sábado, 17 de janeiro de 2015

IMPUTABILIDADE E INIMPUTABILIDADE PENAL

* Cezar Roberto Bitencourt


IMPUTABILIDADE E INIMPUTABILIDADE PENAL


1. Inimputabilidade e culpabilidade diminuída

1.1. Imputabilidade e sistemas adotados

O velho Carrara nos dava uma definição ampla sobre imputabilidade, associada à clássica noção de imputatio factis e imputatio iuris, afirmando que: “A imputabilidade é o juízo que fazemos de um fato futuro, previsto como meramente possível; a imputação é o juízo de um fato ocorrido. A primeira é a contemplação de uma ideia; a segunda é o exame de um fato concreto. Lá estamos diante de um conceito puro; aqui estamos na presença de uma realidade” . Contudo, o conceito de imputabilidade que agora nos interessa é muito mais estrito e se refere a um dos elementos da culpabilidade. Imputabilidade, como já afirmamos, é a capacidade de culpabilidade , é a aptidão para ser culpável. Como afirma Muñoz Conde, “quem carece desta capacidade, por não ter maturidade suficiente, ou por sofrer de graves alterações psíquicas, não pode ser declarado culpado e, por conseguinte, não pode ser responsável penalmente pelos seus atos, por mais que sejam típicos e antijurídicos” . Imputabilidade não se confunde com responsabilidade, que é o princípio segundo o qual a pessoa dotada de capacidade de culpabilidade (imputável) deve responder por suas ações. Aliás, também nesse particular, foi feliz a Reforma Penal de 1984, ao abandonar a terminologia responsabilidade penal, equivocadamente utilizada pela redação original do Código Penal de 1940.

Nosso Código Penal não define a imputabilidade penal, a não ser por exclusão, ao estabelecer as causas que a afastam, definindo, em outros termos, a inimputabilidade de quem, “por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento” (art. 26, caput). Nessa redação, a Reforma Penal de 1984 substituiu somente a expressão “caráter criminoso” por “caráter ilícito” do fato. Não se pode negar que a nova redação é mais correta, tecnicamente, porque faz uma clara alusão à consciência da ilicitude como elemento da culpabilidade, evidenciando, ademais, que o conceito de não imputabilidade não é meramente biológico, mas, sim, biopsicológico.

São conhecidos em doutrina três sistemas definidores dos critérios fixadores da inimputabilidade ou culpabilidade diminuída: a) biológico; b) psicológico; c) biopsicológico. Na Exposição de Motivos do Código Penal de 1940, o Ministro Francisco Campos, justificando a opção legislativa, conceitua cada um desses sistemas: “Na fixação do pressuposto da responsabilidade penal (baseada na capacidade de culpa moral), apresentam-se três sistemas: o biológico ou etiológico (sistema francês), o psicológico e o biopsicológico. O sistema biológico condiciona a responsabilidade à saúde mental, à normalidade da mente. Se o agente é portador de uma enfermidade ou grave deficiência mental, deve ser declarado irresponsável, sem necessidade de ulterior indagação psicológica. O método psicológico não indaga se há uma perturbação mental mórbida: declara a irresponsabilidade se, ao tempo do crime, estava abolida no agente, seja qual for a causa, a faculdade de apreciar a criminalidade do fato (momento intelectual) e de determinar-se de acordo com essa apreciação (momento volitivo). Finalmente, o método biopsicológico é a reunião dos dois primeiros: a responsabilidade só é excluída se o agente, em razão de enfermidade ou retardamento mental, era, no momento da ação, incapaz de entendimento ético-jurídico e autodeterminação”.

O Direito Penal brasileiro adota, como regra geral, o sistema biopsicológico e, como exceção, o sistema puramente biológico para a hipótese do menor de dezoito anos (arts. 228 da CF e 27 do CP).

2. Inimputabilidade

Pode-se afirmar, de uma forma genérica, que estará presente a imputabilidade, sob a ótica do Direito Penal brasileiro, toda vez que o agente apresentar condições de normalidade e maturidade psíquicas mínimas para que possa ser considerado como um sujeito capaz de ser motivado pelos mandados e proibições normativos. A falta de sanidade mental ou a falta de maturidade mental podem levar ao reconhecimento da inimputabilidade, pela incapacidade de culpabilidade. Podem levar, dizemos, porque a ausência da sanidade mental ou da maturidade mental constitui um dos aspectos caracterizadores da inimputabilidade, que ainda necessita de sua consequência, isto é, do aspecto psicológico, qual seja, a capacidade de entender ou de autodeterminar-se de acordo com esse entendimento. 

Nos casos em que o agente padece de doença mental ou de desenvolvimento mental incompleto ou retardado é necessário constatar a consequência psicológica desse distúrbio (sistema biopsicológico), pois este é o aspecto relevante para o Direito Penal no momento de decidir se o sujeito pode ser, ou não, punido com uma pena. Na verdade, para eximir de pena exige-se, em outros termos, que tal distúrbio — doença mental, desenvolvimento mental incompleto ou retardado — produza uma consequência determinada, qual seja, a falta de capacidade de discernir, de avaliar os próprios atos, de compará-los com a ordem normativa. O agente é incapaz de avaliar o que faz, no momento do fato, ou então, em razão dessas anormalidades psíquicas, é incapaz de autodeterminar-se. Devem reunir-se, portanto, no caso de anormalidade psíquica, dois aspectos indispensáveis: um aspecto biológico, que é o da doença em si, da anormalidade propriamente, e um aspecto psicológico, que é o referente à capacidade de entender ou de autodeterminar-se de acordo com esse entendimento.

