sábado, 8 de novembro de 2014

UMA SÍNTESE PANORÂMICA DO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL


* Cezar Roberto Bitencourt

Uma síntese panorâmica do Tribunal Penal Internacional


1. A necessidade de um Tribunal Penal internacional

Vêm de longa data os esforços dos povos para a criação de uma Justiça supranacional, cuja competência não ficasse restrita aos limites territoriais das respectivas soberanias, para julgar crimes que atentem contra a humanidade e a ordem internacional. Na narrativa histórica de Jescheck , os primeiros passos em direção à formalização da persecução penal internacional estão intimamente relacionados com os acontecimentos que desestabilizaram a paz mundial ao longo do século XX. O primeiro exemplo de tentativa de criação de uma instância judicial internacional em matéria penal remonta ao final da 1ª Guerra Mundial, levando à posterior proposição de um Tribunal Internacional para a repressão do terrorismo, que nunca chegou a ser ratificado, fracassando com o advento da 2ª Guerra Mundial. Outra tentativa ocorreu com o final da 2ª Guerra Mundial, quando as quatro principais potências vencedoras — França, Inglaterra, Estados Unidos e União Soviética — decidiram punir os principais responsáveis pelos crimes contra a paz, os crimes de guerra e os crimes contra a humanidade, instituindo um Tribunal Militar Internacional que seria competente para o processo e o julgamento desses crimes. Essa decisão foi formalizada na Carta de Londres, também conhecida como Estatuto de Londres do Tribunal Militar Internacional, publicada em 8 de agosto de 1944.

Apesar de as regras contidas na Carta de Londres em matéria penal e processual penal terem sido inicialmente estabelecidas para os processos contra os líderes da Alemanha nazista, os conhecidos processos de Nuremberg, essas mesmas regras foram também aplicadas na persecução penal de crimes praticados no Japão. As decisões tomadas nos juízos de Nuremberg foram reconhecidas por meio do voto unânime da Assembleia Geral da ONU em 11-12-1946. A partir daí, a Carta de Londres serviu de base aos posteriores Tribunais Militares Internacionais instituídos pela ONU, como ocorreu com a extinta Iugoslávia (Resolução da ONU n. 827/1993), para julgamento dos crimes de genocídio, de lesa­ majestade e crimes de guerra; e em Ruanda (Resolução da ONU n. 955/1994), para o julgamento de delitos similares .

O grande problema, nessa época, como ressalta Jescheck , era que os delitos perseguidos eram processados e julgados com total parcialidade, ou seja, pelos próprios vencedores, pelos tribunais ad hoc, soluções que desatenderam às garantias mínimas e necessárias para todo e qualquer procedimento penal. Com efeito, como garantir a presunção de inocência do acusado, quando os membros do tribunal são designados diretamente pelos países vencedores do conflito bélico que é objeto de julgamento? Como garantir a devida segurança jurídica quando tanto o tribunal como o procedimento que este há de seguir são instituídos para julgar somente os vencidos e nunca os vencedores? Sempre houve, portanto, grande e procedente oposição à criação de Tribunais Especiais para julgar situações específicas, como ocorreu nos casos que acabamos de mencionar, pois foram criadas, a posteriori, as regras para julgamento de fatos passados, violando flagrantemente o princípio de legalidade.

Com o fortalecimento dos organismos internacionais, particularmente da Organização das Nações Unidas (ONU), os ideais de justiça universal ganharam contornos mais definidos, ante o reconhecimento da gravidade de determinados delitos internacionais e a necessidade premente de encontrar-se instrumento legal capaz de combatê-los com a eficácia desejada, evitando-se, ao mesmo tempo, os condenados Juízos ou Tribunais de Exceção. O passo indispensável na evolução do processo de internacionalização do Direito Penal destinou-se, portanto, à criação de um Tribunal Penal Internacional, permanente e imparcial, capaz de levar a cabo, sem vínculos político-ideológicos comprometedores, a tarefa de distribuição de uma justiça material internacional. 

