terça-feira, 25 de dezembro de 2012

PROJETO DO NOVO CÓDIGO PENAL TEM MAIS DE MIL EMENDAS

Notícias

25 dezembro 2012
Extenso debate

Projeto de reforma do Código Penal tem mais de mil emendas

O projeto de reforma do Código Penal brasileiro já tem mais de mil emendas. O texto foi elaborado por uma comissão de 15 juristas, e aborda práticas como aborto, uso de drogas e prostituição, sendo motivo de divergências técnicas e alvo de ataques políticos, morais e religiosos. Em setembro, o Senado Divulgou que recebeu quase sete mil sugestões da população sobre o Novo Código Penal.

Sua tramitação foi suspensa em novembro, a pedido da OAB, para aprofundamento dos debates e maior exame da matéria. O relator do projeto, senador Pedro Taques (PDT-MT), disse que a intenção do Senado, acolhendo a solicitação da OAB, é fazer maiores debates e audiências públicas com entidades civis e setores acadêmicos, jurídicos e religiosos da sociedade brasileira. Em agosto, o IBCCrim e o Instituto Manoel Pedro Pimentel, da Faculdade de Direito da USP, também pediram a suspensão, alegando que o novo ordenamento foi conduzido de forma açodada, sem consulta à comunidade jurídica.

Entre as emendas anexadas ao projeto, encontram-se propostas que contradizem a intenção da reforma, como a PLS 287/2012, de autoria da senadora Maria do Carmo Alves (DEM-SE). A emenda prevê detenção de três anos para gestante que interrompe ou permite que interrompam  gravidez de feto anencéfalo; e estipula pena de reclusão de três a seis anos caso a interrupção se dê sem o consentimento da gestante. O Supremo Tribunal Federal já decidiu que é constitucional a interrupção de gravidez nesses casos. O projeto da senadora está fadado a ir para o lixo.

Também há propostas para endurecer algumas penas, como a PLS 457/2011, redigida por Taques. Ela altera a redação do Código Penal para aumentar as penas previstas no caput do artigo 138, de detenção de seis meses a dois anos e multa, para detenção de um a três anos e multa; no caput do artigo 139, de detenção de três meses a um ano e multa para detenção de três meses a dois anos e multa; no caput do artigo 140, de detenção de um a seis meses ou multa, para detenção de três meses a um ano e multa; e no parágrafo 2º do artigo 140, de detenção de um a seis meses ou multa, para detenção de seis meses a dois anos e multa. Também aumentar a pena quando a injúria for praticada com violência e inclui no parágrafo 3º do artigo 140 elementos de injúria qualificada (raça, cor, etnia, religião, orientação sexual, identidade de gênero, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência). Por fim, acresce no caput do artigo 141 o aumento de pena de um a dois terços dos crimes contra a honra.


Fonte: Revista Consultor Jurídico, 25 de dezembro de 2012

VIGIAR E PUNIR ?

Artigos

24 dezembro 2012
Retrospectiva 2012

“Vigiar e punir” ou “participar e defender”?


A importância da advocacia criminal é diretamente proporcional à tendência repressiva do Estado. Nunca o esforço do advogado criminalista foi tão importante como agora. É o que nos revela o balanço crítico dos acontecimentos que marcaram a vida do Direito Penal, neste ano que passou.

Desde que a democracia suplantou o regime de exceção, em nenhum momento se exigiu tanto das pessoas que, no cumprimento de um dever de ofício, dão voz ao nosso direito de defesa. Mas é na firmeza da atuação profissional desses defensores públicos e privados que a Constituição deposita a esperança de realização do ideal de uma liberdade efetivamente igual para todos.

Se em 2012 acentuou-se a tendência de vigiar e punir, o ano que se descortina convida a comunidade jurídica a participar do debate público e a defender, com redobrada energia, os fundamentos humanos do Estado de Direito. O advogado criminalista é, antes de tudo, um cidadão. Agora é convocado a exercer ativamente a sua cidadania para evitar uma degeneração autoritária de nossas práticas penais, para além da luta cotidiana no processo judicial.

Não é de hoje que o direito de defesa vem sendo arrastado pela vaga repressiva que embala a sociedade brasileira. À sombra da legítima expectativa republicana de responsabilização, viceja um sentimento de desprezo pelos direitos e garantias fundamentais. O “slogan” do combate à impunidade a qualquer custo, quando exaltado pelo clamor de uma opinião popular que não conhece nuances, chega a agredir até mesmo o legítimo exercício da “liberdade de defender a liberdade”, função precípua do advogado criminalista.

O papel social dos advogados, que a Constituição julga indispensável, vem sendo esquecido. Não é raro vê-los atacados no legítimo exercício de sua profissão. Uns têm a palavra cassada pela intolerância à divergência inerente à dialética processual. Outros são ameaçados injustamente de prisão, pela força que não consegue se justificar pela inteligência das razões jurídicas. Nada disso é estranho à prática da advocacia.

Ocorre que, em 2012, a tendência repressiva passou dos limites. Ameaças ao exercício da advocacia levaram ao extremo a “incompreensão” sobre o seu papel social numa sociedade democrática. Alguns episódios dos últimos meses desafiaram os mais caros postulados da defesa criminal. Refletir sobre as águas turbulentas que passaram é fundamental para orientar a ação jurídica e política que tomará corpo no caudal do ano que vem - em prol da moderação dos excessos de regulação jurídica da vida social.

Um desses diabólicos redemoinhos nos surpreendeu em agosto, com a pretendida supressão do habeas corpus substitutivo. A Primeira Turma do STF considerou inadequado empregar a mais nobre ação constitucional em lugar do recurso ordinário. O precedente repercutiu de imediato nos tribunais inferiores, marcando um perigoso ponto de inflexão na nossa jurisprudência mais tradicional.

Nenhum dos argumentos apresentados mostrou-se apto a restringir o alcance desse instrumento fundamental de proteção da liberdade. Ao contrário, revelaram uma finalidade pragmática de limpeza de prateleiras dos tribunais. A guinada subordinou a proteção da liberdade a critérios utilitários, como se conveniências administrativas pudessem se sobrepor às rigorosas exigências de garantia do direito fundamental.

O habeas corpus foi forjado em décadas de experiência na contenção de abusos de poder. A Constituição indicou que sua aplicação é ampla, abolindo as restrições outrora impostas pelo regime de exceção. Abriu caminho para que a jurisprudência reafirmasse a primazia do valor da liberdade.

O posicionamento dominante na época do regime autocrático, todavia, ressurge nos dias de hoje. Em pleno vigor da democracia, o retrocesso aparece sob o singelo pretexto de desafogar tribunais.

Porém, a abolição do habeas substitutivo dificultará a reparação do constrangimento ilegal. Hoje, não são poucas as ordens de libertação concedidas pelo Supremo, evidenciando a grande quantidade de ilegalidades praticadas e não corrigidas. Por isso, a sua supressão perpetuará inúmeros abusos.

O recurso ordinário, embora previsto constitucionalmente, não é tão eficaz como o habeas para coibir o excesso de poder. A começar por suas formalidades, que são muito mais burocráticas se comparadas às do remédio constitucional. Convém não esquecer que a utilização deste como via alternativa para reparação urgente de situações excepcionais foi fruto de uma necessidade do cidadão, ao contrário da sua pretendida eliminação.

A recente modificação da Lei de Lavagem de Dinheiro também abriu um novo flanco para os abusos. O texto impreciso expõe o legítimo exercício profissional a interpretações excessivas. Por trás da séria discussão sobre os deveres profissionais na prevenção da lavagem de dinheiro, esconde-se muitas vezes a vontade de arranhar o direito de defesa dos acusados.

Há quem acuse o advogado de cometer um ilícito, quando aceita honorários de alguém que responde a processo por suposto enriquecimento criminoso. O claro intuito desse arbítrio é evitar que os réus escolham livremente seus advogados. Restringe-se a amplitude da defesa atacando os profissionais que, “por presunção de culpabilidade”, recebem “honorários maculados”, mesmo que prestem serviços públicos e efetivos.

Em afronta à própria essência da advocacia e em violação ao sigilo profissional e à presunção de inocência, acaba-se criando uma verdadeira sociedade de lobos, na qual todos desconfiam de todos. Para alguns, o advogado deveria julgar e condenar seus próprios clientes. Diante de qualquer atividade “suspeita”, deveria delatá-los, sob pena de participar ele mesmo do crime de lavagem de dinheiro supostamente praticado por quem procurou o seu indispensável auxílio profissional.

Convém lembrar que o advogado atende e defende com lealdade quem lhe confia a responsabilidade de funcionar como o porta-voz de seu legítimo interesse. Não deve emitir, ou mesmo considerar, sua própria opinião sobre a conduta examinada, mantendo um distanciamento crítico em relação ao relato que lhe é apresentado.

Atentos à criminalidade que se sofistica para dar aparência de licitude a recursos obtidos de forma criminosa, nunca fomos contrários à discussão sobre ajustes nos deveres profissionais de algumas atividades reguladas. Contudo, a nova situação não pode servir de desculpa para proliferação de um dever geral de delação ou para devassar conteúdos legitimamente protegidos pelo sigilo profissional.

A advocacia criminal pauta-se pela confiança que o cliente deposita no seu defensor, colocando em suas mãos o bem que lhe é mais caro: sua própria liberdade.

