sexta-feira, 21 de novembro de 2014

UMA HOMENAGEM A JOSÉ FREDERICO MARQUES

Foto: José Frederico Maques


Da série homenagens a renomados juristas do passado, neste post trazemos a biografia do homenageado, processualista penal, Prof. e Desembargador José Frederico Marques, afinal recordar é viver.


"Profundo conhecedor do direito material e, principalmente, processual, Frederico Marques obteve grande destaque dentre os juristas brasileiros do século XX. Sua extensa obra permite que seu conhecimento influencie a doutrina brasileira até os dias de hoje.



Nascido na cidade litorânea de Santos, em 14 de fevereiro de 1912, Frederico Marques é filho de Frederico José Marques, Conselheiro do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, e Nancy Novais Marques. Contudo, é na cidade de Batatais que ele passa toda a sua infância. Segundo relatos, suas lembranças dessa cidade do interior paulista são as melhores possíveis.



Em 1922, entretanto, muda-se para a capital de São Paulo, a fim de prosseguir seus estudos ginasiais no Colégio Arquidiocesano, concluindo-os em 1928. No ano de 1929, ingressa na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, onde seu pai e seu tio também tinham estudado. Durante a graduação, dedica-se também ao jornalismo, sendo diretor do jornal universitário “A Balança”. Sua colação de grau em Ciências Jurídicas e Sociais (nome do curso na época) é no dia 5 de janeiro de 1933. Em seguida, retorna a Batatais, fundando escritório de advocacia. Simultaneamente, exerce também as funções de Inspetor Federal do Ensino Secundário junto ao Ginásio São José da cidade e de diretor do jornal “A Folha de Batatais”. Casa-se na cidade de Ribeirão Preto, com Maria do Carmo Ribeiro Meirelles, em 16 de dezembro de 1936.



Seu grande destaque profissional é a carreira na magistratura. Em 1937, presta três concursos para ingresso à magistratura em São Paulo. Assim, em 1938, é nomeado juiz substituto de Penápolis. Já em abril do mesmo ano, é removido para São José do Rio Pardo e, em janeiro de 1939, Campinas. Em seguida, em maio de 1940, é promovido para a primeira entrância, como juiz adjunto de Ribeirão Preto. Já em dezembro de 1944, chega à segunda entrância, em Avaré, sendo, em março de 1945, transferido para a comarca de Jacareí. Em 1948, Frederico Marques é transferido para a capital do Estado. Assim, torna-se, em fevereiro, juiz auxiliar da Vara da Fazenda Estadual e, em dezembro, promovido para a terceira entrância, como juiz substituto da capital (7ª e 16ª Varas Cíveis).



Sua carreira acadêmica tem início em 1950, quando começa a lecionar na Faculdade Paulista de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Em maio de 1953, Frederico Marques torna-se professor catedrático de Direito Judiciário Civil da mesma faculdade. Completando sua titulação como grande processualista, presta concurso de livre-docência para Direito Judiciário Penal na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), não se tornando, contudo, professor no Largo de São Francisco.



Avançando na magistratura, em junho de 1953, Frederico Marques é promovido como substituto no então Tribunal de Alçada. No mesmo ano, em setembro, é nomeado também como substituto no Tribunal de Justiça. Já em dezembro de 1954, torna-se juiz do Tribunal de Alçada, o mais jovem de seu tempo, com apenas 42 anos de idade. Do mesmo modo, torna-se depois o mais jovem desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, com 46 anos de idade.



Ainda como juiz de Tribunal de Alçada, entretanto, em 1956, é escolhido, ao lado de Vicente Rao, Mário Masagão, Cândido Motta Filho e Washington de Barros Monteiro, para formar uma lista apresentada pelo entãogovernador Jânio Quadros, para o preenchimento da vaga aberta no Supremo Tribunal Federal, com a aposentadoria do ministro Mário Guimarães.