Para o reconhecimento da existência de incapacidade de culpabilidade é suficiente que o agente não tenha uma das duas capacidades: de entendimento ou de autodeterminação. É evidente que, se falta a primeira, ou seja, não tem a capacidade de avaliar os próprios atos, de valorar sua conduta, positiva ou negativamente, em cotejo com a ordem jurídica, o agente não sabe e não pode saber a natureza valorativa do ato que pratica. Faltando essa capacidade, logicamente também não tem a de autodeterminar-se, porque a capacidade de autocontrole pressupõe a capacidade de entendimento. O indivíduo controla ou pode controlar, isto é, evita ou pode evitar aquilo que sabe que é errado. Omite aquela conduta à qual atribui um valor negativo. Ora, se não tiver condições de fazer essa avaliação, de valorar determinada conduta como certa ou errada, consequentemente também não terá condições de controlar-se, de autodeterminar-se. Uma capacidade requer a outra, isto é, a primeira requer a segunda. Agora, o oposto não é verdadeiro, ou seja, a capacidade de entendimento não significa que o agente possa autodeterminar-se exercendo um controle total sobre os seus impulsos. Pode acontecer que por um transtorno dos impulsos o agente tenha perfeitamente íntegra capacidade de discernimento, de valoração, sabendo perfeitamente o que é certo e o que é errado e, no entanto, não tenha a capacidade de auto­con­trole, de autodeterminação.

3. Responsabilidade do menor pela prática de ato infracional (ECA)

No que diz respeito aos menores de 18 anos, os requisitos e efeitos da inimputabilidade são, claramente, distintos. Para o menor de idade, o critério biológico, isoladamente, esgota o conceito de inimputabilidade, porque, por presunção constitucional (art. 228 da CF e art. 27 do CP), o menor de dezoito anos é incapaz de culpabilidade, ou, na velha terminologia, irresponsável penalmente, pelo menos no âmbito do Direito Penal de adultos. Com efeito, é suficiente que se faça a comprovação da idade do menor, isto é, do aspecto puramente biológico, para “isentá-lo de pena”. Isso não significa, contudo, que o menor de 18 anos não seja responsabilizado de alguma forma pela infração cometida. De acordo com a Lei n. 8.069/90, que dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente, este último, o adolescente (pessoa maior de 12 e menor de 18 anos, nos termos do art. 2º) poderá responder individualmente pelo seu ato infracional (conduta descrita como crime ou contravenção, nos termos do art. 103 do ECA), sendo-lhe aplicável, como sanção, uma das medidas socioeducativas previstas no art. 112 do referido Estatuto. 

Nesses termos, a atribuição de responsabilidade pela prática de um ato infracional deve estar, igualmente, lastreada com base no juízo sobre a capacidade de entendimento e de autodeterminação do adolescente, caso contrário o Estado estará sendo muito mais severo com o menor de idade do que com um adulto plenamente capaz, impondo-lhe, inclusive, autêntica responsabilidade penal objetiva. Até porque a decisão judicial deverá eleger, com base na capacidade, circunstâncias e gravidade da infração, a medida que será aplicada ao adolescente infrator (art. 112, § 1º), que se diferencia dos casos em que o adolescente padece de doença ou deficiência mental (art. 112, § 3º). Com isso, queremos dizer que embora o critério biológico seja suficiente para excluir o menor de 18 anos do âmbito de aplicação do Direito Penal de adultos, o critério biopsicológico continua sendo indispensável para a determinação da medida aplicável ao adolescente infrator. 

Com esta concepção procura-se minimizar a forma violenta e antidemocrática que o Estado brasileiro pune o menor infrator, sem assegurar-lhe as garantias fundamentais e constitucionais da presunção de inocência, ampla defesa, contraditório e devido processo legal, reconhecidas a todos os criminosos adultos.

3.1. Menoridade

A imputabilidade, por presunção legal, inicia-se, no âmbito do Direito Penal de adultos, aos dezoito anos. Para definir a “maioridade penal” a legislação brasileira seguiu o sistema biológico, ignorando o desenvolvimento mental do menor de dezoito anos, considerando-o inimputável, independentemente de possuir a plena capacidade de entender a ilicitude do fato ou de determinar-se segundo esse entendimento, desprezando, assim, o aspecto psicológico. 

Razões de política criminal levaram o legislador brasileiro a optar pela presunção absoluta de inimputabilidade do menor de dezoito anos. Aliás, a Exposição de Motivos do Código Penal de 1940, que adotava essa orientação, justificava afirmando: “Os que preconizam a redução do limite, sob a justificativa da criminalidade crescente, que a cada dia recruta maior número de menores, não consideram a circunstância de que o menor, ser ainda incompleto, é naturalmente antissocial na medida em que não é socializado ou instruído. O reajustamento do processo de formação do caráter deve ser cometido à educação, não à pena criminal”. Por isso, os menores de dezoito anos, autores de infrações penais, terão suas “responsabilidades” reguladas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente — ECA, que prevê as medidas (socioeducativas) adequadas à gravidade dos fatos e à idade do menor infrator (Lei n. 8.069/90). Nessa faixa etária os menores precisam, como seres em formação, mais de educação, de formação, e não de prisão ou de encarceramento, que representa a universidade do crime, de onde é impossível alguém sair melhor do que entrou. A experiência do cárcere transforma um simples batedor de carteira em um grande marginal.

No Brasil, contudo, discute-se atualmente a necessidade ou conveniência de estabelecer a responsabilidade penal aos dezesseis anos, acrescentando-se aos argumentos conhecidos o fato de, a partir da Constituição de 1988, ser possível a esse menor alistar-se eleitoralmente (deve-se ressalvar, contudo, que o exercício do direito-dever de votar, nessa faixa etária, é facultativo e não obrigatório, como determina a regra geral). E ainda, argumenta-se, tornando os menores imputáveis, ser-lhes-á possível adquirir igualmente a habilitação para dirigir veículos. Trata--se, como se vê, de argumentos com duplo equívoco: a) com a redução da menoridade penal “explodiremos” a capacidade das penitenciárias (já superlotadas) e somente teremos bandidos mais jovens e delinquindo por mais tempo; esses menores farão o aperfeiçoamento na delinquência no interior das prisões (verdadeiras fábricas de criminosos); b) antecipando a habilitação para conduzir veículos, mataremos nossos adolescentes mais cedo, nesse tráfego enlouquecido e desumano, isto é, serão vitimados pela violência do trânsito, antes que consigam a maturidade necessária e suficiente para enfrentá-lo.