Outro desafio contemporâneo à advocacia é a confusão entre o advogado e seu cliente. O preconceito é tão antigo quanto a nossa profissão. O que muda é o grau de consciência social que uma determinada época tem a respeito do valor do devido processo legal. No início do ano, ao defender um de meus clientes, sofri essa odiosa discriminação.

Na ditadura, os defensores da liberdade corríamos riscos e perigos pessoais ao questionar o valor jurídico dos atos de exceção. Na vigência do regime democrático, o pensamento autoritário encontrou na velha confusão entre advogado e cliente um meio de suprimir a liberdade com a qual ainda não se acostumou a conviver. A ignorância e a má-fé sugerem que ou o advogado defende um réu inocente ou ele é cúmplice do suposto criminoso.

Nada mais impróprio. A culpa só pode ser firmada depois do devido processo legal. Nunca antes. É um retrocesso colocar em questão esse dogma do Direito conquistado pela modernidade. Enquanto a confusão persistir, devemos repetir sem descanso que o advogado fala ao lado e em nome do réu num processo penal, zelando para que seja tratado como um ser humano digno de seus direitos constitucionais.

A Reforma do Código Penal também é sintomática dessa tendência repressiva. Elaborada por notáveis juristas e enviada em junho para o Congresso, importa conceitos do direito estrangeiro, sem a necessária adaptação à nossa realidade jurídica. Outros institutos essenciais, como o livramento condicional, são suprimidos. Além disso, eleva as penas corporais para diversos delitos e deixa passar a oportunidade de corrigir falhas técnicas já de todos conhecidas.

Outro sinal dos tempos é a inovação da jurisprudência superior na interpretação de alguns tipos penais, bem como a mudança de postulados do Processo Penal. Assistimos a um retrocesso de décadas de sedimentação de um Direito Penal mais atento aos direitos e garantias individuais. Quando se trata de protegê-los, não pode haver hesitações. Rompidos os tradicionais diques de contenção, remanesce o problema de como prevenir o abuso do “guarda da esquina”, como diria um velho político mineiro, às voltas com histórico desvio de rota na direção da repressão sem freios.

Também notamos uma tendência a tornar relativo o valor da prova necessária à condenação criminal, neste ano “bastante atípico”. Quando juízes se deixam influenciar pela “presunção de culpabilidade”, são tentados a aceitar apenas “indícios”, no lugar de prova concreta produzida sob contraditório. Como se coubesse à defesa provar a inocência do réu! A disciplina da persecução penal não pode ser colonizada por uma lógica estranha, simplesmente para facilitar condenações, nesse momento de reforço da autoridade estatal, sem contrapartida no aperfeiçoamento dos mecanismos que controlam o seu abuso.

A tendência à inversão do ônus da prova no processo penal também coloca em questão a tradicional ideia do “in dubio pro reo”, diante da proliferação de “presunções objetivas de autoria”. Tampouco a dosimetria da pena pode ser uma “conta de chegada”.

Quanto mais excepcionais os meios, menos legítimos os fins alcançados pela persecução inspirada pelo ideal jacobino da “salvação nacional”. Tempos modernos são esses em que nós vivemos. Em vez de apontar para o futuro, retrocedem nas conquistas civilizatórias do Estado Democrático de Direito.

Nesses momentos tormentosos, é saudável revisitar os cânones da nossa profissão. Como ensinava Rui Barbosa, se o réu tiver uma migalha de direito, o advogado tem o dever profissional de buscá-la. Independentemente do seu juízo pessoal ou da opinião publicada, e com abertura e tolerância para quem o consulta. Sobretudo nas causas impopulares, quando o escritório de advocacia é o último recesso da presunção de inocência.

É necessário reafirmar os princípios que norteiam o Direito Penal e lembrar, sempre que possível, que a liberdade do advogado é condição necessária da defesa da liberdade em geral. A advocacia criminal, desafiada pela ânsia repressiva, deve responder com firmeza. Alguns meios de resgatar o papel que cumpre na efetivação da justiça estão ao alcance da sua própria mão.

O primeiro passo deve ser investir num esforço pedagógico de esclarecimento social acerca da relevância do papel constitucional do advogado criminalista. Ele não luta pela impunidade. Também desejamos, enquanto membros da sociedade, a evolução das instituições que tornam possível uma boa vida em comum. Somos defensores de direitos fundamentais do ser humano, em uma de suas mais sensíveis dimensões existenciais: a liberdade de dar a si mesmo a sua regra de conduta.

Cabe a nós zelar pelas garantias dos acusados e pela observância dos princípios básicos do Direito Penal do Estado Democrático de Direito, contra as tentações do regime excepcional que não deve ser aplicado nem mesmo aos “inimigos na nação”.

É nosso dever de ofício acompanhar a repercussão do julgamento que pretendeu abolir o habeas corpus substitutivo, manifestando-nos sempre que possível para demonstrar os prejuízos desse regresso pretoriano. A fim de restabelecer o prestígio da ação constitucional, também se faz necessária a continuidade de seu manejo perante todos os tribunais.

Especificamente com relação às distorções que uma interpretação canhestra da nova lei de Lavagem de Dinheiro pode instituir, é importante registrar que a imposição do “dever de comunicar” não pode transformar os advogados em delatores a serviço da ineficiência dos meios estatais de repressão. É contrário à dignidade profissional ver no advogado um vulgar alcaguete.

É evidente que essa condição não torna a advocacia um porto seguro para práticas de lavagem de dinheiro, nem assegura a impunidade profissional. Apenas permite o livre exercício de uma profissão essencial à Justiça.

Deve ser louvada a recente decisão do Conselho Federal da OAB, segundo a qual “os advogados e as sociedades de advocacia não têm o dever de divulgar dados sigilosos de seus clientes que lhe foram entregues no exercício profissional”. Tais imposições colidem com normas que protegem o sigilo profissional, quando utilizado como instrumento legítimo indispensável à realização do direito de defesa.

Ainda assim se faz necessário o constante aprimoramento das regras éticas de conduta profissional. Em paralelo, sugere-se a formulação de códigos internos aos próprios escritórios de advocacia, com orientações, ainda que provisórias, acerca dessas boas práticas, no intuito de resguardar os advogados que se vêm diante da indeterminada abrangência da nova lei repressiva.

Esses “manuais de boas práticas” devem ser elaborados com vistas também a regulamentar uma nova advocacia criminal que hoje se apresenta. A consultoria vem ganhando espaço cada vez maior na área penal, em razão do recrudescimento das leis penais, seja pela proliferação de regras de compliance que regulam a atividade econômica. Para que haja segurança também na prestação desse serviço, é imprescindível uma regulamentação específica.

“Participar e defender”, em 2013, é a melhor maneira de responder aos desafios lançados pelo espírito vigilante e punitivo exacerbado no ano que passou. É renovar, como projeto, a aposta na democracia e na emancipação, contra as pretensões mal dissimuladas de regulação autoritária da vida social.

A repressão pura e simples não é suficiente para dar conta do problema da criminalidade. Embora a efetiva aplicação da lei ajude a aplacar o sentimento de insegurança, o Direito Penal não deve ser a principal política pública.

Outras linhas de atuação política devem ser prestigiadas. Pode-se pensar no controle social sobre o Estado, por meio do aprofundamento das políticas de transparência. Elas ganharam novo impulso com a promulgação de uma boa Lei de Acesso à Informação, que está longe de realizar todas as suas potencialidades de transformação criativa.

A prestação de contas de campanha em tempo real foi um avanço inegável. Uma medida discreta, mas eficaz, entre outras que podem ajudar a prevenir o espetáculo do julgamento penal.

Deve-se mencionar também a necessidade mais premente e inadiável de nossa democracia: a reforma política, com ênfase no financiamento público das campanhas eleitorais.

Enquanto o habeas ainda resiste, não podemos deixar de aperfeiçoar mecanismos de controle de abusos de autoridade. A esfera da privacidade e da intimidade das pessoas também carece de maior proteção jurídica.

Nossos servidores públicos ainda esperam um sistema de incentivos na carreira que recompense o maior esforço em favor dos interesses dos cidadãos.

A simplificação de procedimentos administrativos e tributários, ao diminuir as brechas de poder autocrático, pode desarrumar os lugares propícios à ocorrência da corrupção que nelas se infiltra.

É legítimo travar com a sociedade um debate aberto sobre os meios para a plena realização do pluralismo de ideias e opiniões.

Enfim, a educação para a cidadania, numa democracia segura dos valores da cultura republicana, é tema que deve ocupar mais espaço na agenda política de um país que não quer viver apenas sob a peia da lei punitiva.

Na encruzilhada em que se encontra o Direito Penal brasileiro, os desafios lançados pelo ano que passou só tornam mais estimulante a nobre aventura da advocacia criminal. A participação democrática e a defesa dos direitos humanos continuam apontando a melhor direção a seguir. As dificuldades de 2012 só enaltecem a responsabilidade do advogado, renovando suas energias para enfrentar as lutas que estão por vir.

Como anotou um prisioneiro ilustre, a inteligência até pode ser pessimista, mas continuamos otimistas na vontade de viver um ano mais compassivo.

Márcio Thomaz Bastos é advogado e foi ministro da Justiça (2003-2007).

Fonte: Revista Consultor Jurídico, 24 de dezembro de 2012


NOTA DO EDITOR: A ética e a moral devem pautar o atuar de todos os operadores do direito, não só de uma  determinada categoria. Todos os defensores do Direito Penal Mínimo que assegura observância às garantias constitucionais, ao contrário dos simpatizantes do Direito Penal Máximo ou movimento do punitivismo, devem se conduzir de forma a solidificar o nosso Estado Democrático e Social de Direito.