Em 1958, juntamente com Luís Eulálio de Bueno Vidigal, Alfredo Buzaid e Galeno Lacerda funda o Instituto Brasileiro de Direito Processual Civil. Frederico Marques aposenta-se em outubro de 1962 como desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Em 1972, recusa convite feito pelo então ministro da Justiça, Alfredo Buzaid, para ocupar a vaga aberta no Supremo Tribunal Federal pela aposentadoria do ministro Moacyr Amaral Santos. Sua ligação com o ministro é forte: em seguida, faz parte da comissão revisora do anteprojeto elaborado por Buzaid para Código de Processo Civil (o nosso atual CPC de 1973).



Sua carreira é reconhecida por diversos prêmios: em 1979, recebe a medalha “Teixeira de Freitas”, pelo Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB). Já em 1982, em homenagem aos seus setenta anos, é publicado o livro “Estudos de Direito em homenagem a José Frederico Marques”, promovido pela Ordem dos Advogados do Brasil da seção de São Paulo. Frederico Marques falece em São Paulo, no dia 28 de janeiro de 1993.



A grandeza da obra de Frederico Marques para o direito brasileiro é inegável. Sua atuação como magistrado no Estado de São Paulo, bem como sua carreira acadêmica são notáveis. Mas é o número de seus escritos que se destacam. Podem ser citados, dentre outros: “Da competência penal” (1953), “Curso de direito penal” (3 vols., 1956), “Ensaio sobre a jurisdição voluntária” (1959), “Tratado de direito penal” (4 vols., 1961), “Instituições de direito processual civil” (5 vols., 1958), “Estudos de direito processual penal” (1960), “Instituições de direito processual penal” (4 vols, 1961) e “Tratado de direito processual penal” (2 vols. 1980). Sua escrita era fácil e de grande qualidade, características típicas dos grandes juristas."


FONTE: http://www.cartaforense.com.br/conteudo/colunas/frederico-marques-magistrado-e-academico/12368

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

UMA HOMENAGEM A NELSON HUNGRIA


Nelson Hungria Hoffbauer
           

Ao longo da história, o critério de escolha de Ministros do Supremo Tribunal Federal tem sofrido uma metamorfose com o político se sobrepondo ao jurídico. Embora se saiba que o Poder Judiciário é um poder político como os demais que compõem a República Federativa do Brasil, o notável saber jurídico que alimenta o critério técnico, no caso do Supremo Tribunal Federal, há de se sobrepor ao político naquele que tem uma especial missão de ser o guardião da Constituição.
Carente na atualidade de um ministro de notável saber jurídico-penal, reclama-se a necessidade de se nomear para o Supremo Tribunal Federal um renomado penalista para se fazer jus à própria história desse Órgão máximo do Poder Judiciário, alguém que possa contribuir para esse resgate histórico, que possa atuar na vanguarda da tutela dos direitos humanos fundamentais na seara penal e processual penal.
Nesse sentido, resolvemos HOMENAGEAR quem com altivez já foi Ministro do STF, representou e foi referência de todos os penalistas de uma geração que marcou a história do próprio Direito Penal pátrio, trazendo a sua biografia para amplo conhecimento.
NELSON HUNGRIA HOFFBAUER nasceu a 16 de maio de 1891, no Município de Além Paraíba, Estado de Minas Gerais. Era filho de Alberto Teixeira de Carvalho Hungria e de D. Anna Paula Domingues Hungria.

Fez o curso primário no Colégio Cassão, em Belo Horizonte, o secundário no mesmo estabelecimento, no Colégio Azevedo, em Sabará, e no Ginásio Nogueira da Gama, em Jacareí, Estado de São Paulo. Realizou o curso de Direito da Faculdade Livre de Direito do Rio de Janeiro.

Iniciou a vida pública como Promotor Público em Pomba, Estado de Minas Gerais; foi Redator de Debates na Câmara dos Deputados de Minas Gerais e Delegado de Polícia no antigo Distrito Federal.