Argumenta-se que os “bandidos” maiores estão se utilizando muito dos menores para praticar crimes graves, e, também por isso, deve-se reduzir a “menoridade penal”. País interessante este nosso: em vez de punir mais gravemente os criminosos que se utilizam de menores para a prática de crimes, inclusive, corrompendo-os, por vezes, prefere punir quem (menor) é utilizado como instrumento para atingir o fim pretendido pelo autor mediato! Ora, a solução dessa questão é simples: ou criminaliza-se a conduta de usar menores para delinquir, a exemplo do que fazia a revogada Lei n. 2.252/54 (uma espécie de corrupção de menores), ou, pelo menos, cria-se uma majorante duplicando a pena, por exemplo, quando for usado menor para a execução de uma infração penal. Ora, deve-se punir o criminoso maior que usa maldosamente o menor para delinquir, e não punir este porque é usado pelo maior.

Convém lembrar, para reflexão, que o Código Penal da Espanha, que entrou em vigor em maio de 1996 (Ley Orgánica n. 10/95), constituindo-se, portanto, em um dos Códigos Penais europeus mais modernos, elevou a idade do menor, para atribuir-lhe responsabilidade penal, de dezesseis para dezoito anos (art. 19). Admitimos, no entanto, de lege ferenda, a possibilidade de uma terceira via, para amainar a fúria punitiva: nem a responsabilidade penal do nosso Código Penal, nem as medidas socioeducativas do Estatuto da Criança e do Adolescente, mas uma elevação da restrição de liberdade, como se fora uma espécie de responsabilidade penal diminuída, com consequências diferenciadas, para os infratores jovens com idade entre dezesseis e vinte anos, cujas sanções devam ser cumpridas em outra modalidade de estabelecimento (patronato para menores infratores), exclusivas para menores, com tratamento adequado, enfim, um tratamento especial, com a presença e participação obrigatória e permanente de psicólogos, psiquiatras, terapeutas e assistentes sociais.

Em primeiro lugar, é indispensável que se afaste qualquer possibilidade de referidos menores virem a cumprir a sanção penal juntamente com os delinquentes adultos. Em segundo lugar, faz-se necessário que as sanções penais sejam executadas em estabelecimentos especiais, onde o tratamento ressocializador, efetivamente individualizado, fique sob a responsabilidade de técnicos especializados, repetindo, de assistentes sociais, psicólogos, psiquiatras e terapeutas, para que se possa realmente propiciar ao menor infrator sua educação, além de prepará-lo para o mercado de trabalho. Nessas condições, poder-se-ia admitir a elevação das ditas medidas socioeducativas — que são verdadeiras sanções penais —, chegando até o máximo de cinco anos, para os crimes ditos comuns, e até sete anos, para os denominados crimes hediondos e assemelhados.

Enfim, para se admitir a redução da idade para a “responsabilidade penal”, exige-se competência e honestidade de propósitos, aspectos nada comuns no tratamento do sistema repressivo penal brasileiro como um todo. Aliás, a incompetência e a falta de seriedade no trato dessas questões têm sido a tônica da nossa realidade político-criminal. Por isso, temos, inclusive, receio de sustentar essa tese, porque os nossos legisladores poderão gostar da ideia, mas, como sempre acontece no Brasil, aproveitá-la somente pela metade, ou seja, adotar essa responsabilidade penal diminuída e “esquecer” de criar os “estabelecimentos adequados”, exclusivos para os menores, com a estrutura funcional indispensável (com técnicos especializados)! Ademais, essa tese não pode ser desenvolvida satisfatoriamente neste espaço, e muito menos executada pela metade.

Nessas circunstâncias, isto é, com a existência real de um objetivo ressocializador mínimo, tornado programático, obrigatório, permanente e efetivo, mostra-se razoável a alteração do ECA, ampliando o prazo de internação do menor (entre 16 e 20 anos) para até cinco anos, na criminalidade clássica, e para até sete anos na hipótese dos denominados crimes hediondos e assemelhados.

3.3. Doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado

Existem determinadas condições psíquicas que afetam a capacidade intelectual para compreender a ilicitude, como, por exemplo, nos quadros de oligofrenia, de doenças mentais, ou de desenvolvimento mental incompleto ou retardado. Além disso, existem certas espécies de psicoses e neuroses, notadamente as neuroses obsessivo-compulsivas, consideradas pela psiquiatria como doença mental, que não eliminam o senso valorativo da conduta, afetando somente a capacidade de autodeterminação daquele que a padece. Se o agente não tiver uma dessas capacidades, isto é, se uma delas lhe faltar inteiramente, no momento da ação, ou seja, no momento da prática do fato, ele é absolutamente incapaz, nos termos do caput do art. 26. 
Pela redação utilizada pelo Código Penal, deve-se dar abrangência maior do que tradicionalmente lhe concederia a ciência médica para definir uma enfermidade mental. Porque não é atribuição do legislador penal nem do juiz da ação penal classificar nem resolver as questões médicas e técnicas que concernem à psiquiatria, mas, sim, valorar os efeitos que determinado estado mental pode ter sobre os elementos que compõem a capacidade de culpabilidade penal. A doença mental deve compreender, portanto, como afirmava Aníbal Bruno, “os estados de alienação mental por desintegração da personalidade, ou evolução deformada dos seus componentes, como ocorre na esquizofrenia, ou na psicose maníaco­ depressiva e na paranoia; as chamadas reações de situação, distúrbios mentais com que o sujeito responde a problemas embaraçosos do seu mundo circundante; as perturbações do psiquismo por processos tóxicos ou tóxico-infecciosos, e finalmente os estados demenciais, a demência senil e as demências secundárias” . Teria sido melhor a utilização da expressão “alienação mental”, que, de forma mais abrangente, compreenderia todos os estados mentais, mórbidos ou não, que demonstrassem a incapacidade do criminoso de entender o caráter ilícito de sua ação ou de determinar-se de acordo com essa compreensão.