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

HOMENAGEM A JUAREZ CIRINO DOS SANTOS

DISCURSO DE HOMENAGEM A JUAREZ CIRINO DOS SANTOS

CONGRESSO INTERNACIONAL DE DIREITO PENAL E CRIMINOLOGIA
CURITIBA, 29/11/12 - TJ/PR

Uma homenagem a Juarez Cirino dos Santos

Meu amigo Juarez Cirino dos Santos nasceu em Rio Azul, interior do Estado do Paraná, no dia 24 de setembro de 1942. Passou a infância no distrito de Jordão, perto de Guarapuava. Veio a Curitiba, ainda muito jovem, para seguir os estudos, ingressando, em 1961, na Universidade Federal do Paraná. Ali, na militância política do PAR (Partido Acadêmico Renovador), na época de bandeira e cores vermelhas, nos conhecemos. Juarez Cirino era, desde então, uma pessoa inquieta, curiosa, criativa, bem falante, dedicada a dimensionar os estudos do direito sob o ângulo de um pensamento crítico. Já nos estudos de Economia Política e, depois, de Direito Civil, sob a inspiração do notável professor José Rodrigues Vieira Neto se incorporou ao marxismo e, coerentemente, jamais o deixou. Fez do marxismo seu instrumento de luta política e de crítica científica. Sempre que podia, lecionava sobre o materialismo dialético e o materialismo histórico. Vejo ainda, bem nítida, sua imagem nos corredores, nas assembleias estudantis, nas discussões entre amigos e colegas, no centro acadêmico, nos intervalos, no café (como era bom o café da Faculdade de Direito, um local de profícuos encontros), discorrendo sobre como enfrentar as desigualdades sociais, a opressão, a falta de liberdade, o poder.
Juarez Cirino sempre foi um crítico do sistema, jamais se curvou às cooptações das elites. Formou-se em direito em 1965 e foi trabalhar no Norte do Paraná. Ficamos, a partir daí, distantes, por força das circunstâncias e dos espaços. Em 1972, fui surpreendido com sua visita a Curitiba, já como advogado, para contratar-me a fazer uma sustentação oral em dois habeas corpus por excesso de prazo, perante o Tribunal de Justiça do Paraná. Minha contratação se fez por indicação de um antigo amigo, o civilista e professor José Lamartine Correa de Oliveira, sob a informação de que eu estava em dia com a doutrina penal, recém-chegado de longa estada com Jescheck na Alemanha. Fiz as sustentações e, apesar do parecer contrário do Ministério Público, ganhamos. As petições de Juarez Cirino eram irretorquíveis e o caso era bom.
Na verdade, a decisão judicial impugnada era absolutamente teratológica, e o excesso de prazo mais do que evidente, aliás, como hoje ainda ocorre em todos os cantos do país. Voltamos a ficar mais próximos. Juarez Cirino não havia esquecido o marxismo, mas estava impressionado com os estudos de direito penal. Devorava todos os livros que lhe caíam nas mãos. Tenho certeza de que foi ele o único que lera integralmente o Tratado de Derecho Penal de Luís Jiménez de Asúa, um livro de leitura difícil, analítica, de muitas referências. Mais tarde, saí de Curitiba e ingressei na Universidade Estadual de Londrina. Naquela cidade, reencontrei Juarez Cirino, um próspero advogado, leitor assíduo de direito penal. Tive a honra de indicá-lo para a Universidade Estadual de Londrina. Mantivemos ativo um departamento dedicado ao direito penal. Participamos juntos de vários eventos, entre esses, especialmente, de um deles com a presença de Heitor Costa Júnior, João Mestieri e Nilo Batista, jovens professores do Rio de Janeiro e promessas de um direito penal científico e liberal. Era a época da influência finalista no direito penal brasileiro.
Todos nós, ávidos por reorientar nossos estudos, passamos a ler e reler a obra de Hans Welzel. Novamente, Juarez Cirino devorou o Tratado de Welzel, sabia de memória todos os exemplos, todas as ponderações. Ampliava esse estudo com a leitura paralela de O Capital. Lembro-me, como se fosse hoje, de suas observações rigorosamente críticas do utilitarismo, calcado no que Marx comentava sobre a obra de Bentham. Parecia, naquele tempo, um sacrilégio desconstruir o pensamento de Bentham. Nossos manuais o enalteciam, como hoje se faz com relação a alguns representantes do funcionalismo. E era também perigoso defender o marxismo em plena ditadura. Juarez Cirino não se incomodava com os modismos, nem com os atos de autoridade, desmontava as pedras do utilitarismo e botava abaixo seus edifícios.
Vejam que audácia: um jovem professor do interior do Paraná contestando Bentham e, em afronta ao regime, adotando o marxismo como filosofia e teoria política. Mas a ciência se faz, mesmo, de contestações.
Atendendo à necessidade burocrática dos títulos, Juarez Cirino se muda, em 1976, para o Rio de Janeiro e, aqui, conclui o Mestrado na PUC/RJ e, depois, o Doutorado na UFRJ. Seus trabalhos, respectivamente, de dissertação de mestrado e tese de doutorado constituem o principal monumento de ruptura criminológica em face do positivismo.
Na dissertação de mestrado, intitulada “Uma crítica ao positivismo em criminologia” (1978), remodela o método criminológico, deixa de lado seu viés puramente etiológico para se situar numa verdadeira crítica social. Pela primeira vez, o condenado adquire na criminologia o status de pessoa. A defesa dos projetos do labelling approach sob uma visão marxista da realidade se aprofunda em sua tese de doutorado, “A criminologia radical” (1981), e, mais tarde, em um livro de valor inestimável, “As raízes do crime” (1984). Essa trilogia faz de Juarez Cirino o criador da moderna criminologia radical no Brasil. Depois dessa crítica demolidora à criminologia etiológica, o estudo do crime, entre nós, não foi mais o mesmo.
Juarez Cirino fez ainda pós-doutoramento com Sandro Baratta em Saarbrücken (Alemanha). Desse contacto com Baratta, Juarez Cirino teve a oportunidade de fortalecer ainda mais suas crenças no método dialético, o qual transportou da criminologia para o direito penal. Sem parar as indagações, leu e anotou toda a obra de Freud. Muitos outros artigos e livros foram publicados por Juarez Cirino, tanto no âmbito da criminologia, da política criminal, como da teoria do delito. Todos esses estudos culminam no magnífico “Direito Penal, Parte Geral”, hoje de leitura obrigatória em termos dogmáticos. Novamente, como fez com a criminologia, Juarez Cirino repõe a dignidade científica do direito penal, agora não mais calcado no finalismo de Welzel, mas na abertura dogmática proposta por Roxin. Todos esses ensinamentos se espraiaram em suas aulas nas universidades em que atuou, para gáudio de seus alunos e seguidores.

Sobre a obra de Juarez Cirino poderia falar muito mais, analisando-a pormenorizadamente. Creio, porém, que nós brasileiros temos outra característica, especialmente a de fazer uma apreciação sobre a pessoa dos autores. Depois que li as informações de Muñoz Conde sobre Mezger, de Ingo Müller sobre os juristas no nacional-socialismo, de Herbert Jäger e de Dirk Fabricius sobre o comportamento dos intelectuais nas universidades, e de muitos outros nos países que foram palcos de regimes autoritários, estou cada vez mais convencido de que a obra não pode estar divorciada da conduta social e política de seus autores.
Nós, brasileiros, estamos certos. Por isso, quero expressar o que sinto da pessoa de Juarez Cirino. Durante todos esses anos de convivência, de troca de informações, de discussões, de participação em eventos, seminários, congressos e comissões examinadoras, de conversas em sua casa, na minha, na UFPR e na UERJ, pude formar uma impressão de Juarez Cirino, que até hoje não se desfez: um intelectual absolutamente coerente. Seu pensamento é claro no sentido de descaracterizar qualquer argumentação autoritária, de se opor aos moralismos de ocasião, ao poder de turno (para usar uma expressão de Zaffaroni), às facções políticas oportunistas, aos arranjos com as elites em detrimento dos oprimidos, às manifestações do poder punitivo como forma institucionalizada de sedimentação de uma sociedade de classes.
Sempre que algum ato autoritário ocorra em qualquer lugar, sempre que a pessoa humana seja degradada, sempre que as artimanhas dos pensamentos coativamente impostos se verifiquem ou quando a humilhação ou a privação da liberdade esteja presente, não será preciso perguntar como Juarez Cirino reagirá. A resposta é uma só: a favor da pessoa oprimida e humilhada.
Falei no começo que Juarez Cirino nasceu em Rio Azul. Parece que essa referência não tem o menor significado, salvo como elemento para preencher dados na carteira de identidade. Mas sua infância no interior do Paraná parece constituir mesmo suas raízes com o mundo, para vê-lo tal como ele é, mais concreto, menos desumano, assentado na terra e na luta de todos os camponeses por sua sobrevivência. A saída do interior para a capital força uma analogia com a função do tempo. À medida que o tempo das horas trabalhadas serve de parâmetro para a teoria da retribuição equivalente e explica o porquê da avaliação do crime pelo tempo de pena, também, o tempo de maturação entre interior e capital estimula e sedimenta os atos empolgados de ruptura. Talvez pudesse dizer que Juarez Cirino jamais deixou de sentir, em toda sua vida, como sua origem nunca permitiu que se desviasse de sua condição humana e como sempre fê-lo estar na vanguarda dos atos de ruptura com o poder.