Com efeito, não se ignora a cada vez mais frequente grande ocorrência de um sem-número de atrocidades contra a humanidade, em diversas partes do mundo, principalmente, como destaca Paulo César Busato, “sob o emprego de aparatos estatais, que permanecem sem resposta por falta de interesse interno do próprio Estado em responsabilizar penalmente as ações de seus mandatários” . A repetição de situações como essas aumentaram a necessidade e conveniência da criação de um Tribunal Penal Internacional permanente, especialmente com as grandes transformações produzidas pela globalização e os reflexos que tais mudanças produzem no âmbito do Direito Penal. Atendendo a esses auspícios, a Conferência Diplomática, convocada pela ONU (Roma), aprovou, em 17 de julho de 1998, com o voto favorável de 120 representantes de Estados, o Estatuto do Tribunal Penal Internacional, que ficou conhecido como o Estatuto de Roma . Essa iniciativa “representou — como reconhece Régis Prado — o ápice de um longo e árduo processo em busca da consolidação de uma justiça criminal supranacional, com competência para processar e julgar os autores (pessoas físicas) de delitos graves e caráter internacional, isto é, que extrapolam as fronteiras dos Estados e versam sobre bens jurídicos universais, próprios da humanidade e de toda a comunidade internacional (v. g., crimes de genocídio, lesa-majestade, de guerra e agressão — art. 5º do Estatuto)”.

Por fim, resta registrar os termos da integração do Estatuto de Roma ao nosso ordenamento jurídico. O Estatuto de Roma foi assinado pelo Brasil em 7 de fevereiro de 2000, ratificado por meio do Decreto Legislativo n. 112, de 6 de junho de 2002, e, finalmente, promulgado no Brasil por meio do Decreto do Executivo n. 4.388, de 25 de setembro de 2002. A integração do Estatuto de Roma ao nosso ordenamento jurídico encontra amparo no § 4º do art. 5º da Constituição Federal, que reconhece o caráter supranacional do Tribunal Penal Internacional. De acordo com o § 4º, o Brasil “se submete à Jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão”. 

É necessário, contudo, matizar que o exercício da jurisdição da Corte Supranacional está submetido ao princípio da complementariedade, nos termos do art. 1º do Estatuto de Roma. Isso significa que os organismos de justiça penal internacional e os respectivos mecanismos de cooperação penal internacional, mencionados no Estatuto de Roma para a persecução penal, somente deverão atuar quando um Estado nacional não promover a investigação e a persecução dos crimes de competência do Tribunal Penal Internacional, praticados em seu território ou por seus nacionais. Como reconhece expressamente o STF a respeito, a jurisdição do Tribunal Internacional é adicional e complementar à do Estado, ficando, pois, condicionada à incapacidade ou à omissão do sistema judicial interno. O Estado brasileiro tem, assim, o dever de exercer em primeiro lugar sua jurisdição penal contra os responsáveis por crimes de genocídio, contra a humanidade, crimes de guerra e os crimes de agressão, assumindo a comunidade internacional a responsabilidade subsidiária, no caso de omissão ou incapacidade daquela . 

Além disso, existe uma série de aspectos que devem ser levados em consideração para uma adequada compatibilização das normas contidas no Estatuto de Roma, tanto com os direitos e garantias expressos na nossa Constituição como com os reconhecidos em tratados e convenções internacionais aprovados pelo Congresso Nacional, com força de emenda constitucional (§ 3º do art. 5º da CF 1988, acrescentado pela EC n. 45/2004).

Segundo Valério Mazzuoli , a “cláusula aberta no § 2º do art. 5º da Carta de 1988 sempre admitiu o ingresso dos Tratados internacionais de proteção dos direitos humanos no mesmo grau hierárquico das normas constitucionais. Portanto, segundo sempre defendemos, o fato de esses direitos se encontrarem em tratados internacionais jamais impediu a sua caracterização como direitos de status constitucional”. Essa disposição constitucional recebeu um complemento um tanto contraditório com a Emenda Constitucional n. 45, de 8 de dezembro de 2004, que acrescentou o § 3º ao art. 5º da Constituição, com a seguinte redação: “Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”. Atendido esse requisito procedimental, a norma internacional passa a integrar o nosso Direito interno e, como tal, também será abrangida pela análise acerca da compatibilidade das normas do Estatuto de Roma com os direitos e garantias constitucionais, especialmente as cláusulas pétreas.