Ingressou na Magistratura como Juiz da 8º Pretoria Criminal do antigo Distrito Federal, nomeado por decreto de 12 de novembro de 1924. Serviu posteriormente como Juiz de Órfãos e da Vara dos Feitos da Fazenda Pública. Ascendendo ao cargo de Desembargador, em 1944, exerceu as funções de Corregedor.

Nomeado Ministro do Supremo Tribunal Federal, por decreto de 29 de maio de 1951, pelo Presidente Getúlio Vargas, para a vaga decorrente da aposentadoria do Ministro Annibal Freire da Fonseca, tomou posse em 4 de junho do mesmo ano.

Integrou, como membro substituto (25 de julho de 1955) e efetivo (23 de janeiro de 1957), o Tribunal Superior Eleitoral, tendo ocupado a presidência do órgão, no período de 9 de setembro de 1959 a 22 de janeiro de 1961.

Mediante concurso, obteve a livre docência da cadeira de Direito Penal da Faculdade Nacional de Direito. Participou da elaboração do Código Penal, do Código de Processo Penal, da Lei das Contravenções Penais e da Lei de Economia Popular.

Escreveu inúmeras obras sobre direito penal, destacando-se: Fraude Penal e Legítima Defesa Putativa — teses destinadas à conquista da cátedra universitária — Estudos sobre a Parte Especial do Código Penal de 1890; Crimes contra a Economia Popular; Questões Jurídico-Penais; Novas Questões Jurídico-Penais; Comentários ao Código Penal (8 volumes) e ainda Cultura, Religião e Direito; O Sermão da Montanha e A Obrigação Absoluta no Direito Cambiário.

Participou ativamente de congressos nacionais e internacionais, dentre os últimos, o 2º Congresso Latino-Americano (Santiago — Chile, 1947); 3º Congresso Latino-Americano de Criminologia (1949) e Jornadas Penales (Buenos Aires — Argentina, 1960).

Foi agraciado com a Medalha Rui Barbosa, Medalha do Rio Branco, Medalha do Sesquicentenário do Superior Tribunal Militar, Medalha Teixeira de Freitas, Comenda do Mérito do Ministério Público e o prêmio Teixeira de Freitas, outorgado em 1958, pelo Instituto dos Advogados Brasileiros, pela obra Comentários ao Código Penal.

Aposentado por decreto de 11 de abril de 1961, despediu-se da Corte na sessão de 12 do mesmo mês, quando proferiu discurso, com a presença do Presidente da República, Dr. Jânio Quadros. Foi saudado, em nome do Tribunal, pelo Ministro Ary Franco, falando pela Procuradoria-Geral da República o Dr. Joaquim Canuto Mendes de Almeida; pela Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Distrito Federal, o Dr. Leopoldo Cesar de Miranda Lima; pela Ordem dos Advogados do Brasil, Seção de São Paulo o Dr. Eloy Franco de Oliveira; pelo Instituto dos Advogados Brasileiros o Dr. Ruy Nunes Pereira e pelos advogados criminalistas do então Estado da Guanabara, o Dr. Evandro Lins e Silva. Após a aposentadoria dedicou-se às atividades advocatícias.

Faleceu em 26 de março de 1969, na cidade do Rio de Janeiro, sendo homenageado pelo Supremo Tribunal Federal em sessão da mesma data, falando pela Corte o Ministro Luiz Gallotti; pela Procuradoria-Geral da República, o Dr. Décio Miranda e, pela Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Distrito Federal, o Dr. Antonio Carlos Osório.

Era casado com D. Isabel Maria Machado Hungria Hoffbauer.

