quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

Duas Questões sobre o Garantismo Penal de Ferrajoli



*Prof. Dr. Geraldo Prado
Professor Associado da UFRJ



Luigi Ferrajoli

Toda iniciativa de dar ao público conhecimento do pensamento de Luigi Ferrajoli é louvável, importante e bem-vinda.
Neste sentido são significativas as contribuições de Fauzi Hassan ChoukrRubens CasaraSalo de Carvalho e Ana Paula Zomer, para me fixar em alguns nomes dos mais competentes intérpretes das ideias jurídico-políticas do autor italiano.
Compreender e discutir a Teoria do Garantismo e suas implicações nos mais variados âmbitos, das liberdades públicas aos direitos sociais e a concepção de democracia subjacente, de fato é imprescindível em tempos particularmente sombrios.
Há, todavia, duas questões que atravessam o debate sobre o sistema garantista que talvez mereçam reflexão:
a) que papel cumpre "a inversão ideológica da teoria do garantismo" (valendo-me aqui da categoria com a qual David Sánchez Rubio trabalha) na disputa hermenêutica que tem lugar no Brasil; 
b) e, principalmente, como o garantismo é insuficiente e até mesmo contraproducente, quando pensado de forma isolada, na realidade ainda claramente impregnada de práticas colonialistas, que desidratam a força normativa da Constituição e das Leis.

