sábado, 15 de março de 2014

TEORIA UNITÁRIA DO PROCESSO X TEORIA GERAL DO PROCESSO PENAL




Sobre o debate: teoria unitária do processo vs teoria geral do processo penal:

Recentemente, em uma lista de discussão de que participo, o tema da possibilidade de uma teoria unitária do processo voltou a ocupar lugar de destaque.

Penso que para além do cerne da controvérsia, ou seja, de saber se há ou não condições para uma teoria unitária do processo, a reiterada retomada do assunto - que é de fato relevante no âmbito do saber jurídico e não cabe nos limites de um post, no FB - tem aprisionado as categorias do processo penal em um marco de referências tradicional, que para o caso brasileiro é autoritário, e está condicionando toda a discussão conforme as categorias jurídicas elaboradas neste contexto inquisitório.

Indagar se há ou não lide penal, conflito de interesses ou o que significa a pretensão processual parece implicar em manter as questões no nível discursivo que é funcional à resistência às transformações que a Constituição e os tratados sobre os direitos humanos devem representar.

Do ponto de vista epistemológico há ainda outras derivações, a começar pelas consequências relativamente à perseverança em avaliar as teorias a partir de supostas qualidades epistemológicas superiores, por meio de um padrão de crítica e análise próprio do positivismo.

Não creio que este seja o melhor caminho.

Em vista disso, divulgo minha mensagem enviada à lista como contribuição, com alterações em respeito à privacidade do grupo e para facilitar o entendimento do contexto.

Forte abraço,
Geraldo

"O tema é muito interessante, como todos sublinharam.
Karl Popper sustentou, em um momento específico de sua produção intelectual, na década de 1920, que o corpus teórico "é algo que o entendimento tenta prescrever à natureza; algo que a natureza frequentemente não permite que se prescreva a ela."

Sob a ótica positivista – e Popper era positivista - teorias seriam hipóteses com alta probabilidade de "descrição" dos fenômenos e isso delimitaria, portanto, o campo de teste de seu êxito.

Sua elaboração acerca dos aspectos concretos coincidentemente explicados pela física newtoniana e pela einsteiniana, a partir de pressupostos que as antagonizavam a ponto de apenas uma delas poder ser considerada correta, isto é, justificada, colocou em evidência o paradoxo das teorias: conhecimento, certeza, justificação e refutação estariam permanentemente juntos, uns como possibilidade dos outros.

A conclusão de Popper, transposta para o debate e exposta no seguinte argumento, aponta para as dificuldades de julgamento acerca da validade da(s) teoria(s) do processo:

"… A situação lógico-epistêmica revelada pela teoria einsteiniana é revolucionária. Pois mostra que mesmo para a teoria empírica mais bem-sucedida T1 [newtoniana]… pode haver uma teoria concorrente T2 [einsteiniana] que, por um lado, contradiz logicamente T1 (de tal modo que ao menos uma entre ambas deve ser falsa) e, que, por outro, seja confirmada por todos os experimentos prévios que confirmam T1."

Os vários argumentos citados pelos defensores da teoria unitária confirmam a validade – justificam a – da teoria unitária; os argumentos mencionados pelos defensores da teoria dualista igualmente justificam esta teoria. 

Ambos tratam da mesma realidade.

Creio que se o debate ficar circunscrito ao campo da filosofia positivista da ciência, cada lado terá sua "razão" mesmo exauridos os argumentos.

Há algum tempo tenho optado por percorrer outros caminhos.

Não creio que as teorias sociais – e talvez quaisquer outras – sejam "descritivas" ou "meramente descritivas". 

O belo livro de Iñigo Ortiz sobre o positivismo jurídico denuncia o quanto há de "prescritivo" em qualquer corpus teórico.

O Direito lida com o Poder e em minha opinião as disputas de sentido, os embates hermenêuticos, são embates políticos.

A teoria unitária "prescreve" um tipo de juiz; a dualista prescreve outro.

