sábado, 1 de março de 2014

DISTINÇÃO DOGMÁTICA ENTRE ASSOCIAÇÃO CRIMINOSA E CONCURSO EVENTUAL DE PESSOAS

* Cezar Roberto Bitencourt




1. Associação criminosa e concurso eventual de pessoas


A despeito da pluralidade de participantes na prática delituosa, e da existência de vínculos psicológicos entre os autores, o crime de associação criminosa, que é de concurso necessário, não se confunde com o instituto de concurso de pessoas, que é eventual e temporário. Com efeito, o crime de associação criminosa, com sua natureza de infração autônoma, configura-se quando os componentes do grupo formam uma associação organizada, estável e permanente, com programas previamente preparados para a prática de crimes, reiteradamente, com a adesão de todos. Concurso eventual de pessoas, por sua vez, é a consciente e voluntária participação de duas ou mais pessoas na prática da mesma infração penal. A intervenção de inúmeras pessoas (quatro, cinco ou mais), por si só, é insuficiente para caracterizar a associação criminosa, ao contrário do que tem sido, amiudemente, interpretado. O magistério de Antolisei relativamente ao Código Penal Rocco, que serviu de modelo para nosso Código Penal de 1940, mais uma vez, ilustra essa distinção no nosso Direito Penal: “L’associazione per delinquere presenta qualche affinità con la comparteci­pazione criminosa, ma ne differisce profondamente nel concorso di persone, infatti, l’accordo fra i compartecipi è circoscritto allá realizzazione di uno o più delitti nettamente individuati, commessi i quali l’accordo medesino si esaurisce e, quindi viene meno ogni pericolo per la comunità. Nell associazione a delinquere, invece, dopo l’eventuale commissione di uno o più reati, il vincolo associativo permane per l’ulteriore attuazione del programma di delinquenza prestabilito e, quindi, persiste quel pericolo per l’ordine pubblico che è caratteristica esenciale del reato”.

A associação de forma estável e permanente, bem como o objetivo de praticar vários crimes, é o que diferencia o crime de associação criminosa do concurso eventual de pessoas (coautoria ou participação). Para a configuração do crime é irrelevante que o bando tenha ou não praticado algum delito. Com efeito, o crime de associação criminosa (art. 288) pode consumar-se e extinguir-se sem ter sido cometido um só crime, embora se tenha constitui­do para a prática de um número indeterminado deles.

Ao contrário da associação criminosa, no entanto, a simples organização ou acordo prévio para a prática de crimes previamente determinados está mais para concurso eventual de pessoas do que para associação criminosa. O concurso de pessoas compreende não só a contribuição causal, puramente objetiva, mas também a contribuição subjetiva, que não necessita revestir-se da qualidade de acordo prévio, como exigia a velha doutrina francesa. Segundo o magistério de Sebastian Soler , é suficiente o conhecimento da própria ação como parte de um todo, sendo desnecessário o pacto sceleris formal, ao qual os franceses deram um valor exagerado; mas, se existir, representará a forma mais comum e ordinária de adesão de vontades na realização de uma ação delituosa . 

Enfim, não se pode confundir coparticipação (coautoria e participação), que é associação ocasional ou eventual para a prática de um ou mais crimes determinados, com associação para delinquir, tipificadora do crime de associação criminosa. Para a configuração desse crime, repetindo, exige-se estabilidade e o fim especial de praticar crimes indeterminadamente. E, ademais, a tipificação do antigo crime de quadrilha ou bando (hoje denominado associação criminosa) corporifica-se com a simples formação da quadrilha (crime contra a paz pública), voltamos a afirmar, independentemente de praticar qualquer outro tipo de infração penal, ao passo que o concurso eventual de pessoas (coautoria ou participação), como caracterizador da pluralidade de autores, somente tem relevância penal se levar a efeito a prática de algum crime, pelo menos em sua forma tentada. O “concurso de pessoas” (vínculo subjetivo), por si só, não tipifica crime algum, embora possa, em alguns casos, majorar a pena, como ocorre, por exemplo, nos crimes de roubo, furto etc. 

Finalmente, visando limitar essa prática abusiva, o legislador foi mais contundente na definição do elemento subjetivo especial do tipo, prevendo expressamente na nova redação do tipo penal: “associarem-se ... para o fim específico de cometer crimes”. 

2. Tipo objetivo: adequação típica 

A Lei n. 12.850/2013 redefiniu o crime de quadrilha ou bando, adotando a terminologia associação criminosa, mais adequada e mais consentânea com a própria estrutura tipológica, cujo verbo nuclear associar-se identifica a conduta incriminada. Reduz, por outro lado, o mínimo de participantes para três, e atribui vacatio legis de 45 dias. 