Essa é a homenagem que posso prestar a esse amigo, por sua alta qualificação intelectual e, mais do que isso, por sua condição humana, de primeira grandeza.

Juarez Tavares
 
Fonte: Facebook (perfil do Prof. Dr. Juarez Tavares)

domingo, 11 de novembro de 2012

CLAUS ROXIN E A TEORIA DO DOMÍNIO DO FATO

Foto: Claus Roxin

Notícias

11 novembro 2012
Claus Roxin

Teoria do domínio do fato é usada de forma errada

Estudioso da teoria do domínio fato, usada pelos ministros do Supremo Tribunal Federal para condenar boa parte dos réus da Ação Penal 470, o processo do mensalão, o jurista alemão Claus Roxin, em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, publicada neste domingo (11/11), discordou da intepretação dada ao trabalho.

Roxin, que aprimorou a teoria, corrige a noção de que só o cargo serve para indicar a autoria do crime e condena julgamento sob publicidade opressiva, como está acontecendo no Brasil.
"Quem ocupa posição de comando tem que ter, de fato, emitido a ordem. E isso deve ser provado", diz Roxin.

Leia a entrevista:

Folha — O que o levou ao estudo da teoria do domínio do fato?

Claus Roxin — O que me perturbava eram os crimes do nacional socialismo. Achava que quem ocupa posição dentro de um chamado aparato organizado de poder e dá o comando para que se execute um delito tem de responder como autor e não só como partícipe, como queria a doutrina da época. Na época, a jurisprudência alemã ignorou minha teoria. Mas conseguimos alguns êxitos. Na Argentina, o processo contra a junta militar de Videla [Jorge Rafael Videla, presidente da Junta Militar que governou o país de 1976 a 1981] aplicou a teoria, considerando culpados os comandantes da junta pelo desaparecimento de pessoas. Está no estatuto do Tribunal Penal Internacional e no equivalente ao STJ alemão, que a adotou para julgar crimes na Alemanha Oriental. A Corte Suprema do Peru também usou a teoria para julgar Fujimori [presidente entre 1990 e 2000].


Folha — É possível usar a teoria para fundamentar a condenação de um acusado supondo sua participação apenas pelo fato de sua posição hierárquica?

Roxin — Não, em absoluto. A pessoa que ocupa a posição no topo de uma organização tem também que ter comandado esse fato, emitido uma ordem. Isso seria um mau uso.


Folha — O dever de conhecer os atos de um subordinado não implica em corresponsabilidade?

Roxin — A posição hierárquica não fundamenta, sob nenhuma circunstância, o domínio do fato. O mero ter que saber não basta. Essa construção ["dever de saber"] é do direito anglo-saxão e não a considero correta. No caso do Fujimori, por exemplo, foi importante ter provas de que ele controlou os sequestros e homicídios realizados.


Folha — A opinião pública pede punições severas no mensalão. A pressão da opinião pública pode influenciar o juiz?

Roxin — Na Alemanha, temos o mesmo problema. É interessante saber que aqui também há o clamor por condenações severas, mesmo sem provas suficientes. O problema é que isso não corresponde ao direito. O juiz não tem que ficar ao lado da opinião pública.


Revista Consultor Jurídico, 11 de novembro de 2012

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

CRACK E A INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA

Notícias

31 outubro 2012
Classificação e dependência

Parlamentar defende internação compulsória

O relator da proposta que altera a Lei Antidrogas (PL 7.663/2010), deputado Givaldo Carimbão (PSB-AL), afirmou que vai manter em seu relatório na comissão especial a internação compulsória e a classificação das drogas por sua capacidade de causar dependência, pontos criticados por técnicos do governo.

Segundo o parlamentar, a Justiça entende que a internação deve ser compulsória. No entanto, explicou o deputado, o juiz não pode mandar internar uma pessoa sem um laudo médico que indique a internação.

“Lamento meia dúzia de pessoas que se encastelaram no poder de repente dizerem que não aceitam em nome do povo brasileiro. Nós também representamos o povo brasileiro. Então eu vou discutir mais calmamente. Mas na hora de decidir, nós vamos decidir. Eu vou tentar convencer com diálogos. Se não, vamos ter que votar a matéria e mandar para a Câmara e o Senado votarem”, disse Carimbão, nesta terça-feira (30/10), em seminário sobre sistema nacional de políticas sobre drogas, promovido pela comissão especial que examina o assunto.

Dependência química

Para o subsecretário de política sobre drogas de Minas Gerais, Cloves Benevides, é preciso examinar com cuidado a classificação das drogas por sua capacidade de causar dependência. Apenas a Inglaterra usa esse sistema, diz ele.
 
“É preciso um debate com a academia brasileira, com a sociedade científica para que, então, a partir de parâmetros concretos, se possa avaliar a quantidade, tipo de droga, via de administração e riscos à saúde e à sociedade”, disse Benevides.

O coordenador estadual de políticas públicas sobre drogas do Espírito Santo, Renato Vieira, questionou que tipos de dados serão coletados e como será feita a coleta pelos sistemas nacionais de informação sobre drogas.

Já o presidente da comissão especial, deputado Jorge Silva (PDT-ES), disse que está trabalhando sobre o texto do PL 7.663/2010 para que possa produzir a melhor lei possível para o enfrentamento às drogas. Silva foi o autor do requerimento para o seminário. Com informações da Agência Camara.


Revista Consultor Jurídico, 31 de outubro de 2012


NOTA DO EDITOR: Flagrantemente inconstitucional a internação compulsória de viciados em crack ou qualquer outro tipo de droga. É exclusão social e não atenção social do problema que assola a sociedade. Qualquer um com o mínimo de experiência de vida, sabe que o dependente químico não vai se livrar dela se for forçado a tal. O que necessitamos é de reais políticas públicas de redução de danos e não soluções midiáticas e simbólicas.

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

CONSIDERAÇÕES SOBRE O CRIME CONTINUADO

29 outubro 2012
Ficção jurídica

Algumas considerações sobre o crime continuado


O direito antigo, ensina Fragoso[1], não conhecia o crime continuado. A figura foi introduzida pelos práticos italianos, mirando mitigar as penas do furto, que se praticado pela terceira vez, implicava na morte pela forca. A Feuerbach, informa Bruno[2], deve-se a sua introdução no Direito Positivo moderno, através do Código da Baviera de 1813.

De acordo com o nosso Código Penal (CP), que adotou a teoria puramente objetiva, considera-se crime continuado quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie, e pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subsequentes ser havidos como continuação do primeiro (artigo 71 do CP). Conforme dito, para a caracterização da continuidade delitiva “não se requer que haja qualquer dolo de conjunto ou propósito deliberado de praticar sucessivamente fatos delituosos”.[3] Sem qualquer consideração de ordem subjetiva, verificam-se na espécie somente elementos objetivos em relação aos vários crimes, quais sejam: i) crimes da mesma espécie; ii) conjunto das circunstâncias previstas no artigo 71 do CP (condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes).

Para Zaffaroni e Pierangeli[4], que se referem à figura do crime continuado como “falso crime continuado” ou “concurso material atenuado”, o artigo 71 do nosso Código Penal busca “estabelecer uma atenuação nos casos de menor culpabilidade, por causa da unidade ou condições objetivas, que fundamentam o juízo de culpabilidade.” Segundo os citados penalistas, as circunstâncias referidas pelo Código Penal fazem parte da culpabilidade, as que dizem respeito às motivações do agente, não podendo, portanto, ser desvinculada da culpabilidade do crime anterior.

Percebe-se, na verdade, que a figura do crime continuado é uma ficção jurídica, visando amenizar a regra do concurso material. Nosso Código adota em relação à natureza jurídica e para fins de aplicação da pena no crime continuado a teoria da ficção jurídica, já que existem vários delitos.

Constituem requisitos do crime continuado:

a) pluralidade de condutas (ações ou omissões): a pluralidade de condutas não deve ser confundida com pluralidade de atos, posto que uma única ação pode se desdobrar em vários atos. De tal modo, ensina Bruno[5], “pode o agente subtrair em atos sucessivo, mas na mesma ocasião, objetos diverso, esparsos no local em que se encontra, e nem por isso comete crime continuado, mas apenas um furto instantâneo e comum”. Nada impede, portanto, que os bens jurídicos ofendidos tenham diverso titular. Assim, o agente, por ex., que entra em um ônibus e furta inúmeros objetos de vários passageiros;

b) crimes da mesma espécie: apesar de alguns entendimentos contrários no sentido de que crimes da mesma espécie estão contidos no mesmo tipo penal, tal entendimento não deve prevalecer, não devem ser confundidos com crimes idênticos. Crimes da mesma espécie são aqueles que, embora não necessariamente descritos pelo mesmo tipo penal – se não a lei falaria em crimes idênticos -, ofendem o mesmo bem jurídico. Neste sentido Fragoso[6] para quem “crimes da mesma espécie não são apenas aqueles previstos no mesmo artigo de lei, mas também aqueles que ofendem o mesmo bem jurídico e que apresentam, pelos fatos que os constituem ou pelos motivos determinantes, caracteres fundamentais comuns”. Ex. roubo e extorsão; calúnia e difamação; peculato e corrupção e etc.;

c) circunstâncias semelhantes de tempo, lugar, modo de execução e outras. O conjunto de tais circunstâncias é que informa o critério de aferição da continuação criminosa, segundo a apreciação do julgador. Isoladamente, nenhuma delas é decisiva. Podem as condutas estar distanciadas no tempo e, não obstante, as infrações serem consideradas continuadas. É o caso, por exemplo, do viajante comercial que em cada mês se apropria indebitamente de uma parte das quantias em dinheiro que recebe para entregar à empregadora.[7]

