A OAB É REPROVADA NO EXAME DE ORDEM – ERRA NA FORMULAÇÃO DA QUESTÃO
PRÁTICA
Façamos um sucinto exame da
questão prática proposta no Exame X da OAB, nos seguintes termos:
PRIMEIRA PARTE – FÁTICO-JURÍDICA
I - TEXTO LEGAL
Art. 155.
Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel:
Pena —
reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.
(..)
§ 5º A pena é de reclusão de 3 (três) a 8 (oito) anos, se a
subtração for de veículo automotor que venha a ser transportado para outro
Estado ou para o exterior.
•
§
5º acrescentado pela Lei n. 9.426, de 24-12-1996.
II – ENUNCIADO DA QUESTÃO PRÁTICA PROPOSTA
“Leia com atenção o
caso concreto a seguir:
Jane, no dia 18 de outubro de 2010, na cidade de
Cuiabá – MT, subtraiu veículo automotor de propriedade de Gabriela. Tal
subtração ocorreu no momento em que a vítima saltou do carro para buscar um
pertence que havia esquecido em casa, deixando-o aberto e com a chave na
ignição. Jane, ao ver tal situação, aproveitou-se e subtraiu o bem, com o
intuito de revendê-lo no Paraguai. Imediatamente, a vítima chamou a polícia e
esta empreendeu perseguição ininterrupta, tendo prendido Jane em flagrante
somente no dia seguinte, exatamente quando esta tentava cruzar a fronteira
para negociar a venda do bem, que estava guardado em local não
revelado. Em 30 de outubro de 2010, a denúncia foi recebida. No curso do
processo, as testemunhas arroladas afirmaram que a ré estava, realmente,
negociando a venda do bem no país vizinho e que havia um comprador, terceiro de
boa-fé arrolado como testemunha, o qual, em suas declarações, ratificou
os fatos. Também ficou apurado que Jane possuía maus antecedentes e
reincidente específica nesse tipo de crime, bem como que Gabriela havia morrido
no dia seguinte à subtração, vítima de enfarte sofrido logo após os fatos,
já que o veículo era essencial à sua subsistência. A ré confessou o crime
em seu interrogatório. Ao cabo da instrução criminal, a ré foi condenada a
cinco anos de reclusão no regime inicial fechado para cumprimento da pena privativa de liberdade, tendo sido levada em consideração a
confissão, a reincidência específica, os maus antecedentes e as
consequências do crime, quais sejam, a morte da vítima e os
danos decorrentes da subtração de bem essencial à sua subsistência. A condenação
transitou definitivamente em julgado, e a ré iniciou o cumprimento da pena em
10 de novembro de 2012. No dia 5 de março de 2013, você, já na condição de
advogado(a) de Jane, recebe em seu escritório a mãe de Jane, acompanhada
de Gabriel, único parente vivo da vítima, que se identificou como sendo filho
desta. Ele informou que, no dia 27 de outubro de 2010, Jane, acolhendo os
conselhos maternos, lhe telefonou, indicando o local onde o veículo estava
escondido. O filho da vítima, nunca mencionado no processo, informou que no
mesmo dia do telefonema, foi ao local e pegou o veículo de volta, sem
nenhum embaraço, bem como que tal veículo estava em seu poder desde
então.
Com base somente nas informações de que dispõe e
nas que podem ser inferidas pelo caso concreto acima, redija a peça
cabível, excluindo a possibilidade de impetração de Habeas Corpus, sustentando,
para tanto, as teses jurídicas pertinentes”. (Valor: 5,0).
III – GABARITO COMENTADO PELA OAB
O
candidato deve redigir uma revisão criminal, com fundamento no art. 621, I e/ou
III, do Código de Processo Penal. Deverá ser feita uma única petição, dirigida
ao Desembargador Presidente do Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso,
onde o candidato deverá argumentar que, após a sentença, foi descoberta causa
especial de diminuição de pena, prevista no art. 16 do Código Penal, qual seja,
arrependimento posterior. O agente, anteriormente ao recebimento da denúncia,
por ato voluntário, restituiu a res furtiva, sendo certo que tal restituição
foi integral e que, portanto, faz jus ao máximo de diminuição. Assim, deverá
pleitear, com base no art. 626 do Código de Processo Penal, a modificação da
pena imposta, para que seja considerada referida causa de diminuição de pena.
Além disso,
o fato novo comprova que o veículo não chegou a ser transportado para o
exterior, não tendo se iniciado qualquer ato de execução referente à
qualificadora prevista no §5º do artigo 155 do Código Penal. Por isso, cabível
a desclassificação do furto qualificado para o furto simples (artigo 155,
caput, do Código Penal).
Como
consequência da aplicação da causa especial de diminuição de pena prevista no
art. 16 do CP e da desclassificação do delito, o examinando deverá desenvolver
raciocínio no sentido de que, em que pese a reincidência da revisionanda, o STJ
tem entendimento sumulado no sentido de que poderá haver atribuição do regime
semiaberto para cumprimento da pena privativa de liberdade (verbete 269 da
Súmula do STJ).