Não vemos, contudo, como mudança significativa a simples alteração terminológica sobre o nomen iuris do crime de quadrilha ou bando, trazida pela Lei n. 12.850/2013, sendo, portanto, incorreto afirmar-se que acabou o crime de quadrilha ou bando, na medida em que foi mantida, basicamente, a sua estrutura típica. Sua alteração mais significativa foi, na verdade, a redução dos seus componentes para apenas três ou mais. O grande ganho foi, acima de tudo, a distinção precisa entre organização criminosa e associação criminosa, impedindo-se, de uma vez por todas, a condenável confusão intencional que se fazia sobre os dois institutos. 

O núcleo do tipo continua sendo associar-se, que significa unir-se, juntar-se, reunir-se, agrupar-se. É necessária a união de mais de três pessoas para se caracterizar associação criminosa, ou seja, exigem-se no mínimo quatro pessoas reunidas com o propósito de cometer crimes. Entende-se por associação criminosa, com efeito, a reunião estável ou permanente (que não significa perpétua) para o fim de perpetrar uma indeterminada série de crimes. A associação tem como objetivo a prática de crimes, excluindo-se a contravenção e os atos imorais. Se, no entanto, objetivarem praticar um único crime, ainda que sejam três ou mais pessoas, não se tipificará associação criminosa, cuja elementar típica exige a finalidade indeterminada. Nesse sentido, destacava, com a precisão de sempre, Antolisei: “Obiettivo dell’associazione deve essere la commissione di più delitti (non di contravvenzioni). In altri termini, si esige che l’associazione abbia come scopo l’attuazione di un programma di delinquenza, e cioè il compimento di una serie indeterminata di delitti. Associarsi per commettere un solo delitto non integra la fattispecie in esame” . 

Estabilidade e permanência são duas características específicas, próprias e identificadoras da associação criminosa. Destaca Regis Prado , com acerto, que não basta para o crime em apreço um simples ajuste de vontades. Embora seja indispensável, não é suficiente para caracterizá-lo. É necessária, além desse requisito, a característica da estabilidade. No mesmo sentido, pontificava Hungria que “a nota de estabilidade ou permanência da aliança é essencial. Não basta, como na ‘cooparticipação criminosa’, um ocasional e transitório concêrto (sic) de vontades para determinado crime: é preciso que o acôrdo (sic) verse sobre uma duradoura situação em comum...” . 

Se a finalidade for a prática de crime determinado ou crimes da mesma espécie, a figura será a do instituto do concurso eventual de pessoas e não a associação criminosa, na mesma linha do entendimento da doutrina italiana antes invocada. 

Na verdade, a estrutura central do núcleo desse crime reside na consciência e vontade de os agentes organizarem-se em associação criminosa, com o fim especial — elemento subjetivo especial do injusto — e imprescindível de praticar crimes variados. Associação criminosa é crime de perigo comum e abstrato, de concurso necessário e de caráter permanente, inconfundível, pelo menos para os iniciados, com o concurso eventual de pessoas. É indispensável que os componentes da associação criminosa concertem previamente a específica prática de crimes indeterminados, como objetivo e fim do grupo. Para a configuração do crime de associação criminosa, ademais, deve, necessariamente, haver um mínimo de organização hierárquica estável e harmônica, com distribuição de funções e obrigações organizativas. Na mesma linha, invocamos novamente o magistério de Antolisei: “‘Associazione’ non equivale ad ‘acordo’, come si può rivelare dal confronto dell’art. 304 com l’art. 305 (infra n. 240). Affinché esista associazione occorre qualche cosa di più: è necessaria l’esistenza di un minimum di organizzazione a carattere stabile, senza che, però, ocorra alcuna distribuzione gerarchica di funzioni” . 

Não se pode deixar de deplorar, na verdade, o uso abusivo, indevido e reprovável que se tem feito no quotidiano forense, a partir do episódio Collor de Mello, denunciando-se, indiscriminadamente, por formação de quadrilha (agora denominada associação criminosa), qualquer concurso de três ou mais pessoas, especialmente nos chamados crimes societários, em autêntico louvor à responsabilidade penal objetiva, câncer tirânico já extirpado do ordenamento jurídico brasileiro. Essa prática odiosa beira o abuso de autoridade (abuso do poder de denunciar) . 