Na hipótese de reconhecimento da continuidade delitiva o juiz deve aplicar a pena de um dos crimes se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços. Na determinação do quantum relativo ao aumento da pena influi o número de infrações praticadas. Contudo, não poderão influir circunstâncias já valoradas para efeito do cálculo da pena-base, o que configuraria bis in idem.[8]

Por outro, entende-se que o critério que leva em conta o número de infrações para a determinação do aumento da pena não deve ser engessado e tomado com rigor matemático. Além do número de crimes que compõem a série continuada, o juiz deve observar no aumento os efeitos e à gravidade desses crimes, bem como as outras circunstâncias que se relacionam com a continuidade delitiva.[9]

O Supremo Tribunal Federal (STF) ao editar a Súmula 711 (“A lei penal mais grave aplica-se ao crime continuado ou ao crime permanente, se a sua vigência é anterior à cessação da continuidade ou da permanência”) equipara, com a devida vênia, equivocadamente, o crime continuado ao crime permanente para ampliar a punibilidade. No crime permanente a ação se protrai no tempo, o fato, em sua inteireza, ainda está sendo executado em período duradouro. O crime é realmente único. Exemplos clássicos é o crime de sequestro e de cárcere privado (artigo 148 do CP). Assim, se uma lei nova, ainda que mais gravosa, entra em vigor enquanto não cessar a permanência ela deverá ser aplicada posto que presente todos os elementos objetivos e subjetivos do tipo penal. Aqui, como bem acentua Bitencourt[10], não há ofensa ao princípio constitucional da irretroatividade da lei penal mais grave (artigo 5º, XL, da CF), já que se trata da incidência imediata da lei nova a fato que está ocorrendo no momento da sua entrada em vigor. Não havendo, neste caso, critica a ser feita a citada súmula.

Contudo, no que concerne ao crime continuado (uma ficção jurídica), já que na verdade vários crimes são praticados e os subsequentes tidos como continuação do primeiro, a Súmula 711 não deve prevalecer. De acordo com o Código Penal, “considera-se praticado o crime o momento da ação ou da omissão, ainda que outro seja o momento do resultado” (art. 4º). Ora, se no momento da pratica do primeiro crime, que servirá de base para a caracterização da continuidade delitiva, a lei é mais benéfica do que a dos crimes subsequentes, é evidente que a lei mais gravosa, ainda que atingido os crimes posteriores, não poderá ser aplicada, sob pena de violação do princípio constitucional da irretroatividade da lei mais grave, corolário do princípio da legalidade. Neste sentido, Bitencourt[11], para quem “o texto da Súmula 711, determinando a aplicação retroativa da lei penal mais grave, para a hipótese de crime continuado, estará impondo pena (mais grave) inexistente na data do crime para aqueles fatos cometidos antes de sua vigência”.

Em relação ao crime continuado é mister considerar as razões de política criminal que inspiraram o referido instituto no intuito de se evitar condenações às penas extremamente elevadas e desproporcionais contrariando sua própria finalidade. A figura do crime continuado, como destacado no início, tem por escopo beneficiar o infrator e mitigar os males de uma pena exacerbada.

[1] FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 1990, p.350.
[2] BRUNO, Aníbal. Direito Penal. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 296.
[3] FRAGOSO, ob. cit.
[4] ZAFFARONI, Eugenio Raúl e PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: parte gera. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 626.
[5] BRUNO, Aníbal. Direito penal. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 302.
[6] FRAGOSO, ob. cit. p. 351.
[7] PIMENTEL, Manoel Pedro. Do crime continuado. 2. ed. rev. ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1969:146
[8] PRADO, Luiz Régis. Curso de direito penal brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p.465.
[9] FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições... ob. cit. p. 353.
[10] BITENCOURT, Cézar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 173.
[11] BITENCOURT, Cézar Roberto. Ob. cit. p. 174. No mesmo sentido QUEIROZ, para quem a Súmula 711 “implica uma inversão lógica e cronológica do conceito legal de continuação, ofendendo o princípio da legalidade. No delito continuado os crimes subsequentes são havidos como continuação do primeiro, e não o contrário...” (QUEIROZ, Paulo.http://pauloqueiroz.net/crime-continuado-e-a-sumula-711-do-supremo-tribunal-federal/)


Leonardo Isaac Yarochewsky é advogado criminalista e professor de Direito Penal da PUC-Minas.


Revista Consultor Jurídico, 29 de outubro de 2012

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

CONSTITUIÇÃO DE MILÍCIA PRIVADA

* Cezar Roberto Bitencourt
 
 
 
CONSTITUIÇÃO DE MILÍCIA PRIVADA
 
PARTE I
"Constituição de milícia privada

Art. 288-A. Constituir, organizar, integrar, manter ou custear organização paramilitar, milícia particular, grupo ou esquadrão com a finalidade de praticar qualquer dos crimes previstos neste Código:

Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos."

1. Considerações preliminares

A Lei nº 12.720, de 27 de setembro de 20
12, cria mais uma figura penal inserindo-o em nosso Código Penal de 1940, tipificando as ações dos denominados grupos de extermínio e das milícias privadas. Acrescenta, ademais, uma nova majorante ao crime de homicídio (§6º), quando praticado pelos referidos grupos. Igualmente, o crime de lesões corporais também é contemplado com majorante similar, nas mesmas circunstâncias, tendo redefinido seu parágrafo sétimo. Essas duas novas majorantes são, no entanto, examinadas conjuntamente com os respectivos crimes, em sede própria, lá no volume 2º, deste Tratado de Direito Penal.
Este novo tipo penal integra o Título IX do Código Penal, que é composto pelos crimes que, segundo o texto legal, pretendem tutelar a denominada paz pública. Mas, de plano, pode-se afirmar, que essa nova figura típica não se confunde com a “formação de quadrilha”, apresentando uma estrutura tipológica completamente diferente, v. g., não exige, a priori, a finalidade da prática indeterminada de crimes, e tampouco estabeleceu um número mínimo de participantes. Admite-se, na verdade, a finalidade de praticar qualquer dos crimes previstos no Código Penal, estando excluídos, por conseguinte, os crimes previstos na legislação extravagante, como veremos adiante.

2. Bem jurídico tutelado

Ao examinarmos, criticamente, o bem jurídico nos três crimes que, até então, integravam o presente Título do Código Penal, afirmamos: “Na verdade, ao longo de décadas a praxis encarregou-se de demonstrar que as três infrações penais que compõem o Título IX da Parte Especial não “criam” o pretendido “alarma social” (que produziria aquele sentimento de descrédito, de desconfiança etc.); pelo contrário, essa repercussão tem-se produzido não pela eventual prática de qualquer das referidas infrações, mas fundamentalmente pelo estardalhaço que as autoridades integrantes do sistema repressivo têm feito na grande mídia, sobretudo quando investigam os chamados “crimes empresariais”, cognominados “crimes de organizações criminosas”, particularmente aqueles considerados contra o sistema financeiro e contra o sistema tributário. Logo, o “alarma da coletividade” não é produzido pela eventual prática de crimes dessa natureza, mas sim pelo uso espalhafatoso que se faz de sua investigação (inclusive confundindo, intencionalmente ou não, concurso eventual de pessoas com quadrilha ou bando)” .

Ora, com a novel infração – constituição de milícia privada – a situação não é muito diferente, embora, pela estrutura da formação desse “novo” modelo de associação, possa produzir, in concreto, maior repercussão, mas pelos crimes que poderá cometer, normalmente, mais violentos e sanguinários, como veremos. No entanto, nesse caso, os crimes que o “grupo” praticar terão como objetos de tutela outros bens jurídicos, que não se confundem com o crime associativo em si, como pontificava Magalhães Noronha, examinando a figura da incitação ao crime (art. 286) : “Diverso, consequentemente, é o bem jurídico, aqui contemplado, daquele que é ofendido pelo crime objeto da instigação, v. g., linchamento, assalto etc.”.

Contudo, diferentemente das três figuras anteriores, a simples existência de organização paramilitar, milícia particular, grupo ou esquadrão, com finalidade de cometer crimes, sendo do conhecimento da população, é capaz de produzir-lhe, indiscriminadamente, um sentimento de medo, insegurança e até de pavor, atingindo aquele sentimento que nos referimos acima, e que, na ótica do legislador, seria a paz pública. Esse temor justifica-se exatamente pelos crimes que tais grupos, normalmente, dedicam-se a realizar, v. g. matanças, extermínios, sequestros etc.

O bem jurídico protegido, na nossa concepção, não é propriamente a “paz pública”, algo que até seria defensável nos ordenamentos jurídicos italiano e argentino, à luz de seus códigos penais da primeira metade do século passado, visto que eles enfatizavam o aspecto objetivo da ordem ou paz públicas. Como já referimos nos capítulos anteriores (arts. 286 a 288), nosso ordenamento jurídico prioriza o aspecto subjetivo, consequentemente, o bem jurídico protegido imediato, de forma específica, é o sentimento coletivo de segurança na ordem e proteção pelo direito, que se vê abalado pela conduta tipificada no art. 288-A, ora sub examine; não é, por certo, uma indemonstrável “paz pública”, pois, na maioria dos casos, a coletividade somente toma conhecimento de ditos crimes após serem debelados pelo aparato repressivo estatal, com a escandalosa divulgação que se tem feito pela mass media, como vem ocorrendo nos últimos anos.

