Magna. Significa, em outras palavras, submeter o exercício do ius puniendi ao império da lei ditada de acordo com as regras do consenso democrático, colocando o Direito Penal a serviço dos interesses da sociedade, particularmente da proteção de bens jurídicos fundamentais, para o alcance de uma justiça equitativa. 

Esse ponto de partida é indicativo do nosso repúdio àquelas concepções sociais comunitaristas, predominantemente imperialistas e autoritárias, reguladoras de vontades e atitudes internas, como ocorreu, por exemplo, com o nacional-socialismo alemão. Esse tipo de proposta, que repudiamos, apoia-se na compreensão do delito como infração do dever, desobediência ou rebeldia da vontade individual contra a vontade coletiva personificada na vontade do Estado. Entendimento que consideramos inadmissível, inclusive quando a ideia de infração de dever apresenta-se renovada pelo arsenal teórico da vertente mais radical do pensamento funcionalista. Essa postura revela o nosso posicionamento acerca da função do Direito Penal num Estado Democrático de Direito, qual seja, a proteção subsidiária de bens jurídicos fundamentais. Felizmente, esse entendimento vem sendo predominante na doutrina brasileira . 

Na verdade, o Direito Penal protege, dentro de sua função ético-social, o comportamento humano daquela maioria capaz de manter uma mínima vinculação ético-social, que participa da construção positiva da vida em sociedade por meio da família, escola e trabalho. O Direito Penal funciona, num primeiro plano, garantindo a segurança e a estabilidade do juízo ético-social da comunidade, e, em um segundo, reage, diante do caso concreto, contra a violação ao ordenamento jurídico-social com a imposição da pena correspondente. Orienta-se o Direito Penal, segundo a escala de valores da vida em sociedade, destacando aquelas ações que contrariam essa escala social, definindo-as como comportamentos desvaliosos, apresentando, assim, os limites da liberdade do indivíduo na vida comunitária. A violação desses limites, quando adequada aos princípios da tipicidade e da culpabilidade, acarretará a responsabilidade penal do agente. Essa consequência jurídico-penal da infração ao ordenamento produz como resultado ulterior o efeito preventivo do Direito Penal, que caracteriza a sua segunda função.

A pena deve manter-se dentro dos limites do Direito Penal do fato e da proporcionalidade, e somente pode ser imposta mediante um procedimento cercado de todas as garantias jurídico-constitucionais. Hassemer afirma que “através da pena estatal não só se realiza a luta contra o delito, como também se garante a juridicidade, a formalização do modo social de sancionar o delito. Não faz parte do caráter da pena a função de resposta ao desvio (o Direito Penal não é somente uma parte do controle social). A juridicidade dessa resposta (o Direito Penal caracteriza-se por sua formalização) também pertence ao caráter da pena”.

2. Violência social e a voz do povo

Falar de Direito Penal é falar, de alguma forma, de violência. No entanto, modernamente, sustenta-se que a criminalidade é um fenômeno social normal. Durkheim afirma que o delito não ocorre somente na maioria das sociedades de uma ou outra espécie, mas sim em todas as sociedades constituídas pelo ser humano. Assim, para Durkheim, o delito não só é um fenômeno social normal, como também cumpre outra função importante, qual seja, a de manter aberto o canal de transformações de que a sociedade precisa. Sob um outro prisma, pode-se concordar, pelo menos em parte, com Durkheim: as relações humanas são contaminadas pela violência, necessitando de normas que as regulem. E o fato social que contrariar o ordenamento jurídico constitui ilícito jurídico, cuja modalidade mais grave é o ilícito penal, que lesa os bens mais importantes dos membros da sociedade.

No entanto, não se pode esquecer nunca que o monopólio de combate a todo tipo de violência é do Estado, que avocou a si o direito de punir, de controlar os conflitos sociais, ficando perdida no tempo a vingança privada, sendo crime, em si mesmo, pretender fazer justiça pelas próprias mãos (art. 345 do CP).

Quando as infrações aos direitos e interesses do indivíduo assumem determinadas proporções, que são definidas como crimes, e os demais meios de controle social mostram-se insuficientes ou ineficazes para harmonizar o convívio social, surge o Direito Penal com sua natureza peculiar de meio de controle social formalizado, procurando resolver conflitos e suturando eventuais rupturas produzidas pela desinteligência dos homens. Pois essa formalização do direito penal é que garante a distribuição da Justiça em um Estado Democrático de Direito, respeitadas todas as garantias fundamentais do cidadão, tais, como, devido processo legal, contraditório, ampla defesa etc. 

