sexta-feira, 3 de maio de 2013

PODE(RIA) O JUIZ CONDENAR QUANDO O MP PEDIR A ABSOLVIÇÃO ?


*Aury Lopes Jr.




O Eterno Retorno ao Estudo do Objeto do Processo Penal e a Necessária Conformidade Constitucional. A Violação da Regra da Correlação.



Questão recorrente ao se tratar da sentença penal condenatória é o disposto no art. 385 do CPP:

Art. 385. Nos crimes de ação pública, o juiz poderá proferir sentença condenatória, ainda que o Ministério Público tenha opinado pela absolvição, bem como reconhecer agravantes, embora nenhuma tenha sido alegada.
Partindo da construção dogmática do objeto do processo penal, com GOLDSCHMIDT, verificamos que (nos crimes de ação penal de iniciativa pública) o Estado realiza dois direitos distintos (acusar e punir) através de dois órgãos diferentes (Ministério Público e Julgador). Essa duplicidade do Estado (como acusador e julgador) é uma imposição do sistema acusatório (separação das tarefas de acusar e julgar).

O Ministério Público é o titular da pretensão acusatória, e, sem o seu pleno exercício, não se abre a possibilidade de o Estado exercer o poder de punir, visto que se trata de um poder condicionado. O poder punitivo estatal está condicionado à invocação feita pelo MP através do exercício da pretensão acusatória. Logo, o pedido de absolvição equivale ao não exercício da pretensão acusatória, isto é, o acusador está abrindo mão de proceder contra alguém. 

Como consequência, não pode o juiz condenar, sob pena de exercer o poder punitivo sem a necessária invocação, no mais claro retrocesso ao modelo inquisitivo. Onde fica o ne procedat iudex ex officio ?

Então, recordando que GOLDSCHMIDT afirma que o poder judicial de condenar o culpado é um direito potestativo, no sentido de que necessita de uma sentença condenatória para que se possa aplicar a pena e, mais do que isso, é um poder condicionado à existência de uma acusação. Essa construção é inexorável, se realmente se quer efetivar o projeto acusatório da Constituição. Significa dizer: aqui está um elemento fundante do sistema acusatório. 

Portanto, viola o sistema acusatório constitucional a regra prevista no art. 385 do CPP, que prevê a possibilidade de o Juiz condenar ainda que o Ministério Público peça a absolvição. Também representa uma clara violação do Princípio da Necessidade do Processo Penal, fazendo com que a punição não esteja legitimada pela prévia e integral acusação, ou, melhor ainda, pleno exercício da pretensão acusatória.

Ademais, aponta PRADO, há violação da garantia do contraditório, pois esse direito fundamental é imperativo para validade da sentença. Como o juiz “não pode fundamentar sua decisão condenatória em provas ou argumentos que não tenham sido objeto de contraditório, é nula a sentença condenatória proferida quando a acusação opina pela absolvição. O fundamento da nulidade é a violação do contraditório (artigo 5º, inciso LV, da Constituição da República)” (grifo nosso).

Igualmente grave – e nula a sentença – é a previsão feita na última parte do art. 385 do CPP: poderá o juiz reconhecer agravantes, embora nenhuma tenha sido alegada na acusação. Aqui, sequer invocação existe. Menos ainda exercício integral da pretensão acusatória para legitimar a punição. Pior ainda, está o juiz, literalmente, acusando de ofício para poder, ele mesmo, condenar. Ferido de morte está, ainda, o princípio constitucional do contraditório, art. 5º, LV, da Constituição da República. 

Além disso, avocará um poder que ele, juiz, não tem e não deve ter. Ferido de morte está o sistema acusatório. Violado, ainda, o princípio supremo do processo: a imparcialidade. Como consequência, fulminados estão a estrutura dialética do processo, a igualdade das partes, o contraditório etc.

Tampouco se pode defender o art. 385 invocando a mitológica verdade real, que já foi por nós suficientemente desconstruída, sendo desnecessário repetir os argumentos.