Em síntese, paz social como bem jurídico tutelado não significa a defesa da “segurança social” propriamente. A rigor, bem jurídico tutelado imediato é a sensação ou o sentimento da população em relação a segurança social, ou seja, aquela sensação de bem-estar, de proteção e segurança geral, que não deixa de ser, em outros termos, uma espécie de reforço a mais da própria segurança ou confiança, qual seja, o de sentir-se seguro e protegido . No século passado, Enrico Contieri já sustentava, nesse sentido, que “bem jurídico objeto desses crimes é o sentimento coletivo de segurança de um desenvolvimento regular da vida social, de acordo com as leis”. E, a nosso juízo, essa doutrina continua atualizada e vigente em nosso sistema jurídico.

3. Sujeitos do crime

Sujeito ativo pode ser qualquer pessoa, em número mínimo de quatro (mais de três), tratando-se, por conseguinte, de crime de concurso necessário, a exemplo do que ocorre com o similar quadrilha ou bando.

Na nossa concepção, os inimputáveis (doentes mentais e menores de 18 anos) não podem ser incluído no número mínimo dessa figura típica, apenas para incriminar determinado indivíduo, sob pena de consagrar-se autêntica responsabilidade penal objetiva. Com efeito, incluí-los, em tal hipótese, em uma reunião se pessoas (constituição de milícia privada) representa uma arbitrariedade intolerável, mesmo que, in concreto, não se atribua responsabilidade penal a incapazes, utilizando-os tão somente para compor o número legal, pois violará a tipificação legal. Quando, por exemplo, o legislador de 1940 ao definir a tipificação do crime de quadrilha ou bando (288) referiu-se a “mais de três pessoas” visava, certamente, indivíduos penalmente responsáveis, isto é, aquelas pessoas que podem ser destinatárias das sanções penais. Reforçando esse nosso entendimento, invocamos o magistério de Sebastian Soler, in verbis: “Ese mínimo debe estar integrado por sujetos capaces desde el punto de vista penal, es decir, mayores de dieciseis años” .

Sujeito passivo, a exemplo do que ocorre no crime de quadrilha ou bando, é a coletividade em geral, um número indeterminado de indivíduos, ou seja, o próprio Estado, que tem a obrigação de garantir a segurança e o bem estar de todos. A admissão da sociedade como sujeito passivo não afasta, contudo, a possibilidade de, casuisticamente, existir individualmente um ou mais sujeitos passivos, como, por exemplo, quando for individualizável a vítima in concreto nos crimes praticados pela milícia privada; mas, nesse caso, já não será o sujeito passivo desta infração penal, mas daquelas que a própria milícia vier a praticar, isto é, serão sujeito passivo de outro tipo penal, e não deste.

4. Tipo objetivo: adequação típica

A Lei 12.720/12 criou nova modalidade de reunião de pessoas para delinquir, que não se confunde com o concurso eventual, e tampouco com a formação de quadrilha ou bando, sem falar no concurso para ao tráfico de drogas ilícitas (art. 35 da Lei 11.343/06). Naquele há uma associação ocasional, eventual, temporária, para o cometimento de um ou mais crimes determinados; nesta, a associação para delinquir é duradoura, permanente e estável, com o objetivo de praticar, indiscriminadamente, crimes indeterminados. No concurso eventual de pessoas exige-se no mínimo dois participantes para formar o concurso (art. 29), embora o texto legal nada diga a respeito. Concurso eventual de pessoas é a consciente e voluntaria participação de duas ou pessoas na prática de uma mesma infração penal; na quadrilha ou bando a exigência mínima é mais de três associados (art. 288). Em outros termos, configura-se a quadrilha ou bando quando mais de três pessoas formam uma associação organizada, estável e permanente, com programas previamente preparados para a prática de crimes, indeterminados. Associação de forma estável e permanente, com a finalidade de praticar crimes, indiscriminadamente, é o que distingue a formação de quadrilha do concurso eventual de pessoas. Assim, a simples organização ou acordo prévio para a prática de crimes previamente determinados está mais para o concurso eventual de pessoas do que para formação de quadrilha, ao contrário do que se tem apregoado indevidamente.

E na nova figura da constituição de milícia privada haveria um número mínimo necessário para configurá-la, e, nesse caso, qual seria?

O texto legal é, no particular, completamente omisso, voluntária ou involuntariamente, ficando a cargo de doutrina e jurisprudência sua interpretação e criação que deve ocorrer lógica e racionalmente. Poder-se-ia admitir a configuração de organização, milícia, grupo ou esquadrão composto somente por duas pessoas, que é, claramente, a menor reunião de pessoas? Logicamente, não, pois nenhuma das figuras mencionadas, por definição, admite sua formação tão somente com dois membros. Vejamos, exemplificativamente, o “grupo” - que nos parece, de todos, o menor agrupamento de seres -, não se coaduna com a ideia de “par”, isto é, dois indivíduos não formam um grupo, mas apenas uma dupla, que não se confunde com grupo.

Podemos ter dúvida, enfim, sobre a quantidade mínima, se três ou mais membros, mas uma coisa é certa: não pode ser menos, pois, nesse caso, repetindo, não seria um grupo, mas somente uma dupla, ou seja, apenas um par e não um grupo! Assim, no nosso entendimento, o crime de “constituição de milícia privada” não pode ser composto somente de duas pessoas; estamos convencidos de que, ante a lacuna legal, seja adequado exigir-se, a exemplo do crime de quadrilha (288), o mínimo de mais de três pessoas. Realmente, sua similaride e proximidade geográfica com aquele autoriza o entendimento que exige a mesma estrutura numérica, qual seja, mais de três pessoas reunidas com a finalidade de praticar crimes previstos no Código Penal. Essa interpretação restritiva é uma exigência da tipicidade estrita, que não permite uma interpretação extensiva que poderá alcançar conduta não abrangida pelo texto legal incriminador.

Com efeito, afronta a lógica e o bom senso imaginar-se a formação de “esquadrão”, “milícia particular” ou “organização paramilitar” com número de participantes inferior à quadrilha prevista no art. 288 do CPP. Tratam-se, na verdade, de agrupamentos ou associações de pessoas com a finalidade delinquir que envolvem inúmeras pessoas, os quais não se estruturam apenas com dois ou três indivíduos e, in concreto, não será difícil identificar essa quantidade mínima (mais de três) como integrantes de tais milícias. Pensar diferente significa criar figura mais rigorosa que a pretendida pelo legislador, agravando a situação de envolvidos ao conceber como típicas condutas não recepcionadas pelo texto legal. No mínimo, está-se diante de um risco que o intérprete não tem o direito de correr em prejuízo do cidadão, ante uma lacuna legal.

Há, a rigor, um grande equívoco do legislador, qual seja, a elaboração de um tipo penal aberto, criando uma modalidade de reunião de pessoas para delinqüir, sem estabelecer o número mínimo de participantes. Logo, a interpretação mais correta deve socorrer-se de figuras similares, isto é, que se ocupem de algo semelhante, e a mais próxima (tanto em termos de conteúdo, quanto anatomicamente) é a formação de quadrilha, que exige, como mínimo, mais de três participantes.

A criação de uma figura plurissubjetiva, isto é, que implique, necessariamente, a participação de vários agentes, o legislador penal, em obediência ao principio da tipicidade e da legalidade, não pode deixar de fixar o número mínimo de participantes. A configuração de um tipo penal não pode ficar, para a garantia do próprio cidadão, na dependência da interpretação livre de cada aplicador da lei, cujo resultado final será sempre lotérico, violando a taxatividade da tipicidade estrita.

Trata-se de um crime de ação múltipla ou de conteúdo variado, representado por quatro verbos nucleares, quais sejam: (i) constituir (que significa criar, estruturar, formatar, dar forma ao grupamento criminoso, em qualquer das modalidades elencadas); organizar (não deixa de ser, de certa forma, sinônimo de constituir, mas, especificamente, é ordenar, regularizar sua estrutura, engenharizar o formato adequado para otimizar seu funcionamento, ou, pensar sua dinâmica funcional, encontrando a melhor forma de rendimento); integrar (é fazer parte, ser um de seus membros, fundador ou não do grupo); manter ou custear (significa sustentar, arcar com os custos, ou ao menos compartilhar com os demais participantes, não apenas financeiramente, mas com toda e qualquer ajuda, material, moral e até psicológica. Nesse tipo de empreendimento criminoso, pode o participante contribuir inclusive com fornecimento de armamento, de materiais de construção ou de qualquer natureza, armas, munições etc.).

A tipificação do crime constituição de milícia privada afronta o princípio da legalidade estrita ao não definir “organização paramilitar, milícia particular, grupo ou esquadrão”, dificultando gravemente a segurança exigida em um Estado Democrático de Direito. Ademais, criando uma nova modalidade de reunião de pessoas para delinquir olvidou-se o legislador de estabelecer o número mínimo de participantes, gerando insegurança inaceitável para um direito penal da culpabilidade, fundado em seus dogmas históricos. Na realidade, o legislador devia ter conceituado e definido o significado dos grupos que elenca, atendendo, assim, o princípio da taxatividade estrita. A questão situa-se especialmente na grande dificuldade, inclusive doutrinária e jurisprudencial, de estabelecer exatamente os conceitos dessas novas figuras.