Ninguém pode se arvorar de justiceiro, fazer justiça pelas próprias, como fizeram os linchadores recentemente. O Próprio Estado que avocou a si o direito de punir, como já afirmamos. É o povo nas ruas ensandecido.

Por isso, tenho a pretensão de afirmar: nem sempre “a voz do povo é a voz de Deus”, especialmente quando encolerizado, enlouquecido: basta alguém gritar: aquela é a culpada! É o suficiente para a prática das maiores atrocidades, mesmo sem saber de que exatamente a pessoa está sendo acusada. Aí, já aparecem os “Justiceiros”, dispostos a “fazer Justiça pelas próprias mãos!

Vejamos o seguinte diálogo, proferido há dois mil anos atrás:

“E então Pilatos perguntou à multidão:
- a quem solto?
E o povo clamou:
- solta o ladrão!”!!!

A violência, ou melhor, a contra-violência é monopólio do Estado, desde que foi banida a “vingança privada”, como deixamos claro acima, em outras palavras, logicamente.

No início deste mês de maio, houve mais um linchamento, por moradores afoitos do Guarujá, desta vez, de Fabiane Maria de Jesus, de 33 anos, que foi espancada até a morte, após ser confundida com uma suposta sequestradora de crianças. Barbosa foi preso na terça-feira (6), no bairro Morrinhos, naa mesma região onde a vítima vivia e foi atacada. Segundo a polícia, Barbosa alegou que participou do linchamento por acreditar que as acusações à vítima Fabiane fossem verdadeiras”. Como se isso fosse verdadeiro fosse suficiente para fazer justiça pelas próprias mãos! Absurdo!

Nessa manifestação de um dos autores do linchamento – Barbosa -, reside dois erros crassos, em que a população, regra geral, incorre: em primeiro lugar, “fazer justiça pelas próprias mãos”, como se alguém do povo pudesse ter autoridade para executá-la; em segundo lugar, imaginar que se fosse a hipótese de alguém ser efetivamente autor do fato de que é acusado, autorizasse à população ensandecida, executar a suposta pessoa suspeita, como alega, equivocadamente, Barbosa, segundo o qual, “cometeu o crime por acreditar que a vítima fosse culpada”!!!

Na verdade, ainda que se trate de alguém culpado pelo fato de que é acusado, ainda assim, o linchamento desse alguém constitui crime de homicídio duplamente qualificado, pelo qual respondem todos os linchadores, cuja pena cominada é de 12 a 30 anos de prisão. Nenhum cidadão tem o direito de fazer justiça pelas próprias mãos, e quem participa de linchamento de alguém responde, igualmente, pelo crime de homicídio, mesmo que não seja o efetivo executor material da conduta de matar alguém, pois, no mínimo concorreu para sua execução.
Quando, no entanto, se tratar de alguém inocente, como foi o caso de Fabiane Maria de Jesus, a covardia, a hediondez do crime e a execução de alguém inocente e indefesa tornam os linchadores assassinos os seres mais desprezíveis da face da terra E, ademais, quando a população parte para o linchamento de alguém, por que imagina ser culpado de um fato, esse risco está sempre presente, e, ainda que se trate de um verdadeiro culpado, mesmo assim, estaremos diante de um crime hediondo, pois estará sendo suprimido o direito de defesa, de um julgamento justo e neutro, além do devido processo legal, que é uma garantia de todo o cidadão, inclusive dos piores culpados. 

Enfim, que esses fatos recentes, sirvam de lição para que nunca mais, neste País, se volte a prática dessa monstruosidade odiosa, ainda que se tenha certeza da “culpa” do acusado”! Todos, todos os piores bandidos têm direito de ser julgado por um juiz togado, isento, neutro, e em um processo legal em que lhe sejam asseguradas todas as garantias processuais já referidas.

