sexta-feira, 30 de novembro de 2012

HOMENAGEM A JUAREZ CIRINO DOS SANTOS

DISCURSO DE HOMENAGEM A JUAREZ CIRINO DOS SANTOS

CONGRESSO INTERNACIONAL DE DIREITO PENAL E CRIMINOLOGIA
CURITIBA, 29/11/12 - TJ/PR

Uma homenagem a Juarez Cirino dos Santos

Meu amigo Juarez Cirino dos Santos nasceu em Rio Azul, interior do Estado do Paraná, no dia 24 de setembro de 1942. Passou a infância no distrito de Jordão, perto de Guarapuava. Veio a Curitiba, ainda muito jovem, para seguir os estudos, ingressando, em 1961, na Universidade Federal do Paraná. Ali, na militância política do PAR (Partido Acadêmico Renovador), na época de bandeira e cores vermelhas, nos conhecemos. Juarez Cirino era, desde então, uma pessoa inquieta, curiosa, criativa, bem falante, dedicada a dimensionar os estudos do direito sob o ângulo de um pensamento crítico. Já nos estudos de Economia Política e, depois, de Direito Civil, sob a inspiração do notável professor José Rodrigues Vieira Neto se incorporou ao marxismo e, coerentemente, jamais o deixou. Fez do marxismo seu instrumento de luta política e de crítica científica. Sempre que podia, lecionava sobre o materialismo dialético e o materialismo histórico. Vejo ainda, bem nítida, sua imagem nos corredores, nas assembleias estudantis, nas discussões entre amigos e colegas, no centro acadêmico, nos intervalos, no café (como era bom o café da Faculdade de Direito, um local de profícuos encontros), discorrendo sobre como enfrentar as desigualdades sociais, a opressão, a falta de liberdade, o poder.
Juarez Cirino sempre foi um crítico do sistema, jamais se curvou às cooptações das elites. Formou-se em direito em 1965 e foi trabalhar no Norte do Paraná. Ficamos, a partir daí, distantes, por força das circunstâncias e dos espaços. Em 1972, fui surpreendido com sua visita a Curitiba, já como advogado, para contratar-me a fazer uma sustentação oral em dois habeas corpus por excesso de prazo, perante o Tribunal de Justiça do Paraná. Minha contratação se fez por indicação de um antigo amigo, o civilista e professor José Lamartine Correa de Oliveira, sob a informação de que eu estava em dia com a doutrina penal, recém-chegado de longa estada com Jescheck na Alemanha. Fiz as sustentações e, apesar do parecer contrário do Ministério Público, ganhamos. As petições de Juarez Cirino eram irretorquíveis e o caso era bom.
Na verdade, a decisão judicial impugnada era absolutamente teratológica, e o excesso de prazo mais do que evidente, aliás, como hoje ainda ocorre em todos os cantos do país. Voltamos a ficar mais próximos. Juarez Cirino não havia esquecido o marxismo, mas estava impressionado com os estudos de direito penal. Devorava todos os livros que lhe caíam nas mãos. Tenho certeza de que foi ele o único que lera integralmente o Tratado de Derecho Penal de Luís Jiménez de Asúa, um livro de leitura difícil, analítica, de muitas referências. Mais tarde, saí de Curitiba e ingressei na Universidade Estadual de Londrina. Naquela cidade, reencontrei Juarez Cirino, um próspero advogado, leitor assíduo de direito penal. Tive a honra de indicá-lo para a Universidade Estadual de Londrina. Mantivemos ativo um departamento dedicado ao direito penal. Participamos juntos de vários eventos, entre esses, especialmente, de um deles com a presença de Heitor Costa Júnior, João Mestieri e Nilo Batista, jovens professores do Rio de Janeiro e promessas de um direito penal científico e liberal. Era a época da influência finalista no direito penal brasileiro.
Todos nós, ávidos por reorientar nossos estudos, passamos a ler e reler a obra de Hans Welzel. Novamente, Juarez Cirino devorou o Tratado de Welzel, sabia de memória todos os exemplos, todas as ponderações. Ampliava esse estudo com a leitura paralela de O Capital. Lembro-me, como se fosse hoje, de suas observações rigorosamente críticas do utilitarismo, calcado no que Marx comentava sobre a obra de Bentham. Parecia, naquele tempo, um sacrilégio desconstruir o pensamento de Bentham. Nossos manuais o enalteciam, como hoje se faz com relação a alguns representantes do funcionalismo. E era também perigoso defender o marxismo em plena ditadura. Juarez Cirino não se incomodava com os modismos, nem com os atos de autoridade, desmontava as pedras do utilitarismo e botava abaixo seus edifícios.
Vejam que audácia: um jovem professor do interior do Paraná contestando Bentham e, em afronta ao regime, adotando o marxismo como filosofia e teoria política. Mas a ciência se faz, mesmo, de contestações.
Atendendo à necessidade burocrática dos títulos, Juarez Cirino se muda, em 1976, para o Rio de Janeiro e, aqui, conclui o Mestrado na PUC/RJ e, depois, o Doutorado na UFRJ. Seus trabalhos, respectivamente, de dissertação de mestrado e tese de doutorado constituem o principal monumento de ruptura criminológica em face do positivismo.
Na dissertação de mestrado, intitulada “Uma crítica ao positivismo em criminologia” (1978), remodela o método criminológico, deixa de lado seu viés puramente etiológico para se situar numa verdadeira crítica social. Pela primeira vez, o condenado adquire na criminologia o status de pessoa. A defesa dos projetos do labelling approach sob uma visão marxista da realidade se aprofunda em sua tese de doutorado, “A criminologia radical” (1981), e, mais tarde, em um livro de valor inestimável, “As raízes do crime” (1984). Essa trilogia faz de Juarez Cirino o criador da moderna criminologia radical no Brasil. Depois dessa crítica demolidora à criminologia etiológica, o estudo do crime, entre nós, não foi mais o mesmo.
Juarez Cirino fez ainda pós-doutoramento com Sandro Baratta em Saarbrücken (Alemanha). Desse contacto com Baratta, Juarez Cirino teve a oportunidade de fortalecer ainda mais suas crenças no método dialético, o qual transportou da criminologia para o direito penal. Sem parar as indagações, leu e anotou toda a obra de Freud. Muitos outros artigos e livros foram publicados por Juarez Cirino, tanto no âmbito da criminologia, da política criminal, como da teoria do delito. Todos esses estudos culminam no magnífico “Direito Penal, Parte Geral”, hoje de leitura obrigatória em termos dogmáticos. Novamente, como fez com a criminologia, Juarez Cirino repõe a dignidade científica do direito penal, agora não mais calcado no finalismo de Welzel, mas na abertura dogmática proposta por Roxin. Todos esses ensinamentos se espraiaram em suas aulas nas universidades em que atuou, para gáudio de seus alunos e seguidores.