Como desenvolvimento mental retardado compreende-se a oligofrenia, em suas formas tradicionais — idiotia, imbecilidade e debilidade mental. Segundo o magistério de Aníbal Bruno, são “formas típicas, que representam os dois extremos e o ponto médio de uma linha contínua de gradações da inteligência e vontade e, portanto, da capacidade penal, desde a idiotia profunda aos casos leves de debilidade, que tocam os limites da normalidade mental. São figuras teratológicas, que degradam o homem da sua superioridade psíquica normal e criam, no Direito punitivo, problemas de inimputabilidade ou de imputabilidade diminuída em vários graus” . Em outros termos, desenvolvimento mental retardado é aquele em que não se atingiu a maturidade psíquica, por deficiência de saúde mental. De regra, nas hipóteses de desenvolvimento mental retardado aparecem com alguma frequência as dificuldades dos chamados casos fronteiriços, particularmente nas oligofrenias, onde o diagnóstico não oferece a segurança desejada. Nesses casos, somente a perícia forense poderá identificar o grau de deficiência do desenvolvimento mental retardado do indivíduo, a partir do qual se poderá diagnosticar a inimputabilidade ou semi-imputabilidade, em cada caso concreto.

O hipnotismo, eventualmente, pode ser equiparado a uma doença mental transitória, desde que, é claro, não haja o propósito de deixar-se hipnotizar para vir a delinquir, que configuraria a hipótese de actio libera in causa. Em estado de hipnose, a nosso juízo, falta ao agente o próprio requisito da voluntariedade, fundamento do exercício da ação humana, eliminando, portanto, toda e qualquer possibilidade de ação, de maneira similar aos casos de vis absoluta. Sem o requisito da voluntariedade a conduta não pode ser considerada nem mesmo como típica. O hipnotizado não passa de mero instrumento de realização da vontade criminosa do hipnotizador, que é o autor mediato de determinado crime. O hipnotizado não é autor, nessa hipótese, mas mero executor inculpável.

O art. 26 pode abranger, ainda, determinados casos que não constituem, em absoluto, quadros de doença mental, nem, propriamente, um desenvolvimento mental incompleto ou retardado. Referimo-nos aos surdos-mudos e aos silvícolas inadaptados, que, em virtude de sua peculiar condição pessoal, podem sofrer os mesmos efeitos psicológicos que são produzidos pelo desenvolvimento mental incompleto ou retardado. Nessa hipótese, a psicopatologia forense determinará, em cada caso concreto, se a alteração na percepção sensorial da realidade provocada pela surdo-mudez, e se a falta de adaptação social dos silvícolas conduz à incapacidade referida pela lei . 

O surdo-mudo, privado do som e da comunicação oral, de regra, fica alijado da cultura, sem assimilar suas normas, sem a capacidade de avaliar o sentido ético-social de seus atos. Ante a possibilidade de educar-se, e ajustar-se ao meio social, sua capacidade de entendimento e de autodeterminação deve ser comprovada em cada caso particular. Mas, ainda que consiga uma educação, a sua capacidade, que não se limita exclusivamente à instrução, será naturalmente inferior à normalidade do cidadão; por isso, a necessidade do exame conveniente em cada caso concreto. No entanto, a condição biológica — “surdo-mudez” — é insuficiente, por si só, para caracterizar a inimputabilidade. Será indispensável comprovar-se, in concreto, as consequências decorrentes da surdo-mudez, isto é, constatar se ela produz a incapacidade de compreensão e de autodeterminação decorrentes dessa deficiência congênita.

De maneira similar, é necessário averiguar se os silvícolas passaram pelo processo de aculturação. No entanto, o nível de adaptação às normas de cultura da comunidade social deve ser avaliado em cada caso particular; havendo dúvidas, deve-se providenciar avaliações antropológicas e sociológicas para se constar o grau de aculturamento atingido. Evidentemente que a situação dos silvícolas não tem natureza patológica, mas decorre da ausência de adaptação à vida social urbana ou mesmo rural, à complexidade das normas ético-jurídico-sociais reguladoras da vida dita civilizada e da diferença de escala de valores.

Todos esses estados passam, necessariamente, pelo exame médico-pericial para comprovar a gravidade que, in concreto, apresentam. No plano processual, viabiliza-se esse exame pericial através da instauração de incidente de insanidade mental do acusado (arts. 149 a 154 do CPP).

4. Culpabilidade diminuída

Entre a imputabilidade e a inimputabilidade existem determinadas gradações, por vezes insensíveis, que exercem, no entanto, influência decisiva na capacidade de entender e autodeterminar-se do indivíduo. A rigor, essa questão não deveria ser tratada entre as causas que excluem a culpabilidade, na medida em que apenas a diminuem, mas razões didáticas autorizam sua análise neste capítulo .

Situam-se nessa faixa intermediária os chamados fronteiriços, que apresentam situações atenuadas ou residuais de psicoses, de oligofrenias e, particularmente, grande parte das chamadas personalidades psicopáticas ou mesmo transtornos mentais transitórios. Esses estados afetam a saúde mental do indivíduo sem, contudo, excluí-la. Ou, na expressão do Código Penal, o agente não é “inteiramente” capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento (art. 26, parágrafo único, do CP). A culpabilidade fica diminuída em razão da menor censura que se lhe pode fazer, em razão da maior dificuldade de valorar adequadamente o fato e posicionar-se de acordo com essa capacidade.