03. Uma multidão delinquente

O fenômeno da multidão criminosa (não raro culminando com o linchamento de um suposto culpado) tem ocupado os espaços da imprensa nos últimos tempos e tem preocupado profundamente a sociedade como um todo. Os linchamentos em praça pública, as invasões de propriedades e estádios de futebol, os saques em armazéns têm acontecido com frequência alarmante, perturbando a ordem pública. Essa forma sui generis de concurso de pessoas pode assumir proporções consideravelmente graves, pela facilidade de manipulação de massas que, em momentos de grandes excitações, anulam ou reduzem consideravelmente a capacidade de orientar-se segundo padrões éticos, morais e sociais . 
Mas, convém que se destaque, a prática coletiva de delito, nessas circunstâncias, apesar de ocorrer em situação normalmente traumática, não afasta a existência de vínculos psicológicos entre os integrantes da multidão, caracterizadores do concurso de pessoas. Em outros termos, todos os que participarem do massacre ou do linchamento (que é a figura mais comum), respondem pelo crime praticado, independentemente de serem ou não os executores diretos da figura penal típica (ex. matar alguém!) Nos crimes praticados por multidão delinqüente, que é exatamente o caso de linchamento, não é necessário que o Ministério Público descreva minuciosamente a participação de cada um dos intervenientes, sob pena de inviabilizar a aplicação da lei. A maior ou menor participação de cada um será objeto da instrução criminal e, por conseguinte, no cálculo da pena aplicada.

Aqueles que praticarem o crime sob a influência de multidão em tumulto poderão ter suas penas atenuadas (art. 65, e, do CP). Por outro lado, terão a pena agravada os que promoverem, organizarem ou liderarem a prática criminosa ou dirigirem a atividade dos demais (art. 62, I, do CP).

Enfim, todos os que participam de um linchamento devem responder pelo mesmo crime, ainda que não participem diretamente da sua execução, mas por apoiarem moralmente o executor direta da infração penal.

Vamos refletir, todos, sobre esses fatos, os quais não são menos graves que os praticados, pelo nazismo, fascismo etc.

* Doutor em Direito Penal pela Universidade de Sevilha na Espanha

FONTE: https://www.facebook.com/cezarroberto.bitencourt 

quarta-feira, 7 de maio de 2014

CRÍTICA AO (CON) SENSO COMUM: TIPICIDADE É MÉRITO OU CONDIÇÃO DA AÇÃO PENAL ?



* Foto: Prof. Dr. Gustavo Badaró


CRÍTICA AO (CON)SENSO COMUM 

TIPICIDADE É MÉRITO OU CONDIÇÃO DA AÇÃO PENAL?


Quanto ao momento e à forma de decretação da carência da ação, a teoria tradicional posiciona-se no sentido de que pode ser proferida sentença de carência de ação a qualquer momento, até mesmo na fase decisória, desde que se verifique a ausência de uma das condições da ação. Provado que a condição da ação não está presente, mesmo após toda a fase instrutória, o juiz não julgará o mérito, declarando o autor carecedor da ação.

De outro lado, para os adeptos da teoria da asserção ou teoria da prospettazione, o exame das condições da ação deve ser feito "in statu assertionis", tomando-se por verdadeiras as afirmações feitas na petição inicial. Justamente para distinguir as questões que constituem as condições da ação, daquelas relativas ao mérito, afirma-se que o exame das condições da ação deve ser realizado segundo o afirmado na petição inicial. Isto é, o juiz deve, por hipótese, tomar como verdadeiros os fatos narrados na denúncia ou queixa, para apreciar a viabilidade da ação, e impedir que processos inúteis e inviáveis se desenvolvam. As condições da ação têm, portanto, uma clara função de “filtro processual”.

Para a teoria da asserção, a análise das condições da ação é feita a partir de uma “cognição superficial” de elementos narrados na petição inicial e que, posteriormente, constituirão o mérito do processo. Iniciada a fase instrutória, caso se descubra que tais fatos (cuja afirmação fez com que o juiz entendesse que as condições da ação estavam presentes, determinando o prosseguimento do processo) não se verificaram, o juiz deverá julgar o mérito, com a improcedência do pedido, pois já se passou a uma análise profunda do mérito. Esse “método” permite distinguir as condições da ação e o mérito pode, com alguma adaptação, ser transposto para o processo penal.

Inicialmente, é de observar que, no processo penal, a necessidade de distinguir as situações de carência da ação, das de julgamento de mérito improcedente, se restringe à questão da “tipicidade” e da “legitimidade passiva”. Por outro lado, para ambos os temas, há que se acrescer outra diferença específica do processo penal: a exigência de justa causa para a ação penal. Ou seja, a “condição da ação” relativa à tipicidade em abstrato da conduta guarda relação com a exigência de que haja prova da materialidade delitiva. Por outro lado, a condição referente à legitimatio ad causam passiva diz respeito, diretamente, aos indícios suficientes de autoria. 