O legislador destaca denominações já conhecidas no meio jurídico, estereotipadas, quais sejam, organização paramilitar, milícia particular e grupo ou esquadrão. Fala-se, informalmente, que vêm operando na criminalidade, especialmente no Rio de Janeiro e São Paulo, causando grande insegurança à população, segundo noticia a imprensa de um modo geral.

Acreditamos que seja exaustiva essa enumeração de reunião de pessoas - organização paramilitar, milícia particular, grupo ou esquadrão -, com a finalidade de praticar qualquer crime previsto no Código Penal. Contudo, sua identificação ou nomeação é aleatória e sem rigor científico, isto é, admite quaisquer agrupamentos (mesmo que possa receber outra denominação), desde que tenha a mesma finalidade delituosa. Vejamos, sucintamente, cada uma dessas figuras.

a) Organização paramilitar é uma associação civil armada constituída, basicamente, por civis, embora possa contar também com militares, mas em atividade civil, com estrutura similar à militar. Trata-se de uma espécie de organização civil, com finalidade civil ilegal e violenta, à margem da ordem jurídica, com características similares à força militar, mas que age na clandestinidade. Para Rogério Sanches, “Paramilitares são associações civis, armadas e com estrutura semelhante à militar. Possui as características de uma força militar, tem a estrutura e organização de uma tropa ou exercito, sem sê-lo” .

b) Milícia particular tem sido definida como um grupo de pessoas (que podem ser civis e/ou militares), que, alegadamente, pretenderia garantir a segurança de famílias, residências e estabelecimentos comerciais ou industriais. Haveria, aparentemente, a intenção de praticar o bem comum, isto é, trabalhar em prol do bem estar da comunidade, assegurando-lhe sossego, paz e tranqüilidade, que foram perdidos em razão da violência urbana.

No entanto, essa atividade não decorre da adesão espontânea da comunidade, mas é imposta mediante coação, violência e grave ameaça, podendo resultar, inclusive, em eliminação de eventuais renitentes. Na realidade, há uma verdadeira ocupação de território, numa espécie de Estado paralelo, com a finalidade de explorar as pessoas carentes. Em sentido semelhante, destaca Rogério Sanches: “por milícia armada entende-se grupo de pessoas ... armado, tendo como finalidade (anunciada) devolver a segurança retirada das comunidades mais carentes, restaurando a paz. Para tanto, mediante coação, os agentes ocupam determinado espaço territorial. A proteção oferecida nesse espaço ignora o monopólio estatal de controle social, valendo-se de violência e grave ameaça” .

c) grupo ou esquadrão, embora o legislador não tenha dito, está referindo-se aos famosos grupos de extermínios que ganharam espaço, basicamente, no Rio de Janeiro e São Paulo, tanto que o texto utiliza a locução “grupo ou esquadrão”. Curiosamente, no entanto, ao contrário da definição deste crime, na majorante que o mesmo diploma legal acrescentou ao crime de homicídio, refere-se expressamente a “grupo de extermínio”, reforçando nossa interpretação quanto ao sentido da terminologia utilizada na definição da novel infração sub examine. “Esquadrão”, por sua vez, ficou conhecido no final do regime militar como “esquadrão da morte”. Ou seja, ambos têm, fundamentalmente, o mesmo significado. Grupo de extermínio, enfim, é a denominação atribuída no Brasil a grupos de matadores que atuam nas classes mais desprivilegiadas de algumas das grandes cidades deste País, normalmente, nos subúrbios ou nas periferias. Em sentido semelhante, é o entendimento de Rogério Sanches, verbis: “Por grupo de extermínio entende-se a reunião de pessoas, matadores, “justiceiros” (civis ou não) que atuam na ausência ou leniência do poder público, tendo como finalidade a matança generalizada, chacina de pessoas supostamente etiquetadas como marginais ou perigosas” .

Esses grupos de extermínio, convém que esclareça, surgem quase sempre na omissão ou inoperância do Poder Público; não raras vezes esses grupos contam com o apoio e simpaatia (e até mesmo a contratação) de comerciantes e moradores de comunidades pobres, pois, supostamente, manteriam marginais mais perigosos afastados e, muitas vezes, até os eliminam. A ação desses grupos exterminadores (grupos ou esquadrão) já foi alvo de investigações da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal. Contudo, a sua eliminação ou o desmantelamento é dificultado pelo fato de, principalmente, terem quase sempre ligações com as polícias locais. Ademais, a carência probatória da ação desses grupos reside na dificuldade de encontrar quem testemunhe a prática de seus crimes, pois, a sociedade é atemorizada pela ação violenta de referidos grupos.
 
PARTE II

CONSTITUIÇÃO DE MILÍCIA PRIVADA

4.1. Distinção entre o crime de constituição de milícia privada e os crimes praticados por seus integrantes

Não é demais repisar que o crime de constituição de milícia não se confunde com os crimes que eventualmente essa entidade cometer, pois, somente o integrante ou “associado” que concorre, in concreto, isto é, que participa efetivamente da prática des
te ou daquele crime responde por ele, e, nessa hipótese, em concurso material com o previsto no art. 288-A. Os demais membros ou integrantes do grupo ou da milícia respondem somente por esse crime (constituição de milícia privada), ou, se for o caso, por aqueles crimes para os quais tenham efetivamente concorrido.

A situação é exatamente a mesma do crime de formação de quadrilha ou bando. Examinando esse tipo penal tivemos oportunidade de fazer a seguinte afirmação: “Convém deixar claro que uma coisa é associar-se para delinquir, de forma mais ou menos geral — formação de quadrilha —, outra, completamente diferente, é reunir-se, posteriormente, para a prática de determinado crime — concurso eventual de pessoas. Esta segunda ação — a prática de determinado crime — não depende, necessariamente, daquela primeira (formação de quadrilha). Essa é uma forma didática de demonstrar a quem tem dificuldade de perceber a diferença: na primeira hipótese, “associar-se” para delinquir, de forma indiscriminada, configura quadrilha ou bando; “reunir-se”, posteriormente, para a prática de determinado crime ou crimes configura o similar instituto concurso eventual de pessoas, que são coisas ontológica e juridicamente distintas” . Enfim, só responde por estes crimes aqueles integrantes da quadrilha que concorrem efetivamente para a sua prática.

Mutatis mutandis, ocorre o mesmo com a novel infração de constituição de milícia, que configura em si mesmo crime, consistindo na sua simples constituição com a finalidade de praticar algum crime previsto no Código Penal. Sendo, contudo, a finalidade dessa “associação” praticar outros crimes previstos na legislação extravagante, não tipificará esta novel infração, consequentemente, esses sujeitos responderão somente pelos crimes para os quais tenham concorrido. Não é outra a interpretação de Rogério Sanches, para quem tipifica-se “... a nova associação apenas quando tiver como finalidade a prática de crimes previstos no CP, não se cogita deste delito quando visar a prática de crimes estampados em legislação extravagante, sob pena de analogia incriminadora” . Com efeito, a prática de qualquer crime objeto da finalidade da “associação” (organização paramilitar, milícia particular, grupo ou esquadrão) não necessita da participação de todos, podendo, inclusive, ser praticado por um só ou apenas alguns dos seus integrantes. Pelo crime de constituição de milícias privada (art. 288-A) respondem todos os seus integrantes; no entanto, pelos crimes que esta (organização paramilitar, milícia particular) praticar responde somente quem deles tomar parte (concurso de pessoas): uma coisa é o crime de constituição de milícia privada, outra, completamente distinta, são os crimes que ela efetivamente pratica; por aquela, com efeito, respondem todos os seus membros, por estes, somente os agentes que efetivamente deles tomaram parte.

Por isso mesmo que o concurso material entre o crime de constituição de milícia privada e os crimes que seus membros praticam não representam um bis in idem. O crime praticado em concurso (material) não absorve nem exclui o de constituição de milícia, pela simples razão de que não é necessária a precedência deste para a prática daquele. Pela mesma razão, o simples fato de integrar uma determinada milícia privada ou organização paramilitar (ou grupo ou esquadrão) não implica a responsabilidade por todos os crimes que esta realiza: também nesses casos a responsabilidade continua sendo subjetiva e individual, isto é, cada um responde pelos fatos que praticar (direito penal do fato).

5. Tipo subjetivo: adequação típica

Elemento subjetivo é o dolo, representado pela vontade consciente de reunir-se para praticar crimes previstos no Código Penal, criando um vínculo associativo entre os participantes. É a vontade e a consciência dos diversos componentes reunirem-se em milícia privada (organização paramilitar, milícia particular, grupo ou esquadrão), de forma estável e permanente, para a prática de crimes definidos no Código Penal.

Em síntese, para que determinado indivíduo possa ser considerado sujeito ativo do crime de constituição de milícia privada, isto é, para que responda por essa infração penal é indispensável que tenha consciência de que participa de uma “reunião de pessoas” que tem a finalidade de praticar crimes previstos no Código Penal. É insuficiente que, objetivamente, tenha servido ou realizado alguma atividade que possa estar abrangida pelos objetivos criminosos do grupo. Não respondem por esse crime, por exemplo, eventuais “laranjas”, que desconhecem a existência ou finalidade da milícia privada, apenas emprestando o nome sem qualquer proveito pessoal, ou determinados empregados que apenas cumprem ordem de seus superiores. Pela mesma razão, essas pessoas que, na linguagem da teoria do domínio do fato, são meros executores e não autores do crime , tampouco podem ser consideradas para completar aquele número mínimo exigido (mais de três) como elementar da tipificação da milícia: falta-lhes o elemento subjetivo da ação de associar-se para a prática de crimes.