Além
disso, o fato de a revisionanda ter reparado o dano de forma voluntária
prepondera sobre os maus antecedentes e demonstra que as circunstâncias
pessoais lhe são favoráveis. Por isso, a fixação do regime fechado se mostra
medida desproporcional e infundada, devendo ser abrandado o regime para o
semiaberto, com base na no verbete 269 da Súmula do Superior Tribunal de
Justiça.
Ao
final, o examinando deverá elaborar, com base no art. 626 do CPP, os seguintes
pedidos: i. a desclassificação da conduta, de furto qualificado para furto
simples; ii. a diminuição da pena da pena privativa de liberdade; iii. a
fixação do regime semiaberto (ou a mudança para referido regime) para o
cumprimento da pena privativa de liberdade.
(...)
SEGUNDA PARTE – AVALIAÇÃO JURÍDICA
CONSIDERAÇÕES SOBRE A TERRITORIALIDADE E TIPICAÇÃO
Antes
de mais nada, deve-se examinar, preliminarmente, um aspecto básico, que, na nossa concepção, funciona
como um verdadeiro pressuposto desse
crime, qual seja, a territorialidade,
que é, ao mesmo tempo, uma elementar
normativa especial do crime de “furto qualificado de veículo automotor”.
Esse aspecto é fundamental, na medida em que a qualificadora especial somente se configura “se a subtração for de
veículo automotor que venha a ser transportado para outro Estado ou para o exterior” (§ 5º do art. 155). Dito de
outra forma, não haverá essa qualificadora
se a res furtiva, representada por veículo automotor, não sair dos
limites territoriais da Unidade Federativa onde foi subtraído!
Nesse sentido, tivemos oportunidade
demonstrar em nosso Tratado de Direito
Penal, Parte Especial, volume 3, 2013, p. 81: “b) para a configuração da
nova qualificadora, não basta que a subtração seja de veículo automotor: é
indispensável que este ‘venha a ser transportado para outro Estado ou para o
exterior’. Se o veículo automotor ficar na mesma unidade federativa, não
incidirá a qualificadora, pois essa elementar integra o aspecto material dessa
especial figura qualificada”. Reforçando, é indispensável que o veículo
automotor “venha a ser transportado para outro Estado ou para o exterior”.
Pela construção da questão prática
e da proposta exigida pela OAB, no entanto, constata-se que foi ignorada que a qualificação do crime
não ocorre somente com o transporte da res
furtiva “para o exterior”, mas
também quando é transportado “para outro
Estado”. Trata-se de elementar típica que não admite interpretação diversa.
O elemento subjetivo não pode ser presumido, mas deve decorrer das próprias
circunstâncias fáticas.
Com efeito, no enunciado da questão proposta afirma-se que Jane
foi presa quando tentava cruzar a fronteira do Paraguai para negociar o veículo; por outro lado, a OAB afirma no
“gabarito comentado”, que é o seu modelo de resposta esperada, “que o veículo
não chegou a ser transportado para o exterior, não tendo se iniciado qualquer
ato de execução referente à qualificadora prevista no §5º” do artigo 155 do CP.
Veja-se,
nos próprios termos do “gabarito comentado” da OAB, verbis:
“Além disso, o fato novo
comprova que o veículo não chegou a ser transportado para o exterior, não tendo
se iniciado qualquer ato de execução referente à qualificadora prevista no §5º
do artigo 155 do Código Penal. Por isso, cabível a desclassificação do furto
qualificado para o furto simples (artigo 155, caput, do Código Penal)”.
Dessas afirmações da prova da OAB chega-se a seguinte conclusão: ou a
OAB desconhece o tipo penal do “furto qualificado de veículo automotor” (ou esqueceu,
o que é mais provável, que é suficiente o transporte da res furtiva para fora do estado), ou desconhecem a geografia de
nosso País.
Ora, essa conclusão é inevitável, senão vejamos, segundo os dados
propostos: o furto ocorreu em Cuiabá, Estado do Mato Grosso; a autora do furto
foi presa na fronteira do Paraguai, e a OAB afirma que ela não saiu para o
exterior, logo, deve-se concluir, não passou pela Bolívia! Ora, ou suprimimos o
Estado do Mato Grosso Sul, reitegrando-o ao Estado de Mato Grosso (o que
causaria uma justa revolução naquele Estado), ou os examinadores equivocaram-se
na formulação da questão e na proposição da resposta desejada.
Constata-se,
em outros termos, que a resposta pretendida pela OAB é juridicamente
impossível, qual seja, a de desqualificar
o crime de furto de veículo automotor, por não configuração da qualificadora,
na medida em que a ação foi praticada em Cuiabá e a autora foi presa na
fronteira do Paraguai tentando entrar naquele País para vendê-lo, tendo
percorrido, portanto, todo o Estado do Mato Grosso do Sul. Ou seja, transportou-o
para outro Estado.