Essa temática é objeto de acalorado debate do qual fazem parte a doutrina internacional, a doutrina nacional e o próprio STF. Como manifestou o Ministro Celso de Mello “cabe assinalar que se registram algumas dúvidas em torno da suficiência, ou não, da cláusula inscrita no § 4º do art. 5º da Constituição, para efeito de se considerarem integralmente recebidas, por nosso sistema constitucional, todas as disposições constantes do Estatuto de Roma, especialmente se se examinarem tais dispositivos convencionais em face das cláusulas que impõem limitações materiais ao poder reformador do Congresso Nacional (CF, art. 60, § 4º)” (Pet. 4.625). 

Certamente não temos o propósito de realizar um exame detalhado dos problemas que suscita a recepção das normas do Estatuto de Roma, somente indicaremos na seguinte epígrafe aqueles aspectos que consideramos de maior interesse, na medida em que representam uma clara afronta a determinadas garantias reconhecidas pela nossa Constituição, especialmente aquelas definidas como cláusulas pétreas (art. 60, § 4º).


2. Tribunal Penal Internacional, prisão perpétua e o princípio de humanidade

Não se questiona a necessidade de o Direito Penal manter-se ligado às mudanças sociais, respondendo adequadamente às interrogações de hoje, sem retroceder ao dogmatismo hermético de ontem. Quando a sua intervenção se justificar, deve responder eficazmente. A questão decisiva, porém, será: de quanto de sua tradição e de suas garantias o Direito Penal deverá abrir mão a fim de manter essa atualidade? Na verdade, o Direito Penal não pode — a nenhum título e sob nenhum pretexto — abrir mão das conquistas históricas consubstanciadas nas garantias fundamentais referidas ao longo deste trabalho. Efetivamente, um Estado que se quer Democrático de Direito é incompatível com um Direito Penal funcional, que ignore as liberdades e garantais fundamentais do cidadão, asseguradas pela Constituição Federal. Aliás, a própria Constituição adota a responsabilidade penal subjetiva e consagra a presunção de inocência, o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa, preservando, inclusive, a dignidade humana (art. 5º, III, da CF). Ademais, a Carta Magna brasileira proíbe expressamente as sanções perpétuas, capitais, cruéis e degradantes (art. 5º, XLVII) e elevou essas garantias à condição de cláusulas pétreas (art. 60, § 4º, IV). Em outros termos, referidas garantias não podem ser suprimidas ou revistas, nem mesmo através de emendas constitucionais.

Enfim, a pena de morte e a prisão perpétua são expressamente proibidas pela nossa Lei Maior, ressalvando, somente, a pena de morte, para a hipótese de guerra declarada (arts. 5º, XLVII, a, e 84, XIX). Simplificando, a pena de prisão perpétua — que não recebe a mesma ressalva conferida à pena de morte — não pode ser instituída no Brasil, quer através de Tratados Internacionais, quer através de Emendas Constitucionais.

Por outro lado, não se pode ignorar que o Tribunal Penal Internacional (TPI), considerando-se o contexto internacional, representa uma grande conquista da civilização contemporânea, na medida em que disciplina os conflitos internacionais, limita as sanções penais e define as respectivas competências. Se já existisse referido Tribunal Penal, certamente, o episódio Pinochet não teria o espectro que adquiriu. A previsão excepcional da pena de prisão perpétua, pelo referido estatuto internacional, não o desqualifica nem o caracteriza como desumano ou antiético, por duas razões fundamentais: a) de um lado, porque teve, acima de tudo, o objetivo de evitar que, para os mesmos crimes, se cominasse a pena de morte; b) de outro lado, porque a prisão perpétua ficou circunscrita aos denominados crimes de genocídio, crimes de guerra, crimes contra a humanidade e de agressão.