As expressões, comumente utilizadas pela doutrina, imputabilidade diminuí­da ou semi-imputabilidade são absolutamente impróprias, pois, na verdade, soam mais ou menos com algo parecido como semivirgem, semigrávida, ou então como uma pessoa de cor semibranca! Em realidade, a pessoa, nessas circunstâncias, tem diminuída sua capacidade de censura, de valoração, consequentemente a censurabilidade de sua conduta antijurídica deve sofrer redução. Enfim, nas hipóteses de inimputabilidade o agente é “inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento”. Ao passo que nas hipóteses de culpabilidade diminuída — em que o Código fala em redução de pena — o agente não possui a “plena capacidade” de entender a ilicitude do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. Há efetivamente uma diversidade de intensidade entre as causas de inimputabilidade e as causas de diminuição de culpabilidade (semi-imputabilidade): aquelas eliminam a capacidade de culpabilidade, estas apenas a reduzem.

4.1 Consequências jurídico-penais

Comprovada a inimputabilidade do agente a absolvição se impõe (art. 26), aplicando-se medida de segurança nos termos dos arts. 96 a 99. No entanto, na hipótese dos fronteiriços, isto é, de culpabilidade diminuída, é obrigatória, no caso de condenação, a imposição de pena, reduzida, para, somente num segundo momento, se comprovadamente necessária, ser substituída por medida de segurança (princípio vicariante). Para não sermos repetitivos, contudo, remetemos o leitor para o capítulo em que analisamos exclusivamente as medidas de segurança e suas implicações .

A comprovação da inimputabilidade do agente, no entanto, não é suficiente para aplicar-se a medida de segurança. É preciso que se comprove que essa inimputabilidade, no caso concreto, é a causa da absolvição, ou seja, que a inimputabilidade é o fundamento da absolvição. Com isso queremos dizer que a imposição de medida de segurança não está baseada unicamente no juízo sobre a perigosidade do autor. Alguém recebe medida de segurança, porque praticou uma conduta típica e antijurídica, com a diferença de que, dadas as condições em que se encontra, não pode receber pena. Em outros temos, se o agente fosse imputável, seria condenado, posto que considerado culpado; contudo, tratando-se de inimputável, resta-lhe somente a medida de segurança (arts. 96 a 99 do CP). Logicamente, se fizermos uma comparação com um sujeito imputável, e chegarmos à conclusão de que, naquelas circunstâncias processuais, esse sujeito imputável seria absolvido, por ser inocente, não haver prova contra si, ou por estar escudado em uma excludente de ilicitude, ou mesmo em uma causa dirimente de culpabilidade, que não seja a inimputabilidade, em que se absolveria também o imputável — com o inimputável não deverá ser diferente — consequentemente, não se teria fundamento legal para impor ao inimputável uma medida de segurança, pois tanto quanto o imputável deve ser absolvido. Esse entendimento está amparado no princípio de igualdade material, de modo que é vedado ao Estado/jurisdição ser mais rigoroso com o inimputável, quando, nas circunstâncias do caso, o fato não possa ser considerado como típico, ou possa estar justificado ou exculpado para um sujeito capaz de culpabilidade. Além disso, é uma conse­quência do Direito Penal do fato, que não admite a aplicação de medida de segurança nos termos de um Direito Penal do autor. 

Então, para se aplicar medida de segurança será preciso que a absolvição decorra exclusivamente da inimputabilidade do agente, e não de uma causa justificante ou exculpante de outra natureza, ou, ainda, que por qualquer outro fundamento não possa ser condenado. Em outros termos, somente seria possível aplicar medida de segurança tanto ao inimputável como ao semi-imputável, quando, na mesma hipótese, houvesse fundamento para a condenação de agente imputável.

A modo de conclusão, essas condições biológicas, com exceção da menoridade, podem fazer o agente perder totalmente a capacidade de entendimento ou de autodeterminação, ou, simplesmente, diminuir essa capacidade. Pode ter íntegra uma e diminuída a outra, mas como precisa, para ser imputável, das duas capacidades, de entendimento e de autodeterminação, a ausência de uma basta para inimputabilidade. Se houver prejuízo de uma delas, total — é inimputável; se houver prejuízo de uma delas, parcial — é semi-imputável, isto é, tem capacidade de culpabilidade diminuída. 

A culpabilidade diminuída dá como solução a pena diminuída, na proporção direta da diminuição da capacidade, ou, nos termos do art. 98 do CP, a possibilidade de, se necessitar de especial tratamento curativo, aplicar-se uma medida de segurança, substitutiva da pena. Nesse caso, é necessário, primeiro, condenar o réu semi-imputável, para só então poder substituir a pena pela medida de segurança, porque essa medida de segurança é sempre substitutiva da pena reduzida. Quer dizer, é preciso que caiba a pena reduzida, ou seja, que o agente deva ser condenado. E o art. 98 fala claramente em “condenado”. Logo, no caso da semi-imputabilidade, requer-se a condenação, quando for o caso, evidentemente. 

Finalmente, em que pese o texto legal utilizar o verbo “pode”, a redução de pena, na hipótese de culpabilidade diminuída, é obrigatória, e não mera faculdade do juiz.

5. Coação moral irresistível e obediência hierárquica

Nosso Código Penal prevê, expressamente, duas situações que excluem a culpabilidade, em razão da inexigibilidade de comportamento diverso; em outros termos, são causas legais que excluem a culpabilidade: a coação irresistível e a obediên­cia hierárquica (art. 22), por eliminarem um de seus elementos constitutivos, qual seja, a exigibilidade de comportamento de acordo com a ordem jurídica.

5.1. Coação moral irresistível

Coação irresistível, com idoneidade para afastar a culpabilidade, é a coação moral, a conhecida grave ameaça, uma vez que a coação física exclui a própria ação, não havendo, consequentemente, conduta típica. Coação irresistível é tudo o que pressiona a vontade impondo determinado comportamento, eliminando ou reduzindo o poder de escolha, consequentemente, trata-se da coação moral. 