Sobre a obra de Juarez Cirino poderia falar muito mais, analisando-a pormenorizadamente. Creio, porém, que nós brasileiros temos outra característica, especialmente a de fazer uma apreciação sobre a pessoa dos autores. Depois que li as informações de Muñoz Conde sobre Mezger, de Ingo Müller sobre os juristas no nacional-socialismo, de Herbert Jäger e de Dirk Fabricius sobre o comportamento dos intelectuais nas universidades, e de muitos outros nos países que foram palcos de regimes autoritários, estou cada vez mais convencido de que a obra não pode estar divorciada da conduta social e política de seus autores.
Nós, brasileiros, estamos certos. Por isso, quero expressar o que sinto da pessoa de Juarez Cirino. Durante todos esses anos de convivência, de troca de informações, de discussões, de participação em eventos, seminários, congressos e comissões examinadoras, de conversas em sua casa, na minha, na UFPR e na UERJ, pude formar uma impressão de Juarez Cirino, que até hoje não se desfez: um intelectual absolutamente coerente. Seu pensamento é claro no sentido de descaracterizar qualquer argumentação autoritária, de se opor aos moralismos de ocasião, ao poder de turno (para usar uma expressão de Zaffaroni), às facções políticas oportunistas, aos arranjos com as elites em detrimento dos oprimidos, às manifestações do poder punitivo como forma institucionalizada de sedimentação de uma sociedade de classes.
Sempre que algum ato autoritário ocorra em qualquer lugar, sempre que a pessoa humana seja degradada, sempre que as artimanhas dos pensamentos coativamente impostos se verifiquem ou quando a humilhação ou a privação da liberdade esteja presente, não será preciso perguntar como Juarez Cirino reagirá. A resposta é uma só: a favor da pessoa oprimida e humilhada.
Falei no começo que Juarez Cirino nasceu em Rio Azul. Parece que essa referência não tem o menor significado, salvo como elemento para preencher dados na carteira de identidade. Mas sua infância no interior do Paraná parece constituir mesmo suas raízes com o mundo, para vê-lo tal como ele é, mais concreto, menos desumano, assentado na terra e na luta de todos os camponeses por sua sobrevivência. A saída do interior para a capital força uma analogia com a função do tempo. À medida que o tempo das horas trabalhadas serve de parâmetro para a teoria da retribuição equivalente e explica o porquê da avaliação do crime pelo tempo de pena, também, o tempo de maturação entre interior e capital estimula e sedimenta os atos empolgados de ruptura. Talvez pudesse dizer que Juarez Cirino jamais deixou de sentir, em toda sua vida, como sua origem nunca permitiu que se desviasse de sua condição humana e como sempre fê-lo estar na vanguarda dos atos de ruptura com o poder.