Em outras palavras, ainda que se procure analisar a tipicidade e a autoria delitiva, na ótica exclusiva das condições da ação, com base apenas no que foi asserido na denúncia ou queixa e, portanto, aplicando a teoria da asserção em sua pureza doutrinária, mesmo assim o recebimento da acusação também dependerá da análise da existência de um suporte probatório mínimo sobre os fatos afirmados na peça acusatória. 

Nesses casos, para aqueles que consideram que a justa causa para a ação penal se distingue das condições da ação penal, seria possível, como que em uma experiência de laboratório, separar e isolar, “in vitro”, a possibilidade jurídica do pedido (no que toca à tipicidade aparente) e a legitimidade de parte passiva, analisando-as, apenas, “in statu assertionis”. No entanto, para o ato de recebimento da denúncia, deveria haver a análise não apenas das condições da ação, tendo por base os fatos tais quais afirmados, mas também dos elementos de informação colhidos no inquérito policial que permitiam concluir pela ocorrência da justa causa para a ação penal. 

Diante de tais dificuldades, como resolver, então, o problema inicial sobre a tipicidade, no que toca ao seu enquadramento como condição da ação ou como mérito? A resposta está, segundo a teoria da asserção, no “grau da cognição” realizada pelo juiz. Segundo a profundidade da cognição, a tipicidade pode dizer respeito às condições da ação (tipicidade aparente, segundo o afirmado na denúncia ou queixa) ou mérito (comprovação, após a instrução, dos fatos constitutivos do tipo penal). A distinção se torna ainda mais clara, ao se comparar o revogado art. 43 do CPP, que tratava da rejeição da denúncia, com os casos de absolvição do art. 386 do CPP. O inciso I do art. 43 previa que a denúncia ou queixa deveria ser rejeitada quando “o fato narrado ‘evidentemente’ não constituir crime”. Já o art. 386, III, prevê que o acusado deverá ser absolvido quando “não constituir o fato infração penal”. Como se percebe facilmente, a atipicidade “prima facie”, apenas com base no que foi afirmado na denúncia, leva à carência da ação, com a consequente rejeição da denúncia. Já a análise aprofundada da tipicidade, depois da fase instrutória, é questão de mérito, que acarreta a absolvição.

Ou seja, a mesma matéria, no caso a tipicidade (ou melhor: a atipicidade), poderá levar a juízos e consequências distintas: apreciada em cognição superficial, logo após o oferecimento da denúncia, acarretará a sua rejeição, por carência da ação (CPP, art. 395, II); se depois da resposta, mediante cognição profunda, provada documentalmente, implicará julgamento do mérito, com a absolvição sumária do acusado (CPP, art. 397, III). A cognição, na análise das condições da ação é superficial, com base no que foi afirmado na peça inicial, e no exame do mérito é aprofundada, com base nos elementos probatórios colhidos ao longo da instrução.

A questão, contudo, não é tão simples. Mesmo no âmbito processual civil, há quem negue que a impossibilidade jurídica do pedido seja distinta do julgamento do mérito de improcedência. Ou seja, o juiz, ainda que no limiar da ação, e mesmo que com base em uma cognição superficial, ao considerar o pedido juridicamente impossível, estaria, em verdade, julgando o mérito improcedente, ainda que prima facie ou de forma “macroscópica”.

Não há por que negar a aplicação de tais ideias ao processo penal. No caso em que se constata a atipicidade dos fatos narrados na denúncia ou queixa, considerando-os, ainda que por hipótese, como verdadeiros, haverá julgamento de mérito, por atipicidade dos fatos imputados. Pouco importa que o juiz o reconheça, logo no início, ao rejeitar a denúncia, por “impossibilidade jurídica do pedido” (CPP, art. 395, II, segunda parte), ou o faça depois da resposta do acusado, absolvendo-o sumariamente (CPP, art. 397, III). O mesmo se diga, se tal decisão decorre de concessão de habeas corpus para “trancar a ação penal”. Em todos estes casos, o que menos importa é o momento procedimental em que se constatou a atipicidade. Sempre haverá julgamento de mérito, seja prima facie (CPP, art. 395), seja antecipadamente (CPP, art. 397), seja ao final do processo (CPP, art. 386). Em todas elas haverá coisa julgada material, impedindo a repropositura de ação penal idêntica, posto que o tema terá sido definitivamente decidido pelo Poder Judiciário.



Fonte: https://www.facebook.com/gustavo.badaro.1?fref=nf