Essa excludente da culpabilidade deve ser, contudo, diferenciada tanto dos casos de vis absoluta, em que há ausência de ação, como dos casos de estado de necessidade coativo, segundo setores da doutrina alemã e espanhola. A coação física irresistível, “vis absoluta”, exclui a própria ação por ausência de vontade. Nesse caso, o executor é considerado apenas um instrumento mecânico de realização da vontade do coator, que, na realidade, é o autor mediato. No mesmo sentido manifestava-se Everardo da Cunha Luna, in verbis: “A coexistência de agentes, na coação irresistível, leva-nos a ver, nesta, apenas a coação moral, a vis compulsiva, porque, na coação física, na vis absoluta, em lugar de dois, apenas um agente concorre — aquele que coage e que domina, como simples instrumento, o outro aparentemente agente” . Nos casos de estado de necessidade coativo, o agente é colocado numa situação de conflito de interesses como consequência da coação irresistível exercida por outra pessoa. Imagine-se, por exemplo, que Antônio ameaça, gravemente, matar a esposa de José se este não der uma surra em Ricardo. Conhecendo os antecedentes criminais e o “histórico” de Antônio, José, tomado de pânico, cede à imposição daquele. Nesse caso, o delito de lesão corporal não poderá ser atribuído a José, porque este realiza uma conduta justificada pelo estado de necessidade coativo , mas, sim, a Antônio, na qualidade de autor mediato através do uso da coação. Como vimos no estudo do estado de necessidade, a justificação da conduta se impõe nas hipóteses de conflito de interesses de distinto valor, sempre que o bem jurídico preservado (no exemplo dado, a vida) tem um valor superior ao bem jurídico sacrificado (a integridade física). Nessas circunstâncias, ante a gravidade real da ameaça e a diferença de valor dos bens jurídicos em conflito, justifica-se a conduta de José. Mas também pode acontecer que a ação de salvaguarda do agente coagido não resulte justificada, mas, sim, exculpada em virtude do princípio de inexigibilidade de outra conduta. Ou seja, ausente a desproporção dos bens jurídicos em conflito, não se trataria da causa de justificação, mas tão somente de exculpação, nos estritos termos do art. 22 do diploma legal pátrio, por inexigibilidade de conduta diversa. Esse é o âmbito de aplicação da coação moral irresistível como causa de exclusão da culpabilidade. 

Na coação moral irresistível existe vontade, embora seja viciada, ou seja, não é livremente formada pelo agente. Nas circunstâncias em que a ameaça é irresistível não é exigível que o agente se oponha a essa ameaça — que tem de ser grave —, para se manter em conformidade com o Direito. Como já antecipava Cuello Calón, “o indivíduo que nesta situação executa um fato criminoso não é considerado culpável porque sua vontade não pode determinar-se livremente” . Entender diferente equivaleria a exigir do agente um comportamento heroico, que somente um ser superior, que se diferenciasse dos demais, quer pela coragem, quer pelo idealismo, ou, enfim, por qualquer outra razão elevada, poderia realizar. Mas o Direito destina-se a pessoas comuns, a seres normais, e não a heróis, como seria o caso. 

A irresistibilidade da coação deve ser medida pela gravidade do mal ameaçado, ou seja, dito graficamente, a ameaça tem de ser, necessariamente, grave. Essa gravidade deve relacionar-se com a natureza do mal e, evidentemente, com o poder do coator em produzi-lo. Na verdade, não pode ser algo que independa da vontade do coator, alguma coisa que dependa de um fator aleatório, fora da disponibilidade daquele. Nesse caso, deixa de ser grave o mal ameaçado, deixa de ser irresistível a coação, porque se trata de uma ameaça cuja realização encontra-se fora da disponibilidade do coator. Ameaças vagas e imprecisas não podem ser consideradas suficientemente graves para configurar coação irresistível e justificar a isenção de pena. Somente o mal efetivamente grave e iminente tem o condão de caracterizar a coação irresistível prevista pelo art. 22 do CP. A iminência aqui mencionada não se refere à imediatidade tradicional, puramente cronológica, mas significa iminente à recusa, isto é, se o coagido recusar-se, o coator tem condições de cumprir a ameaça em seguida, seja por si mesmo, seja por interposta pessoa. 

É indiferente que a vítima do mal ameaçado seja o próprio coagido ou alguém de suas ligações afetivas. O importante é que esse mal, essa ameaça, constitua, necessariamente, uma coação moral irresistível. O que importa é que o temor do agente impeça-lhe de deliberar livremente: ou obedece à ordem ou o mal grave que teme se concretiza. Nessa hipótese de irresistibilidade, a solução legal é considerar punível, exclusivamente, o coator, que, no caso, é o autor mediato, uma vez que o executor é mero instrumento, agindo inculpavelmente. Não há propriamente concurso de pessoas, mas simples autoria mediata: o coator é o único responsável pelo fato, do qual tinha o domínio final. 

E, na hipótese de coação resistível, não haverá exclusão da culpabilidade penal, logicamente, porque o sujeito pode agir em conformidade com o Direito, ante a resistibilidade da coação; por essa razão, se não a resistir (sendo resistível), haverá concurso de pessoas com o coator. Porém, como há a coação, como há ameaça efetiva, embora resistível, e o agente age por causa dessa ameaça, há uma diminuição do grau de reprovação, do grau de censura, e, consequentemente, uma redução de pena caracterizada por uma atenuante genérica, a coação resistível (art. 65, III, c, 1ª figura). O coator, por sua vez, será sempre punível: na coação irresistível, na condição de autor mediato, na coação resistível, na condição de coautor ou de partícipe, dependendo das demais circunstâncias. Somente quando a coação for resistível, o coator sofrerá a agravante do art. 62, II, porque, na coação irresistível, ele será autor mediato e esta será o meio de sua execução. Caso contrário, haveria um bis in idem.