Essa é a homenagem que posso prestar a esse amigo, por sua alta qualificação intelectual e, mais do que isso, por sua condição humana, de primeira grandeza.

Juarez Tavares
 
Fonte: Facebook (perfil do Prof. Dr. Juarez Tavares)

domingo, 11 de novembro de 2012

CLAUS ROXIN E A TEORIA DO DOMÍNIO DO FATO

Foto: Claus Roxin

Notícias

11 novembro 2012
Claus Roxin

Teoria do domínio do fato é usada de forma errada

Estudioso da teoria do domínio fato, usada pelos ministros do Supremo Tribunal Federal para condenar boa parte dos réus da Ação Penal 470, o processo do mensalão, o jurista alemão Claus Roxin, em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, publicada neste domingo (11/11), discordou da intepretação dada ao trabalho.

Roxin, que aprimorou a teoria, corrige a noção de que só o cargo serve para indicar a autoria do crime e condena julgamento sob publicidade opressiva, como está acontecendo no Brasil.
"Quem ocupa posição de comando tem que ter, de fato, emitido a ordem. E isso deve ser provado", diz Roxin.

Leia a entrevista:

Folha — O que o levou ao estudo da teoria do domínio do fato?

Claus Roxin — O que me perturbava eram os crimes do nacional socialismo. Achava que quem ocupa posição dentro de um chamado aparato organizado de poder e dá o comando para que se execute um delito tem de responder como autor e não só como partícipe, como queria a doutrina da época. Na época, a jurisprudência alemã ignorou minha teoria. Mas conseguimos alguns êxitos. Na Argentina, o processo contra a junta militar de Videla [Jorge Rafael Videla, presidente da Junta Militar que governou o país de 1976 a 1981] aplicou a teoria, considerando culpados os comandantes da junta pelo desaparecimento de pessoas. Está no estatuto do Tribunal Penal Internacional e no equivalente ao STJ alemão, que a adotou para julgar crimes na Alemanha Oriental. A Corte Suprema do Peru também usou a teoria para julgar Fujimori [presidente entre 1990 e 2000].


Folha — É possível usar a teoria para fundamentar a condenação de um acusado supondo sua participação apenas pelo fato de sua posição hierárquica?

Roxin — Não, em absoluto. A pessoa que ocupa a posição no topo de uma organização tem também que ter comandado esse fato, emitido uma ordem. Isso seria um mau uso.


Folha — O dever de conhecer os atos de um subordinado não implica em corresponsabilidade?

Roxin — A posição hierárquica não fundamenta, sob nenhuma circunstância, o domínio do fato. O mero ter que saber não basta. Essa construção ["dever de saber"] é do direito anglo-saxão e não a considero correta. No caso do Fujimori, por exemplo, foi importante ter provas de que ele controlou os sequestros e homicídios realizados.


Folha — A opinião pública pede punições severas no mensalão. A pressão da opinião pública pode influenciar o juiz?

Roxin — Na Alemanha, temos o mesmo problema. É interessante saber que aqui também há o clamor por condenações severas, mesmo sem provas suficientes. O problema é que isso não corresponde ao direito. O juiz não tem que ficar ao lado da opinião pública.


Revista Consultor Jurídico, 11 de novembro de 2012