Na realidade, queremos demonstrar que é injustificável a confusão que rotineiramente se tem feito entre concurso eventual de pessoas (art. 29) e associação criminosa (art. 288). Com efeito, não se pode confundir aquele — concurso de pessoas —, que é associação ocasional, eventual, temporária, para o cometimento de um ou mais crimes determinados, com esta associação criminosa, que é uma associação para delinquir, configuradora do crime de associação criminosa, que deve ser duradoura, permanente e estável, cuja finalidade é o cometimento indeterminado de crimes. Agora, mais do que nunca, é inadmissível esses abusos do poder de denunciar contando com a complacência do Judiciário, pois, visando limitar essa prática abusiva, o legislador foi mais contundente na definição do elemento subjetivo especial do tipo. Prevê expressamente, nos termos da Lei n. 12.850/2013, o fim específico da associação criminosa, verbis: “associarem-se 3 (três) ou mais pessoas para o fim específico de cometer crimes” (grifamos). Esse destaque não mais pode ser ignorado, como se vinha fazendo até então. 

Merece, nesse sentido, outra vez, ser invocado o magistério de Antolisei: “L’associazione per delinquere presenta qualche affinità con la comparteci­pazione criminosa, ma ne differisce profondamente. Nel concorso di persone, infatti, l’accordo fra i compartecipi è circoscritto alla realizzazione di uno o più delitti nettamente individuati, commessi i quali l’accordo medesimo si esaurisce e, quindi, vieni meno ogni pericolo per la comunità. Nell’associazione a delinquere, invece, dopo l’eventuale commissione di uno o più reati, il vincolo associativo permane per l’ulteriore attuazione del programma di delinquenza prestabilito e, quindi, persiste quel pericolo per l’ordine pubblico che è caratteristica essenziale del reato” . 

Enfim, a configuração típica do crime de associação criminosa compõe-se dos seguintes elementos: a) concurso necessário de, pelo menos, quatro pessoas; b) finalidade específica dos agentes de cometer crimes indeterminados (ainda que acabem não cometendo nenhum); c) estabilidade e permanência da associação criminosa . Em outros termos, a formação de quadrilha ou bando exige, para sua configuração, união estável e permanente de criminosos voltada para a prática indeterminada de vários crimes, como já afirmamos alhures. 

Para concluir, destacamos o ensinamento do Ministro Sepúlveda Pertence, cujo talento e brilho invulgar incontestáveis autorizam que se invoque sua síntese lapidar: “Mas, data venia, isso nada tem a ver com o delito de quadrilha, que pode consumar-se e extinguir-se sem que se tenha cometido um só crime, e que pode constituir-se para a comissão de um número indeterminado de crimes de determinado tipo, ou dos crimes de qualquer natureza, que se façam necessários para determinada finalidade, como é o caso que pretende a denúncia neste caso. Pelo contrário, a associação que se organize para a comissão de crimes previamente identificados, mais insinua coautoria do que quadrilha” . 

Associação criminosa, enfim, é crime de perigo comum e abstrato, de concurso necessário, comissivo e de caráter permanente, que não se confunde com o simples concurso eventual de pessoas. É necessário que os componentes da associação estejam previamente concertados para a específica prática de crimes indeterminados. Por tudo isso, associação criminosa somente se configura quando realmente de associação estável se tratar, caso contrário estar-se-á diante de concurso eventual de pessoas (art. 29), independentemente do número de pessoas envolvidas na prática delituosa, que não tipifica a figura qualificada em exame. 

3. Tipo subjetivo: adequação típica 

Elemento subjetivo é o dolo, representado pela vontade consciente de associar-se a outras pessoas com a finalidade de praticar crimes indetermi­nados, criando um vínculo associativo entre os participantes. É a vontade e a consciência dos diversos componentes de organizarem-se em associação criminosa, de forma permanente e duradoura, para a prática indiscriminada de crimes. Elemento subjetivo do crime, na visão de Hungria, “é a vontade consciente e livre de associar-se (ou participar de associação já existente) com o fim de cometer crimes (dolo específico)” . 

3.1 Elemento subjetivo especial do tipo 

Exige-se o elemento subjetivo especial do tipo, caracterizado pelo especial fim de organizar-se em associação criminosa para cometer crimes indiscriminadamente, sob pena de não se implementar o tipo subjetivo. Com acerto, nesse particular, destacava Soler: “a) la médula de esta infracción está dada por la finalidad genéricamente delictuosa que la caracteriza. Debe observarse, en este punto, que lo requerido por la ley es que la asociación esté destinada a la comisión de delitos. Se, trata, pues, de un fin colectivo, y como tal tiene naturaleza objetiva con respecto a cada uno de los partícipes. El conocimiento de esa finalidad por parte de cada partícipe, se rige por los princípios generales de la culpabilidad. 