5.2. Obediência hierárquica

A segunda parte do art. 22 prevê a obediência hierárquica, que requer — segundo a doutrina tradicional — uma relação de direito público, e somente de direito público. A hierarquia privada, própria das relações da iniciativa privada, não é abrangida por esse dispositivo, conclui essa doutrina. No entanto, embora tenhamos concordado com esse entendimento, por algum tempo, passamos a questioná-lo, por dois fundamentos básicos: a) de um lado, ordem de superior hierárquico produz, independentemente de a relação hierárquica ser de natureza pública ou privada, o mesmo efeito, qual seja, a inexigibilidade de conduta diversa; b) de outro lado, o Estado Democrático de Direito não admite qualquer resquício de responsabilidade penal objetiva, e sempre que, por qualquer razão, a vontade do agente for viciada (deixando de ser absolutamente livre), sua conduta não pode ser penalmente censurável.

Os efeitos ou consequências da estrita obediência hierárquica, numa visão radical e positivista, seriam mantidos segundo o entendimento adotado pela redação original do Código Penal de 1940, que sustentava a suposição indispensável de uma relação de direito administrativo; a estrita obediência hierárquica estaria ainda limitada à ordem emanada de autoridade pública, como fora concebida naquele Estado de Exceção. Nessa hipótese, constituiria uma causa legalmente expressa de isenção de pena. Contudo, reinterpretando o mesmo texto da Reforma Penal de 1984, sob o marco de um Estado Democrático de Direito, a estrita obediência hierárquica a ordem não manifestamente ilegal caracteriza, independentemente de emanar de “autoridade” pública ou privada, a inexigibilidade de outra conduta.

Ninguém pode ignorar que a desobediência a ordem superior, no plano da iniciativa privada, está sujeita a consequências mais drásticas e imediatas que o seu descumprimento no âmbito público-administrativo. Com efeito, na relação de direito público, dificilmente algum subalterno corre o risco de perder o emprego por desobedecer ordem de seu superior hierárquico, podendo, no máximo, responder a uma sindicância, cujas sanções estão legal e taxativamente previstas e, dentre as quais, para essa infração disciplinar, não está cominada a demissão do serviço público. No entanto, na relação empregatícia da iniciativa privada a consequência é, naturalmente, mais drástica e imediata: a simples desobediência pode ter como consequência a demissão imediata, sem justa causa; justificando-se, consequentemente, o maior temor à ordem de superior na iniciativa privada, pois, como se sabe, ao contrário do que ocorre no setor público, o risco de demissão ou perda de emprego, inegavelmente, é fator inibidor de qualquer cidadão. Na realidade, aquele entendimento tradicional ficou completamente superado a partir da redemocratização do País, com uma nova ordem constitucional, que consagra a responsabilidade penal subjetiva e individual, sob o marco de um direito penal da culpabilidade. Não se pode esquecer, por outro lado, que o vetusto Código Penal de 1940, produto do Estado Novo (1937 a 1945), apenas presumia a liberdade de vontade, como deixava claro em sua Exposição de Motivos: “Ao direito penal... não interessa a questão, que transcende à experiência humana, de saber se a vontade é absolutamente livre. A liberdade de vontade é pressuposto das disciplinas práticas, pois existe nos homens a convicção de ordem empírica de que cada um de nós é capaz de escolher entre os motivos determinantes da vontade e, portanto, moralmente responsável” (grifamos). Com efeito, não há nenhum fundamento legal (constitucional) para limitar a consequên­cia jurídico-penal à desobediência de ordem superior na relação hierárquica de direito público, na medida em que o texto legal não faz essa restrição.

Por fim, um argumento irrefutável: a inexigibilidade de outra conduta é uma excludente de culpabilidade que não precisa estar escrita, pois simplesmente elimina um de seus elementos constitutivos (a exigibilidade de conduta conforme a norma), afastando-a consequentemente. Assim, qualquer causa que exclua a exigibilidade de conduta conforme ao direito, afasta a culpabilidade, com ou sem previsão legal, e a estrita obediência hierárquica é apenas uma de suas duas versões expressas. Por isso, independentemente de tratar-se de relação hierárquica de direito público ou de direito privado, a estrita obediência a ordem não manifestamente ilegal de superior hierárquico produz o mesmo efeito: a inexigibilidade de outra conduta. 

Sintetizando, em virtude da subordinação hierárquica, o subordinado cumpre ordem do superior, desde que essa ordem não seja manifestamente ilegal, podendo, no entanto, ser apenas ilegal. Porque, se a ordem for legal, o problema deixa de ser de culpabilidade, podendo caracterizar causa de exclusão de ilicitude. Se o agente cumprir ordem legal de superior hierárquico, estará no exercício de estrito cumprimento de dever legal. A estrita obediência de ordem legal não apresenta nenhuma conotação de ilicitude, ainda que configure alguma conduta típica; ao contrário, caracteriza a sua exclusão (art. 23).

No momento em que se examina a culpabilidade já foi superada a análise positiva da tipicidade e da antijuridicidade do fato, admitindo-as, pois, quando afastadas, qualquer delas, desnecessário será examinar a culpabilidade. Então, a ordem pode ser ilegal, mas não manifestamente ilegal, não flagrantemente ilegal. Quando a ordem for ilegal, mas não manifestamente, o subordinado que a cumpre não agirá com culpabilidade, por ter avaliado incorretamente a ordem recebida, incorrendo numa espécie de erro de proibição. Agora, quando cumprir ordem manifestamente ilegal, ou seja, claramente, escancaradamente ilegal, tanto o superior hierárquico quanto o subordinado são puníveis, respondendo pelo crime em concurso. O subordinado não tem a obrigação de cumprir ordens ilegais. Ele tem a obrigação de cumprir ordens inconvenientes, inoportunas, mas não ilegais. Não tem o direito, como subordinado, de discutir a oportunidade ou conveniência de uma ordem, mas a ilegalidade, mais que o direito, tem o dever de apontá-la, e negar-se a cumprir ordem manifestamente ilegal. Por essa razão, destacava Frederico Marques, se o superior dá a ordem, nos limites de sua respectiva competência, revestindo-se das formalidades legais necessárias, o subalterno ou presume a licitude da ordem ou “se sente impossibilitado de desobedecer o funcionário de onde a ordem emanou (inexigibilidade de outra conduta): de uma forma ou de outra, é incensurável o proceder do inferior hierárquico, e, por essa razão, o fato praticado não é punível em relação a ele”. Contudo, se a ilegalidade for manifesta, o subalterno tem não apenas o direito, mas também o dever legal de não cumpri-la, denunciando a quem de direito o abuso de poder a que está sendo submetido.