Examinando, enquanto doutrinador, o “furto de veículo automotor”, logo
após a publicação da Lei nº
9.426, de 24-12-1996, fizemos as seguintes considerações”:
A Lei n. 9.426, de 24 de dezembro de 1996, cria uma nova
figura de furto qualificado, distinta daquelas relacionadas no § 4º
do art. 155, sempre que a coisa móvel, objeto da ação, consistir em veículo
automotor (automóveis, caminhões, lanchas, aeronaves, motocicletas, jet
skis etc.). Com essa nova qualificadora (§ 5º), pretendeu-se
inibir a conduta de subtrair veículo automotor, exasperando
exageradamente a sanção correspondente, fixando-a entre três e oito anos de
reclusão.
(...)
Essa nova previsão merece, objetivamente, dois destaques: a)
esqueceu-se de tipificar o chamado furto de uso, tão corriqueiro na
atualidade, que, reconhecidamente, constitui figura atípica; e b) para a
configuração da nova qualificadora, não basta que a subtração seja de veículo
automotor: é indispensável que este ‘venha a ser transportado para outro Estado
ou para o exterior’. Se o veículo automotor ficar na mesma unidade federativa,
não incidirá a qualificadora, pois essa elementar integra o aspecto material
dessa especial figura qualificada”.
Sintetizando, os furtos de veículos automotores, em geral,
não são atingidos pela nova qualificadora acrescentada pela referida lei. Em
outros termos, as tradicionais e costumeiras subtrações de veículos
automotores, que perturbam o quotidiano do cidadão, não serão alcançadas pela
nova qualificadora se não vierem, efetivamente, “a ser transportados para
outros Estados ou para o exterior”. Com efeito, a incidência da qualificadora,
nos termos legais, exige que o veículo tenha ultrapassado os limites
territoriais do Estado-membro ou do próprio território nacional, pois se trata
de elementar objetiva espacial.
Essa qualificadora cria um problema sério sobre o momento
consumativo da nova figura delitiva. Afinal, pode um tipo penal apresentar dois
momentos consumativos distintos, um no momento da subtração e outro
quando ultrapassar a fronteira de um Estado federado ou do próprio País? Com
efeito, quando o agente pratica a subtração de um veículo automotor, em princípio é impossível saber, com segurança, se será
transportado para outro Estado ou para fora do território nacional. Assim, essa
qualificadora somente se consuma quando o veículo ingressa efetivamente em
outro Estado ou em território estrangeiro. Na verdade, não basta que a
subtração seja de veículo automotor. É indispensável que este “venha a ser
transportado para outro Estado ou para o exterior”, atividade que poderá caracterizar
um posterius em relação ao crime anterior já consumado. Nessas
circunstâncias, é impossível, em regra, reconhecer a tentativa da figura
qualificada quando, por exemplo, um indivíduo é preso, no mesmo Estado,
dirigindo um veículo furtado.
Teria sido mais feliz a redação do § 5º se tivesse,
por exemplo, se utilizado do tradicional elemento subjetivo do injusto,
isto é, prevendo, como especial fim de agir, a venda ou transporte
“para outro Estado ou para o exterior”. Como se sabe, o especial fim de agir,
embora amplie o aspecto subjetivo do tipo, não integra o dolo nem se confunde
com ele. Efetivamente, os elementos subjetivos especiais do injusto especificam
o dolo, sem com ele se confundir. Não é necessário que se concretizem, sendo
suficiente que existam no psiquismo do autor”.
Enfim, venia concessa, por
mais que não se queira ser deselegante, nessa questão, a OAB foi reprovada!!!
Errou grosseiramente, tanto na formulação da questão (excluiu expressamente a
única peça viável, um HC), como também e, principalmente, na resposta exigida!
A conduta descrita, a despeito de suas lacunas, configura, em tese, o furto qualificado de veículo automotor,
tipificado no § 5º do art. 155 do CP. Por isso, é juridicamente insustentável
defender a desclassificação do crime, pelo simples de fato de o veículo furtado
não ter sido transportado para o exterior, na medida e quem o foi para outro
Estado.
Sem se falar que a indicação do local onde
o veículo se encontrava (arrependimento) ocorreu antes do recebimento da
denúncia. A defesa devia, portanto, ter sido diligente e fazer a prova durante
a instrução criminal. Nova, portanto, foi a comprovação do fato, logo,
extemporânea.
Concluindo,
em uma análise superficial, nos limitamos a examinar a tipificação e a
elementar normativa espacial do tipo penal qualificado. Consideramos, para esta
tarefa preliminar, prejudicados os demais elementos, por não interessar aqui.
Por isso, acreditamos que a questão proposta é nula de pleno direito,
impondo-se a atribuição integral da nota correspondente a todos os examinandos,
além da possível reparação de danos causados a todos.
Para uma tarde
de domingo, dedicado a vocês, acreditamos ser, por ora, suficiente para
suscitar o debate acadêmico-científico.
Boa sorte a
todos
Cezar Roberto Bitencourt
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