O centenário de nascimento foi comemorado, em sessão de 16 de maio de 1991, quando falou pela Corte o Ministro Sepúlveda Pertence, pelo Ministério Público Federal, o Dr. Affonso Henriques Prates Correia, Procurador-Geral da República em exercício, e pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, o Prof. René Ariel Dotti.
FONTE: http://www.stf.jus.br/portal/ministro/verMinistro.asp?periodo=stf&id=133

sábado, 8 de novembro de 2014


UMA SÍNTESE PANORÂMICA DO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL


* Cezar Roberto Bitencourt

Uma síntese panorâmica do Tribunal Penal Internacional


1. A necessidade de um Tribunal Penal internacional

Vêm de longa data os esforços dos povos para a criação de uma Justiça supranacional, cuja competência não ficasse restrita aos limites territoriais das respectivas soberanias, para julgar crimes que atentem contra a humanidade e a ordem internacional. Na narrativa histórica de Jescheck , os primeiros passos em direção à formalização da persecução penal internacional estão intimamente relacionados com os acontecimentos que desestabilizaram a paz mundial ao longo do século XX. O primeiro exemplo de tentativa de criação de uma instância judicial internacional em matéria penal remonta ao final da 1ª Guerra Mundial, levando à posterior proposição de um Tribunal Internacional para a repressão do terrorismo, que nunca chegou a ser ratificado, fracassando com o advento da 2ª Guerra Mundial. Outra tentativa ocorreu com o final da 2ª Guerra Mundial, quando as quatro principais potências vencedoras — França, Inglaterra, Estados Unidos e União Soviética — decidiram punir os principais responsáveis pelos crimes contra a paz, os crimes de guerra e os crimes contra a humanidade, instituindo um Tribunal Militar Internacional que seria competente para o processo e o julgamento desses crimes. Essa decisão foi formalizada na Carta de Londres, também conhecida como Estatuto de Londres do Tribunal Militar Internacional, publicada em 8 de agosto de 1944.

Apesar de as regras contidas na Carta de Londres em matéria penal e processual penal terem sido inicialmente estabelecidas para os processos contra os líderes da Alemanha nazista, os conhecidos processos de Nuremberg, essas mesmas regras foram também aplicadas na persecução penal de crimes praticados no Japão. As decisões tomadas nos juízos de Nuremberg foram reconhecidas por meio do voto unânime da Assembleia Geral da ONU em 11-12-1946. A partir daí, a Carta de Londres serviu de base aos posteriores Tribunais Militares Internacionais instituídos pela ONU, como ocorreu com a extinta Iugoslávia (Resolução da ONU n. 827/1993), para julgamento dos crimes de genocídio, de lesa­ majestade e crimes de guerra; e em Ruanda (Resolução da ONU n. 955/1994), para o julgamento de delitos similares .

O grande problema, nessa época, como ressalta Jescheck , era que os delitos perseguidos eram processados e julgados com total parcialidade, ou seja, pelos próprios vencedores, pelos tribunais ad hoc, soluções que desatenderam às garantias mínimas e necessárias para todo e qualquer procedimento penal. Com efeito, como garantir a presunção de inocência do acusado, quando os membros do tribunal são designados diretamente pelos países vencedores do conflito bélico que é objeto de julgamento? Como garantir a devida segurança jurídica quando tanto o tribunal como o procedimento que este há de seguir são instituídos para julgar somente os vencidos e nunca os vencedores? Sempre houve, portanto, grande e procedente oposição à criação de Tribunais Especiais para julgar situações específicas, como ocorreu nos casos que acabamos de mencionar, pois foram criadas, a posteriori, as regras para julgamento de fatos passados, violando flagrantemente o princípio de legalidade.

Com o fortalecimento dos organismos internacionais, particularmente da Organização das Nações Unidas (ONU), os ideais de justiça universal ganharam contornos mais definidos, ante o reconhecimento da gravidade de determinados delitos internacionais e a necessidade premente de encontrar-se instrumento legal capaz de combatê-los com a eficácia desejada, evitando-se, ao mesmo tempo, os condenados Juízos ou Tribunais de Exceção. O passo indispensável na evolução do processo de internacionalização do Direito Penal destinou-se, portanto, à criação de um Tribunal Penal Internacional, permanente e imparcial, capaz de levar a cabo, sem vínculos político-ideológicos comprometedores, a tarefa de distribuição de uma justiça material internacional. 