Bourdieu assinala que do resultado sempre provisório destes embates resultam decisões científicas e pragmáticas no âmbito da economia da ciência (quem será titular da cadeira da disciplina de processo, quem será indicado parecerista no MJ, para opinar sobre projetos de lei, quem será ministro da Justiça, do STF etc.).

Não é recomendável acreditar em neutralidade científica quando o quadro visível é este.
Thomas Kuhn e mais recentemente Hassemer, que será homenageado semana que vem, na EMERJ (21/03/14), defendiam que uma teoria não era necessariamente "substituída" por outra em virtude de uma suposta melhor qualidade epistêmica da segunda; isso é um mito.

Teorias são abandonadas quando deixam de cumprir a sua função no mundo prático.
A posição de Kuhn e Hassemer soa a heresia para os positivistas. 

E é a crença positivista sobre a "melhor teoria" que suscita muitos dos debates entre escolas… com todas as consequências, relativamente ao capital científico, referidas por Bourdieu.

Sou da opinião de que devemos abandonar este caminho. 

Evitar um debate entre escolas que pareça um embate, confronto.

Para ficar somente no âmbito do "conflito" (propositalmente excluo o "de interesses"), porque o discurso o enquadra, em geral, na perspectiva da teoria unitária, em 1980 Zaffaroni chamava a atenção para o fato de que o Código Penal havia sido idealizado como um programa de "resolução de conflitos", algo irreal, simbólico.

Ressalto: esta denúncia de Zaffaroni sobre o ponto tem apenas 34 anos, formulada no contexto de exame de propostas do Conselho da Europa (Informe do Comitê Europeu sobre problemas da criminalidade, 1980).

Muito pouco tempo, portanto, em termos de história de sistema penal.

Os antropólogos, por sua vez, com razão afirmam que a ideia de conflito foi responsável por avanços, relativamente aos métodos de responsabilização criminal (Edmundo Hendler), porque introduziram a publicidade no processo penal com o objetivo de quebrar a espinha do modelo inquisitório (se não há conflito, mas mera apuração de um fato e sua autoria, dizia-se ao tempo da Inquisição, por quê o processo necessita ser público?). 

A publicidade para o modelo autoritário deveria ser – e está voltando a ser – a publicidade da punição e não do processo.

Neste caso, revela-se a centralidade do "conflito" sob a ótica estrita do processo penal, com base em experiências concretas, mesmo sem falar em mediação penal e restauratividade.

Para se ter noção do caráter complexo de se pautar o debate em "que teoria é melhor?", a dogmática do processo penal norte-americano desconhece solenemente a expressão "princípio acusatório", que nós empregamos para defender um tipo de processo semelhante à estrutura adversarial que eles sustentam, mas não aplicam, porque dão preferência à inquisitorial barganha.

Neste contexto, e me perdoem pela longa mensagem, defendo a posição de que é preferível ocupar espaços institucionais, em fileiras cerradas em torno de um processo penal que defenda a concretização das garantias da CR e do Pacto de São José da Costa Rica, independentemente de filiações teóricas.

No plano interno da doutrina, claro, a reflexão sobre que tipo de juiz, MP e defesa queremos é importante, mas deve ser fruto da noção de que a pauta, relativamente às funções dos sujeitos e do próprio processo, determinará as opções. Uma coisa não exclui a outra.

Pode ser significativo que os mais conservadores profissionais do direito sejam, em geral, os mais ardorosos defensores da teoria unitária na atualidade e empreguem como argumento o que o prof. Cruz e Tucci, com precisão inigualável, definiu como uma comum teoria da linguagem processual, algo que é muito diferente de uma teoria (da função) do processo penal.

Não necessariamente isso importará em alinhar os filiados a essa corrente em um grupo que se opõe às garantias ou que os defensores da teoria dualista sejam sempre progressistas em seus posicionamentos e ações.

Forte abraço,

Fonte: https://www.facebook.com/geraldoprado 

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