6. A emoção e a paixão

Emoção é uma viva excitação do sentimento. É uma forte e transitória perturbação da afetividade a que estão ligadas certas variações somáticas ou modificações particulares das funções da vida orgânica. A paixão é a emoção em estado crônico, perdurando como um sentimento profundo e monopolizante (amor, ódio, vingança, fanatismo, desrespeito, avareza, ambição, ciúme etc.) .

Emoção e paixão praticamente se confundem, embora haja pequena diferença entre ambas e esta se origine naquela. Kant dizia que a emoção é como “uma torrente que rompe o dique da continência”, enquanto a paixão é o “charco que cava o próprio leito, infiltrando-se, paulatinamente, no solo”. A emoção é uma descarga tensional passageira, de vida efêmera, enquanto a paixão, pode-se afirmar, é o estado crônico da emoção, que se alonga no tempo, representando um estado contínuo e duradouro de perturbação afetiva. Em outras palavras, a emoção dá e passa, enquanto a paixão permanece, alimentando-se nas suas próprias entranhas. Alguns pensadores chegam a situar a paixão, pelas suas características emocionais, entre a emoção e a loucura.

É extremamente difícil distinguir, com segurança, emoção e paixão, uma vez que não apresentam significativas diferenças de natureza ou de grau, pois esta nasce daquela, e, assim como há paixões violentas e emoções calmas, o inverso também é verdadeiro, embora se diga que a emoção é aguda e a paixão é crônica . A única diferença que se pode afirmar com certeza é que a emoção é passageira e a paixão é duradoura.

No entanto, em nosso Direito positivo a emoção e a paixão não apresentam maiores problemas, pois não constituem qualquer excludente de antijuridicidade, embora possam influenciar, inegavelmente, na vis electiva entre o certo e o errado. Esses estados emocionais tampouco são suficientes para eliminar a censurabilidade da conduta (art. 28, I, do CP); poderão, apenas, atenuá-la, com a correspondente redução de pena, desde que satisfeitos determinados requisitos legais. Esses casos podem ser reconduzidos à casuística do excesso nas causas de justificação, na medida em que o legislador estabeleceu no art. 65, III, c, que a pena será atenuada quando o agente tiver cometido o crime sob a influência de violenta emoção provocada por ato injusto da vítima, pressuposto característico do excesso nos casos de legítima defesa. De maneira similar também estabeleceu nos arts. 121, § 1º, e 129, § 4º, que o juiz poderá reduzir a pena de um sexto a um terço se o homicídio ou as lesões corporais, respectivamente, foram cometidos sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida à injusta provocação da vítima. Assim, além da intensidade emocional, é fundamental que a provocação tenha sido da própria vítima, e através de um comportamento injusto, ou seja, não justificado, não permitido, não autorizado. Com essa redação, também é admissível a interpretação mais ampla dos referidos dispositivos, para que também sejam passíveis de diminuição de pena os crimes passionais. Elucidativa, nesse sentido, a Exposição de Motivos do Código Penal de 1940, do Ministro Francisco Campos, afirmando que o legislador “não deixou de transigir, até certo ponto, cautelosamente, com o passionalismo: não o colocou fora da psicologia normal, isto é, não lhe atribuiu o efeito de exclusão da responsabilidade, só reconhecível no caso de autêntica alienação ou grave deficiência mental; mas reconheceu-lhe, sob determinadas condições, uma influência minorativa da pena. Em consonância com o Projeto Alcântara, não só incluiu entre as circunstâncias atenuantes explícitas a de ‘ter o agente cometido o crime sob a influência de violenta emoção, provocada por ato injusto de outrem’, como fez do homicídio passional, dadas certas circunstâncias, uma espécie de delictum exceptum, para o efeito de facultativa redução da pena (art. 121, § 1º)... E o mesmo critério foi adotado no tocante ao crime de lesões corporais”.

Ressalvados esses casos, os estados emocionais ou passionais só poderão servir como modificadores da culpabilidade se forem sintomas de uma doença mental, isto é, se forem estados emocionais patológicos. Mas, nessas circunstâncias, já não se tratará de emoção ou paixão, estritamente falando, e pertencerá à anormalidade psíquica, cuja origem não importa, se tóxica, traumática, congênita, adquirida ou hereditária. O trauma emocional pode fazer eclodir um surto psicótico, e, nesse estado, pode o agente praticar um delito. No entanto, aí o problema deve ser analisado à luz da inimputabilidade ou da culpabilidade diminuída, nos termos do art. 26 e seu parágrafo único. Por exemplo, a extrema agressividade de uma personalidade paranoica, que demonstra um desequilíbrio emocional patológico; a própria embriaguez pode, pela habitualidade, levar à eclosão de uma psicose tóxica, deixando de ser um problema de embriaguez (ou qualquer outra substância tóxica) para ser tratado à luz do mesmo dispositivo legal.



Estas e outras questões de grande relevância penal vc pode encontrar nos cinco volumes da consagrada obra do autor intitulada Tratado de Direito Penal pela Editora Saraiva, devidamente atualizada..


*Doutor em Direito Penal pela Universidade de Sevilha/Espanha


FONTE: https://www.facebook.com/cezarroberto.bitencourt/posts/913847241959012