Exige-se, ademais, o elemento subjetivo especial do tipo, caracterizado pelo especial fim de constituir milícia privada com a finalidade de praticar qualquer dos crimes previstos neste Código, sob pena de não se implementar o tipo subjetivo, a exemplo do que se exige no crime de quadrilha ou bando. Convém destacar, por sua extraordinária importância dogmática, que esse fim especial do tipo é um fim coletivo, e, como tal, tem natureza objetiva, por isso, não se comunica, deve ser identificado individualmente para cada participante. Com efeito, o conhecimento dessa finalidade especial, por cada participante, é regido pelos princípios gerais da culpabilidade .

6. Consumação e tentativa

Consuma-se o crime com a simples constituição de milícia privada, isto é, com a mera associação de mais de três pes¬soas para a prática de crimes definidos no Código Penal, colocando em risco a paz pública É absolutamente desnecessária a prática de qualquer crime pelo grupo representativo da figura penal constituição de milícia privada, em qualquer de suas modalidades. Pune-se o simples fato de associar-se para a prática de crimes tipificados no Código Penal. A constituição de milícia privada pode, em outros termos, configurar-se, ter existência real e, a final, extinguir-se sem ter praticado nenhum delito, e mesmo assim ter tipificado essa figura penal. Contrariamente, no entanto, no concurso de pessoas (coautoria e participação), pune-se somente os concorrentes se concretizarem a prática de algum crime, tanto na forma tentada quanto na consumada.

Ademais, “tratando-se de um crime tipicamente estável e permanente, a consumação se protrai até a cessação do estado antijurídico”33 criado pela constituição de milícia privada.¬
A tentativa é absolutamente inadmissível, pois se trata de crime abstrato, de mera atividade. A impossibilidade de configurar-se a tentativa decorre do fato de tratar-se de meros atos preparatórios (uma exceção à impuni¬bilidade dos atos preparatórios), fase anterior ao “início da ação”, que é o elemento objetivo configurador da tentativa.

7. Classificação doutrinária

Trata-se de crime comum (aquele que pode ser praticado por qualquer pessoa, não requerendo qualidade ou condição especial); formal (não exige para sua consumação a produção de nenhum resultado naturalístico); de forma livre (pode ser praticado por qualquer meio que o agente escolher); comissivo (o verbo núcleo indica que somente pode ser cometido por ação); permanente (sua consumação alonga-se no tempo, dependente da atividade do agente, que pode ou não cessá-la ou interrompê-la quando quiser, não se confundindo, contudo, com crime de efeito permanente, pois neste a permanência é do resultado ou efeito (v. g., homicídio, furto etc.), e não depende da manutenção da atividade do agente; de perigo comum abstrato (perigo comum que coloca um número indeterminado de pessoas em perigo; abstrato é perigo presumido, não precisando colocar efetivamente alguém em perigo); plurissubjetivo (trata-se de crime de concurso necessário, isto é, aquele que por sua estrutura típica exige o concurso de mais de uma pessoa, no caso, mais de três) unissubsistente (crime cuja conduta não admite fracionamento).

8. A desproporcional cominação de penas e sua questionável constitucionalidade
Incompreensível e injustificadamente o legislador brasileiro restringe exageradamente a margem de discricionariedade do julgador para efetuar a adequada dosagem de pena ao fixar a pena mínima em quatro anos de reclusão e o máximo de oito. Na verdade, com essa postura abusiva e arbitrária do legislador praticamente inviabiliza a individualização judicial da pena, esquecendo que essa fase, compõe-se de três estágios, nos termos do art. 68 do Código Penal, quando devem ser analisadas as circunstâncias judiciais (art. 59), as circunstâncias legais (agravantes e atenuantes) e as majorantes e minorantes (causas de aumento e de diminuição de pena). Essa agressividade do legislador asfixiando o Juiz, retira-lhe a possibilidade de dosar a pena de acordo com os dados que envolvem cada caso concreto, com suas peculiaridades, além dos aspectos pessoais de cada participante do crime, viola a garantia constitucional da individualização judicial da pena (art. 5º, XLVI).

Ademais, no caso concreto, o legislador praticamente elimina a possibilidade de o julgador fixar livremente o regime de cumprimento, pois, qualquer ajuste na pena mínima (quatro anos) afasta de plano a possibilidade do regime aberto, bem como de substituição de penas, os quais, a rigor, deveriam ser disponibilizados ao julgador para bem poder aplicar a pena justa, necessária e suficiente a reprovação e prevenção do crime (art. 59, in fine).

O Poder Legislativo não pode atuar de maneira imoderada, nem formular regras legais cujo conteúdo revele deliberação absolutamente divorciada dos padrões de razoabilidade assegurados pelo nosso sistema constitucional, afrontando diretamente o princípio da proporcionalidade. Para Sternberg-Lieben , o princípio de proporcionalidade parte do pressuposto de que a liberdade constitucionalmente protegida do cidadão somente pode ser restringida em cumprimento do dever estatal de proteção imposto para a preservação da liberdade individual de outras pessoas. Essa concepção abrange tanto a proteção da liberdade individual, como a proteção dos demais bens jurídicos, cuja existência é necessária para o livre desenvolvimento da personalidade. Ademais, de acordo com o princípio de proporcionalidade, a restrição da liberdade individual não pode ser excessiva, mas compatível e proporcional à ofensa causada pelo comportamento humano criminoso. Sob essa configuração, o exercício legítimo do direito de punir, pelo Estado, deve estar fundamentado não apenas na proteção de bens jurídicos, mas na proteção proporcional de bens jurídicos, sob pena de violar o princípio constitucional da proporcionalidade.

Mas não basta a identificação de um bem jurídico a proteger, nem a demonstração de que esse bem jurídico foi, de alguma forma, afetado, para legitimar a resposta penal estatal. De acordo com princípio de proporcionalidade, enquanto limite do ius puniendis estatal, é necessário que: a) a intervenção do Estado seja idônea e necessária para alcançar o fim de proteção de bem jurídico, e b) que exista uma relação de adequação entre os meios, isto é, a ameaça, imposição e aplicação da pena, e o fim de proteção de bem jurídico .

Em matéria penal, mais especificamente, segundo Hassemer, a exigência de proporcionalidade deve ser determinada mediante “um juízo de ponderação entre a carga ‘coativa’ da pena e o fim perseguido pela cominação penal” . Com efeito, pelo princípio da proporcionalidade na relação entre crime e pena deve existir um equilíbrio — abstrato (legislador) e concreto (judicial) — entre a gravidade do injusto penal e a pena aplicada. Ainda segundo a doutrina de Hassemer, o princípio da proporcionalidade não é outra coisa senão “uma concordância material entre ação e reação, causa e consequência jurídico-penal, constituindo parte do postulado de Justiça: ninguém pode ser incomodado ou lesionado em seus direitos com medidas jurídicas desproporcionadas” .

Para Ferrajoli , as questões que devem ser resolvidas através desse princípio no âmbito penal podem ser subdividas em três grupos de problemas: em primeiro lugar, o da predeterminação por parte do legislador das condutas incriminadas e da medida mínima e máxima de pena cominada para cada tipo de injusto; em segundo lugar, o da determinação por parte do juiz da natureza e medida da pena a ser aplicada no caso concreto; e, em terceiro lugar, o da pós determinação da pena durante a fase de execução.

Quanto ao primeiro problema, isto é, o da proporcionalidade que deve existir entre o injusto tipificado e a medida da pena em abstrato, é evidente a desproporcionalidade da previsão legal constante do preceito secundário deste art. 288-A, sub examine. Com efeito, essa absurda aproximação entre o mínimo e o máximo, impede a adequada dosimetria judicial da pena. Não se pode esquecer que gravidade de uma conduta, tipificada, no mesmo dispositivo, pode apresentar grande variação, sendo, portanto, injustificável uma cominação mínima tão elevada, como no caso desse dispositivo legal.

Nelson Hungria , já na década de cinquenta do século passado, questionando a escala de cominação de pena privativa de liberdade, com mínimo de dois e máximo de quatro anos, concluiu: “Como se compreende que, não obstante a extensa gradação de gravidade da receptação, se cominasse uma pena que, praticamente, não permite individualização, tal a aproximação entre o seu elevado mínimo e o seu máximo? Será, porventura, que se deva punir com a mesma severidade o receptador primário e o habitual, o que recepta um paletó usado e o que recepta um solitário de Cr$ 100.000,00?”. Na mesma linha, Nilo Batista recordando essa passagem de Hungria, também questiona a constitucionalidade do “engessamento” do julgador, in verbis: “A constitucionalização do princípio da individualização da pena questiona, hoje mais fundamentadamente do que ao tempo em que Hungria levantava a questão, essas escalas penais em que o patamar mínimo representa a metade do máximo, e o juiz se converte num refém das fantasias prevencionistas do legislador, que passa a ser uma espécie de “juiz oculto” por ocasião da individualização judicial, usurpando previamente à magistratura sua indelegável tarefa” .

9. Pena e ação penal

A pena cominada, isoladamente, é a de reclusão, de quatro a oito anos. Não há previsão de pena pecuniária. A ação penal é pública incondicionada, não dependendo, por conseguinte, de qualquer manifestação de vontade da vítima ou de seu representante legal.
 
*Doutor em Direito Penal (Universidade de Sevilha, Espanha). Advogado e Professor Universitário.
 
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