Dificilmente essa matéria é levada à discussão nos tribunais brasileiros e, mais raro ainda, é que tratem da problemática de forma adequada, ou seja, para além do reducionismo do “está na lei e basta”... Daí por que é louvável a decisão proferida pela 5ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, no RSE n. 1.0024.05.7025769/001, Rel. Des. Alexandre Victor de Carvalho, publicada em 27/10/2009:

EMENTA: RECURSO EM SENTIDO ESTRITO – PRONÚNCIA – ABSOLVIÇÃO DOS RÉUS DECRETADA – PEDIDO DE ABSOLVIÇÃO APRESENTADO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO EM ALEGAÇÕES FINAIS – VINCULAÇÃO DO JULGADOR – SISTEMA ACUSATÓRIO. 
I – Deve ser decretada a absolvição quando, em alegações finais do Ministério Público, houver pedido nesse sentido, pois, neste caso, haveria ausência de pretensão acusatória a ser eventualmente acolhida pelo julgador. 
II – O sistema acusatório sustentase no princípio dialético que rege um processo de sujeitos cujas funções são absolutamente distintas, a de julgamento, de acusação e a de defesa. O juiz, terceiro imparcial, é inerte diante da atuação acusatória, bem como se afasta da gestão das provas, que está cargo das partes. O desenvolvimento da jurisdição depende da atuação do acusador, que a invoca, e só se realiza validade diante da atuação do defensor. 
III – Afirmase que, se o juiz condena mesmo diante do pedido de absolvição elaborado pelo Ministério Público em alegações finais está, seguramente, atuando sem necessária provocação, portanto, confundindose com a figura do acusador, e ainda, decidindo sem o cumprimento do contraditório. 
IV – A vinculação do julgador ao pedido de absolvição feito em alegações finais pelo Ministério Público é decorrência do sistema acusatório, preservando a separação entre as funções, enquanto que a possibilidade de condenação mesmo diante do espaço vazio deixado pelo acusador, caracteriza o julgador inquisidor, cujo convencimento não está limitado pelo contraditório, ao contrário, é decididamente parcial ao ponto de substituir o órgão acusador, fazendo subsistir uma pretensão abandonada pelo Ministério Público. 

A decisão analisou com rara sabedoria o problema, calcando, com acerto, no trinômio pretensão acusatória – sistema acusatório – contraditório, na mesma linha da fundamentação anteriormente exposta.

Dessa forma, pedida a absolvição pelo Ministério Público, necessariamente a sentença deve ser absolutória, pois na verdade o acusador está deixando de exercer sua pretensão acusatória, impossibilitando assim a efetivação do poder (condicionado) de penar. 

Por último, a sentença que condena o réu e, de ofício, inclui agravantes não alegadas pelo Ministério Público, é nula, por incongruente. 

Além de violar o sistema acusatório, o contraditório e o direito de defesa, a aplicação do art. 385 é absolutamente incompatível com a pretensão acusatória, objeto do processo penal. Está ainda, em linha de colidência com o disposto no art. 41 do CPP, que, como vimos, determina que a denúncia deverá conter a exposição do fato criminoso com todas as suas circunstâncias. E o que são agravantes se não “circunstâncias” do delito ? 

Como se verá na continuação, a sentença que reconhece agravantes não alegadas pelo Ministério Público é extra petita, pois se descola da imputação para ir – de ofício – além da acusação, violando, numa só tacada, as regras da correlação, do contraditório e do sistema acusatório. Ademais, constitui uma modificação indevida do objeto do processo penal.

Diante da inércia da jurisdição – crucial para o sistema acusatório e a garantia da imparcialidade – decorrente do ne procedat iudex ex officio, não pode o juiz prover sem que haja um pedido e, como consequência, daí decorre outro princípio: o juiz não pode prover diversamente do que lhe foi pedido. A inclusão por parte do juiz de agravantes que não estavam na imputação representa uma indevida modificação no fato processual.

Portanto, inaplicável o art. 385 do CPP e, quando utilizado, conduz a uma grave nulidade da sentença.


Doutor em Direito Processual Penal pela Universidad Complutense de Madrid


FONTE: Perfil do Autor no Facebook