Sinteticamente, sobre a primeira delas defendo que vale o que escrevi em "Decisão Judicial: a cultura jurídica na transição para a democracia" (Marcial Pons, 2012).
Com efeito, o campo jurídico é marcado por disputas ideológicas e no Brasil não seria diferente. Com relação especificamente ao nosso processo penal sublinhei, a propósito das distorções acerca do modelo técnico-jurídico de inspiração italiana, nos idos da primeira metade do Século XX, que a razão política imperou no mencionado campo para além das considerações teóricas e com independência da consistência do discurso científico (p. 13).
A manipulação dos institutos e conceitos, quando não o desconhecimento mesmo dos fundamentos teóricos de uma dogmática com características muito específicas, como era o caso, contribuíram para a consolidação de um "capital científico na área do direito" que se revelou desde o início comprometido com o status quo discriminatório e violento que impera em nossa sociedade.
O que se vislumbra hoje é algo bem parecido. A "deriva" conservadora na análise do pensamento de teóricos brasileiros sobre o garantismo, impregnada de preconceitos ad hominem, não tem, necessariamente, qualquer compromisso com as ideias que de fato a maioria professa ou leciona. Ao revés, trata-se de estratégia que, no campo particular de investigação sobre o poder de punir, vai compor um quadro de referências por oposição daqueles que reivindicam parcela do capital científico para justificar práticas que oscilam entre afastar os "garantistas" das escolas jurídicas e ignorar a aplicação prática das ideias extraídas do sistema, todas, em realidade, fruto de uma hermenêutica constitucional que prioriza a dignidade da pessoa humana.
Explico melhor a "referência por oposição". A teoria do garantismo que pontualmente se propõe a definir critérios de validade do direito adota, sob o perspectiva de Ferrajoli, premissas concernentes à incriminação e punição de condutas. Trata-se, portanto, na seara penal, de uma teoria justificadora da punição. Não há nada de abolicionista nela. Ainda assim, a alteração de significados que setores conservadores implementam pretende atribuir ao "garantismo à brasileira" uma profissão de fé abolicionista.
Muito embora fundada em uma consciente irrealidade - a afirmação de que adeptos brasileiros do garantismo atribuem à teoria propriedades típicas do "abolicionismo penal" - o papel jogado politicamente no campo do direito por essa manifesta inversão ideológica consiste em predicar legitimidade para intervenções que se distanciam até mesmo da ideia de garantias secundárias, defendida por Ferrajoli, para tornar ainda mais avassalador o poder penal em nossa realidade periférica. Para Ferrajoli, convém notar, as garantias secundárias seriam "orientadas a assegurar ao menos uma efetividade secundária, jurisdicional ou de segundo grau por meio da anulabilidade ou da responsabilidade por atos cometidos em violação das [garantias primárias] primeiras" [responsabilidade por atos ilícitos] (Principia Iuris: Teoría del Derecho y de la Democracia: 1. Teoría de Derecho. Tradução por Perfecto Andrés Ibáñez e outros. Madrid: Trotta, 2011, p. 631).
É compreensível que os juristas brasileiros dedicados ao estudo das teorias do direito - entre elas a garantista - sintam-se incomodados com a perversão das suas ideias, em especial porque sabem do uso político da "versão" no campo jurídico.
Apesar disso e, repito, louvando sempre o propósito destes juristas de deixar claras as coisas, penso que o maior problema não está em denunciar a manipulação no âmbito da disputa de sentidos. O grave, creio, está na segunda questão, qual seja, a de propor um debate sobre a teoria do garantismo sem submetê-la a duras críticas que são inevitáveis se o objetivo consiste em trasladar suas premissas e conclusões para o Brasil.
Na atual quadra histórica não se trata de reivindicar a teoria do garantismo. Ela não dá conta dos nossos problemas, infelizmente.
Se voltarmos os olhos na direção da periferia das grandes cidades brasileiras encontraremos pessoas vivendo em condição subumana, suportando violências inacreditáveis, em um contexto de dominação em todos os níveis - material, simbólico e imaginário - que não permite de modo algum supor, como nas fracassadas teorias do subdesenvolvimento como estágio anterior ao desenvolvimento, que vivemos em um estágio anterior ao da consolidação das garantias.
Não é uma mera questão de "etapas".
Caso seja possível extrair uma lição do garantismo de Ferrajoli (uso dessa maneira a expressão de modo metafórico), opto por interpretar politicamente o fenômeno jurídico, entendido como conjunto de práticas sociais.
Neste caso, os critérios que me parecem mais acertados requisitam compreender o papel do Brasil na globalização, a dinâmica sócio-econômico-política e a tensão de forças neste cenário, que permanentemente propõe a violência como a nossa forma de fazer política em uma espécie de "oposição necessária" à civilização, concebida até 1752 como trânsito do penal ao civil (Edmund Hendler e Fernand Braudel. As civilizações atuais, 1970, p. 13).
A civilização "existe" em contraste com o nosso modo de ser violento. A percepção sobre o "nosso modo de ser" está corroborada pelo fato de as regras jurídicas cederam à força, no Brasil, sempre que isso é conveniente em um esquema de dominação de corpos que não respeita fronteiras e atende a interesses econômicos.
Os exemplos da fragilidade da ufanizada "força normativa da Constituição" aqui contam-se aos montes: de um presidente do Senado que não cumpre decisão do STF à atitude política deliberada de ignorar mortes a granel em presídios, os anos de 2016 e 2017 (até o momento) estão repletos de evidências da prevalência da força sobre o direito fundado na Constituição.
É também Edmund Hendler que nos lembra que “o direito é um grande reservatório de símbolos sociais emocionalmente importantes” (Enjuiciamiento penal y conflictividad social. In: MAIER, Julio B.J. , BINDER, Alberto M.[Org.] El derecho penal hoy. Buenos Aires: Editores del Puerto, 1995. p.375-383).
Quando aceitamos a violência como parte nuclear de nossa subjetividade, o discurso jurídico das garantias primárias e secundárias de Ferrajoli não produz outro efeito, salvo o de nos diferenciar de Estados situados em um nível civilizatório aparentemente "superior". Como no filme de Ken Loach: "o Estado cria a ilusão de que se você é pobre a culpa é sua" (Eu, Daniel Blake).
Evidente que esta não é a proposta de Ferrajoli, mas também é incontestável que se seguirmos debruçados sobre a teoria do garantismo sem entender a realidade sócio-jurídico-política e econômica nossa, falharemos como teóricos e práticos em busca de solução democrática para os nossos problemas e a questão se resumirá a saber quem conhece melhor os remédios para problemas que não são, imediatamente, os nossos.
Necessitamos construir uma democracia ascensional, da base para o topo, como sugeria Lola de Castro.
Encerro reproduzindo duas intervenções minhas em palestras, referências que suponho que sejam bastante adequadas:
1. Em “a astúcia da razão imperialista” Bourdieu e Wacquant sublinham que “a lógica da circulação internacional de ideias, as transformações internas do campo acadêmico e sua crescente submissão a ‘critérios de marketing’, as estratégias das fundações e editores bem como a de colaboradores locais na ‘importação-exportação’ conceitual global convergem para favorecer uma forma particularmente perniciosa de imperialismo cultural que amputa nossa capacidade de distinguir limitações e possibilidades da política contemporânea”. (WACQUANT, Löic. Poder simbólico e prática democrática, in: O mistério do Ministério: Pierre Bourdieu e a política democrática. Rio de Janeiro: Revan, 2015, p. 17).
2. Noam Chomsky: “O movimento pelos direitos civis foi, em parte destruído pela força e, em parte, foi desperdiçado nessa fase. Nunca chegou realmente ao ponto em que começam as questões de classe." (Sistemas de poder: conversas sobre as revoltas democráticas globais e os novos desafios ao império americano – entrevistas com David Barsamian. Rio de Janeiro: Apicuri, 2013. p. 34.)



Nota do editor: Texto extraído da página do facebook do autor, publicado neste blog com sua autorização.