Com efeito, não se ignora a cada vez mais frequente grande ocorrência de um sem-número de atrocidades contra a humanidade, em diversas partes do mundo, principalmente, como destaca Paulo César Busato, “sob o emprego de aparatos estatais, que permanecem sem resposta por falta de interesse interno do próprio Estado em responsabilizar penalmente as ações de seus mandatários” . A repetição de situações como essas aumentaram a necessidade e conveniência da criação de um Tribunal Penal Internacional permanente, especialmente com as grandes transformações produzidas pela globalização e os reflexos que tais mudanças produzem no âmbito do Direito Penal. Atendendo a esses auspícios, a Conferência Diplomática, convocada pela ONU (Roma), aprovou, em 17 de julho de 1998, com o voto favorável de 120 representantes de Estados, o Estatuto do Tribunal Penal Internacional, que ficou conhecido como o Estatuto de Roma . Essa iniciativa “representou — como reconhece Régis Prado — o ápice de um longo e árduo processo em busca da consolidação de uma justiça criminal supranacional, com competência para processar e julgar os autores (pessoas físicas) de delitos graves e caráter internacional, isto é, que extrapolam as fronteiras dos Estados e versam sobre bens jurídicos universais, próprios da humanidade e de toda a comunidade internacional (v. g., crimes de genocídio, lesa-majestade, de guerra e agressão — art. 5º do Estatuto)”.

Por fim, resta registrar os termos da integração do Estatuto de Roma ao nosso ordenamento jurídico. O Estatuto de Roma foi assinado pelo Brasil em 7 de fevereiro de 2000, ratificado por meio do Decreto Legislativo n. 112, de 6 de junho de 2002, e, finalmente, promulgado no Brasil por meio do Decreto do Executivo n. 4.388, de 25 de setembro de 2002. A integração do Estatuto de Roma ao nosso ordenamento jurídico encontra amparo no § 4º do art. 5º da Constituição Federal, que reconhece o caráter supranacional do Tribunal Penal Internacional. De acordo com o § 4º, o Brasil “se submete à Jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão”. 

É necessário, contudo, matizar que o exercício da jurisdição da Corte Supranacional está submetido ao princípio da complementariedade, nos termos do art. 1º do Estatuto de Roma. Isso significa que os organismos de justiça penal internacional e os respectivos mecanismos de cooperação penal internacional, mencionados no Estatuto de Roma para a persecução penal, somente deverão atuar quando um Estado nacional não promover a investigação e a persecução dos crimes de competência do Tribunal Penal Internacional, praticados em seu território ou por seus nacionais. Como reconhece expressamente o STF a respeito, a jurisdição do Tribunal Internacional é adicional e complementar à do Estado, ficando, pois, condicionada à incapacidade ou à omissão do sistema judicial interno. O Estado brasileiro tem, assim, o dever de exercer em primeiro lugar sua jurisdição penal contra os responsáveis por crimes de genocídio, contra a humanidade, crimes de guerra e os crimes de agressão, assumindo a comunidade internacional a responsabilidade subsidiária, no caso de omissão ou incapacidade daquela . 

Além disso, existe uma série de aspectos que devem ser levados em consideração para uma adequada compatibilização das normas contidas no Estatuto de Roma, tanto com os direitos e garantias expressos na nossa Constituição como com os reconhecidos em tratados e convenções internacionais aprovados pelo Congresso Nacional, com força de emenda constitucional (§ 3º do art. 5º da CF 1988, acrescentado pela EC n. 45/2004).

Segundo Valério Mazzuoli , a “cláusula aberta no § 2º do art. 5º da Carta de 1988 sempre admitiu o ingresso dos Tratados internacionais de proteção dos direitos humanos no mesmo grau hierárquico das normas constitucionais. Portanto, segundo sempre defendemos, o fato de esses direitos se encontrarem em tratados internacionais jamais impediu a sua caracterização como direitos de status constitucional”. Essa disposição constitucional recebeu um complemento um tanto contraditório com a Emenda Constitucional n. 45, de 8 de dezembro de 2004, que acrescentou o § 3º ao art. 5º da Constituição, com a seguinte redação: “Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”. Atendido esse requisito procedimental, a norma internacional passa a integrar o nosso Direito interno e, como tal, também será abrangida pela análise acerca da compatibilidade das normas do Estatuto de Roma com os direitos e garantias constitucionais, especialmente as cláusulas pétreas.