No entanto, considerando sua função humanizadora e pacificadora das relações internacionais, especialmente para aqueles países que adotam a pena de morte (que não é o caso do Brasil), o TPI é uma instituição que precisa e deve ser prestigiada, reconhecida e acatada por todos os países democráticos, inclusive pelo Brasil. No entanto, por ora, não passa de um sonho a acalentar, uma visão romântica da Justiça Universal, posto que, nos termos em que se encontra — adotando a pena de prisão perpétua —, exigiria a reforma de dezenas de constituições de países democráticos, caracterizando retrocessos que negariam todas as conquistas iluministas. Assim, será mais fácil revisar o Estatuto de Roma do que pretender a revisão de tantas constituições espalhadas pelo mundo, permitindo, por exemplo, a adesão ao Tribunal Internacional, com ressalvas.

O princípio de humanidade do Direito Penal é o maior entrave para a adoção da pena capital e da prisão perpétua, dificultando sobremodo a legitimação constitucional da ratificação do Brasil ao Tribunal Penal Internacional que, entre suas sanções, prescreve a pena de prisão perpétua, proscrita pela Constituição Federal (art. 5º, XLVII, b). Esse princípio sustenta que o poder punitivo estatal não pode aplicar sanções que atinjam a dignidade da pessoa humana ou que lesionem a constituição físico-psíquica dos condenados. A proscrição de penas cruéis e infamantes, a proibição de tortura e maus-tratos nos interrogatórios policiais e a obrigação imposta ao Estado de dotar sua infraestrutura carcerária de meios e recursos que impeçam a degradação e a dessocialização dos condenados são corolários do princípio de humanidade, que não se compatibiliza com penas perpétuas. Segundo Zaffaroni , esse princípio determina “a inconstitucionalidade de qualquer pena ou consequência do delito que crie uma deficiência física (morte, amputação, castração ou esterilização, intervenção neurológica etc.), como também qualquer consequência jurídica inapagável do delito”. O princípio de humanidade — afirma Bustos Ramirez — recomenda que seja reinterpretado o que se pretende com “reeducação e reinserção social”, posto que se forem determinados coativamente implicarão atentado contra a pessoa como ser social. Um sistema penal — repetindo — somente estará justificado quando a soma das violências — crimes, vinganças e punições arbitrárias — que ele pode prevenir for superior à das violências constituídas pelas penas que cominar. É, enfim, indispensável que os direitos fundamentais do cidadão sejam considerados indisponíveis, afastados da livre disposição do Estado, que, além de respeitá-los, deve garanti-los.

Enfim, nenhuma pena privativa de liberdade pode ter uma finalidade que atente contra a incolumidade da pessoa como ser social, como ocorre, evidentemente, com a pena de prisão perpétua. Por outro lado, não estamos convencidos de que o Direito Penal, que se fundamenta na culpabilidade, seja instrumento eficiente para combater a criminalidade moderna e, particularmente, a criminalidade internacional. A insistência de governantes em utilizar o Direito Penal como panaceia de todos os males não resolverá a insegurança de que é tomada a população, e o máximo que se conseguirá será destruir o Direito Penal, se forem eliminados seus princípios fundamentais. Por isso, a sugestão de Hassemer, de criação de um Direito de Intervenção, para o combate da criminalidade moderna e, especialmente, da criminalidade contra a humanidade, merece, no mínimo, profunda reflexão.

Por derradeiro, considerando a importância que assume o Tribunal Penal Internacional, a despeito de nossas restrições, as quais se limitam à admissão da prisão perpétua, sugerimos alguns bons autores sobre esse tema, tais como Kai Ambos, Valério de Oliveira Mazzuoli, Carlos Eduardo Adriano Japiassu, Paulo César Busato, dentre outros .


*Doutor em Direito Penal pela Universidade de Sevilha na Espanha. Advogado.


FONTE: https://www.facebook.com/cezarroberto.bitencourt/posts/873277002682703

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