Em síntese, para que determinado indivíduo possa ser considerado sujeito ativo do crime de associação criminosa, isto é, para que responda por essa infração penal é indispensável que tenha consciência de que participa de uma “organização” que tem a finalidade de delinquir; é insuficiente que, objetivamente, tenha servido ou realizado alguma atividade que possa estar abrangida pelos objetivos criminosos da quadrilha. Não respondem por esse crime, por exemplo, eventuais “laranjas”, que desconhecem a existência ou finalidade da associação criminosa, apenas emprestando o nome sem qualquer proveito pessoal, ou determinados empregados que apenas cumprem ordem de seus superiores. Pela mesma razão, essas pessoas que, na linguagem da teoria do domínio do fato, são meros executores e não autores do crime tampouco podem ser consideradas para completar aquele número mínimo exigido (três) como elementar da tipificação de associação criminosa: falta-lhes o elemento subjetivo da ação de associar-se para a prática de crimes indeter­minados. 

Finalmente, a partir da Lei n. 12.850/2013, mais do que nunca, se deve ser mais rigoroso na distinção entre concurso eventual de pessoas e associação criminosa, pois, visando impedir essa prática abusiva, o legislador foi mais contundente na definição do elemento subjetivo especial do tipo, prevendo expressamente: “associarem-se 3 (três) ou mais pessoas para o fim específico de cometer crimes” (grifamos). 

4. Associação criminosa e concurso com os crimes por ela praticados 

O “associado” que não participou de algum crime abrangido pelo plano da associação também responderá por ele? Em outros termos, aquele vínculo associativo que une os membros da associação é suficiente para torná-los igualmente responsáveis por todos os crimes que o bando eventualmente praticar, a despeito da consagração da responsabilidade penal subjetiva? A resposta, evidentemente, é negativa. Com efeito, quando a associação criminosa pratica algum crime, somente o integrante que concorre, in concreto, para sua efetivação responde por ele e, nesse caso, em concurso material com o previsto no art. 288 do CP. Os demais responderão exclusivamente pelo crime de associação criminosa, que é de perigo. O próprio Hungria já adotava esse entendimento, in verbis: “o simples fato de pertencer à quadrilha ou bando não importa, inexoràvelmente (sic), ou automaticamente, que qualquer dos associados responda por todo e qualquer crime integrado no programa da associação, ainda que inteiramente alheio à sua determinação ou execução”. No mesmo sentido, Antolisei: “I compartecipi che commettono uno o più dei reati formano oggetto dell’associazione, ne rispondono individualmente in concorso col delitto di cui stiamo occupando. La responsabilità per i detti reati si estende esclusivamente a quei soci che ne sono compartecipi ai sensi degli artt. 110 e segg. del codice” . 

Convém deixar claro que uma coisa é associar-se para delinquir, de forma mais ou menos geral — associação criminosa —, outra, completamente diferente, é reunir-se, posteriormente, para a prática de determinado crime — concurso eventual de pessoas. Esta segunda ação — a prática de determinado crime — não depende, necessariamente, daquela primeira (associação criminosa). Essa é uma forma didática de demonstrar a quem tem dificuldade de perceber a diferença: na primeira hipótese, “associar-se” para delinquir, de forma indiscriminada, configura associação criminosa; “reunir-se”, posteriormente, para a prática de determinado crime ou crimes configura o similar instituto concurso eventual de pessoas, que são coisas ontoló­gica e juridicamente distintas. Associação criminosa é crime em si mesmo, consistindo na simples associação estável e permanente para a prática de crimes não determinados ou individualizados. A prática, no entanto, de qualquer crime objeto da programação da “sociedade” não exige a participação de todos, podendo, inclusive, ser praticado por um só dos integrantes do bando. Pelo crime de associação criminosa respondem todos os integrantes do bando; agora, pelos crimes que este (bando) praticar responde somente quem deles tomar parte (concurso de pessoas): uma coisa é a associação criminosa, outra, são os crimes que ela efetivamente pratica; por aquela, com efeito, respondem todos os seus membros, por estes, somente os agentes que efetivamente o perpetuaram. Nesse sentido, já era a conclusão de Soler, “no todo miembro de la asociación responde necesariamente por los delitos efectivamente consumados por algunos de los miembros” . Por isso mesmo que o concurso material entre o crime de associação criminosa e os crimes que ela pratica não representam um bis in idem. O crime praticado em concurso (material) não absorve nem exclui o de associação criminosa, pela simples razão de que não é necessária a precedência deste para a prática daquele; pela mesma razão, o simples fato de integrar uma determinada associação criminosa não implica a responsabilidade por todos os crimes que esta realizar: também aí a responsabilidade continua sendo subjetiva e individual — cada um responde pelos fatos que praticar (direito penal do fato). 


* Doutor em Direito pela Universidade de Sevilha/Espanha


Fonte: https://www.facebook.com/cezarroberto.bitencourt 

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