Essa temática é objeto de acalorado debate do qual fazem parte a doutrina internacional, a doutrina nacional e o próprio STF. Como manifestou o Ministro Celso de Mello “cabe assinalar que se registram algumas dúvidas em torno da suficiência, ou não, da cláusula inscrita no § 4º do art. 5º da Constituição, para efeito de se considerarem integralmente recebidas, por nosso sistema constitucional, todas as disposições constantes do Estatuto de Roma, especialmente se se examinarem tais dispositivos convencionais em face das cláusulas que impõem limitações materiais ao poder reformador do Congresso Nacional (CF, art. 60, § 4º)” (Pet. 4.625). 

Certamente não temos o propósito de realizar um exame detalhado dos problemas que suscita a recepção das normas do Estatuto de Roma, somente indicaremos na seguinte epígrafe aqueles aspectos que consideramos de maior interesse, na medida em que representam uma clara afronta a determinadas garantias reconhecidas pela nossa Constituição, especialmente aquelas definidas como cláusulas pétreas (art. 60, § 4º).


2. Tribunal Penal Internacional, prisão perpétua e o princípio de humanidade

Não se questiona a necessidade de o Direito Penal manter-se ligado às mudanças sociais, respondendo adequadamente às interrogações de hoje, sem retroceder ao dogmatismo hermético de ontem. Quando a sua intervenção se justificar, deve responder eficazmente. A questão decisiva, porém, será: de quanto de sua tradição e de suas garantias o Direito Penal deverá abrir mão a fim de manter essa atualidade? Na verdade, o Direito Penal não pode — a nenhum título e sob nenhum pretexto — abrir mão das conquistas históricas consubstanciadas nas garantias fundamentais referidas ao longo deste trabalho. Efetivamente, um Estado que se quer Democrático de Direito é incompatível com um Direito Penal funcional, que ignore as liberdades e garantais fundamentais do cidadão, asseguradas pela Constituição Federal. Aliás, a própria Constituição adota a responsabilidade penal subjetiva e consagra a presunção de inocência, o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa, preservando, inclusive, a dignidade humana (art. 5º, III, da CF). Ademais, a Carta Magna brasileira proíbe expressamente as sanções perpétuas, capitais, cruéis e degradantes (art. 5º, XLVII) e elevou essas garantias à condição de cláusulas pétreas (art. 60, § 4º, IV). Em outros termos, referidas garantias não podem ser suprimidas ou revistas, nem mesmo através de emendas constitucionais.

Enfim, a pena de morte e a prisão perpétua são expressamente proibidas pela nossa Lei Maior, ressalvando, somente, a pena de morte, para a hipótese de guerra declarada (arts. 5º, XLVII, a, e 84, XIX). Simplificando, a pena de prisão perpétua — que não recebe a mesma ressalva conferida à pena de morte — não pode ser instituída no Brasil, quer através de Tratados Internacionais, quer através de Emendas Constitucionais.

Por outro lado, não se pode ignorar que o Tribunal Penal Internacional (TPI), considerando-se o contexto internacional, representa uma grande conquista da civilização contemporânea, na medida em que disciplina os conflitos internacionais, limita as sanções penais e define as respectivas competências. Se já existisse referido Tribunal Penal, certamente, o episódio Pinochet não teria o espectro que adquiriu. A previsão excepcional da pena de prisão perpétua, pelo referido estatuto internacional, não o desqualifica nem o caracteriza como desumano ou antiético, por duas razões fundamentais: a) de um lado, porque teve, acima de tudo, o objetivo de evitar que, para os mesmos crimes, se cominasse a pena de morte; b) de outro lado, porque a prisão perpétua ficou circunscrita aos denominados crimes de genocídio, crimes de guerra, crimes contra a humanidade e de agressão.

No entanto, considerando sua função humanizadora e pacificadora das relações internacionais, especialmente para aqueles países que adotam a pena de morte (que não é o caso do Brasil), o TPI é uma instituição que precisa e deve ser prestigiada, reconhecida e acatada por todos os países democráticos, inclusive pelo Brasil. No entanto, por ora, não passa de um sonho a acalentar, uma visão romântica da Justiça Universal, posto que, nos termos em que se encontra — adotando a pena de prisão perpétua —, exigiria a reforma de dezenas de constituições de países democráticos, caracterizando retrocessos que negariam todas as conquistas iluministas. Assim, será mais fácil revisar o Estatuto de Roma do que pretender a revisão de tantas constituições espalhadas pelo mundo, permitindo, por exemplo, a adesão ao Tribunal Internacional, com ressalvas.

O princípio de humanidade do Direito Penal é o maior entrave para a adoção da pena capital e da prisão perpétua, dificultando sobremodo a legitimação constitucional da ratificação do Brasil ao Tribunal Penal Internacional que, entre suas sanções, prescreve a pena de prisão perpétua, proscrita pela Constituição Federal (art. 5º, XLVII, b). Esse princípio sustenta que o poder punitivo estatal não pode aplicar sanções que atinjam a dignidade da pessoa humana ou que lesionem a constituição físico-psíquica dos condenados. A proscrição de penas cruéis e infamantes, a proibição de tortura e maus-tratos nos interrogatórios policiais e a obrigação imposta ao Estado de dotar sua infraestrutura carcerária de meios e recursos que impeçam a degradação e a dessocialização dos condenados são corolários do princípio de humanidade, que não se compatibiliza com penas perpétuas. Segundo Zaffaroni , esse princípio determina “a inconstitucionalidade de qualquer pena ou consequência do delito que crie uma deficiência física (morte, amputação, castração ou esterilização, intervenção neurológica etc.), como também qualquer consequência jurídica inapagável do delito”. O princípio de humanidade — afirma Bustos Ramirez — recomenda que seja reinterpretado o que se pretende com “reeducação e reinserção social”, posto que se forem determinados coativamente implicarão atentado contra a pessoa como ser social. Um sistema penal — repetindo — somente estará justificado quando a soma das violências — crimes, vinganças e punições arbitrárias — que ele pode prevenir for superior à das violências constituídas pelas penas que cominar. É, enfim, indispensável que os direitos fundamentais do cidadão sejam considerados indisponíveis, afastados da livre disposição do Estado, que, além de respeitá-los, deve garanti-los.

Enfim, nenhuma pena privativa de liberdade pode ter uma finalidade que atente contra a incolumidade da pessoa como ser social, como ocorre, evidentemente, com a pena de prisão perpétua. Por outro lado, não estamos convencidos de que o Direito Penal, que se fundamenta na culpabilidade, seja instrumento eficiente para combater a criminalidade moderna e, particularmente, a criminalidade internacional. A insistência de governantes em utilizar o Direito Penal como panaceia de todos os males não resolverá a insegurança de que é tomada a população, e o máximo que se conseguirá será destruir o Direito Penal, se forem eliminados seus princípios fundamentais. Por isso, a sugestão de Hassemer, de criação de um Direito de Intervenção, para o combate da criminalidade moderna e, especialmente, da criminalidade contra a humanidade, merece, no mínimo, profunda reflexão.

Por derradeiro, considerando a importância que assume o Tribunal Penal Internacional, a despeito de nossas restrições, as quais se limitam à admissão da prisão perpétua, sugerimos alguns bons autores sobre esse tema, tais como Kai Ambos, Valério de Oliveira Mazzuoli, Carlos Eduardo Adriano Japiassu, Paulo César Busato, dentre outros .


*Doutor em Direito Penal pela Universidade de Sevilha na Espanha. Advogado.


FONTE: https://www.facebook.com/cezarroberto.bitencourt/posts/873277002682703