quarta-feira, 4 de junho de 2014

CRÍTICA AO (CON) SENSO COMUM


Foto: Gustavo Badaró


CRÍTICA AO (CON)SENSO COMUM
EFEITOS CIVIS DA CONDENAÇÃO PENAL. OU: QUANDO A ABSOLVIÇÃO IMPEDE QUE A VÍTIMA PROPONHA AÇÃO CIVIL EX DELICTO. 


Deixemos a greve de lado, e voltemos ao direito. Trarei, hoje, o debate da nossa aula, de ontem.

A regra geral é a independência entre a jurisdição civil e a penal (CC, art. 935, primeira parte).

Essa regra, contudo, comporta exceções, como prevê a parte final do art. 935 do CC): que não se pode “questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal” (destacamos).

Ressalte-se que a expressão se “ache decidido no juízo criminal” significa um "juízo de certeza", mesmo no caso de sentença absolutória. Ou seja, sobre os dois temas em que se afasta a regra da independência, quais sejam, a existência do fato e a autoria delitiva, somente a absolvição porque o juiz está convencido, com base na prova dos autos, de que os fatos não existiram, ou se estes tiverem existido, o juiz tenha certeza de que o acusado não é o seu autor, é que a absolvição penal impedirá a ação civil ex delicto. 

Transportando tais ideias para as hipóteses absolutórias do caput do art. 386, com a redação dada pela Reforma do CPP de 2008 – Lei 11.719/2008 – . Tanto o tema da existência do fato, quanto o da autoria delitiva, levam a absolvição em duas hipóteses, que se justificam pelo diverso grau de convencimento judicial sobre o mesmo thema decidendum. O juiz absolverá o acusado quando reconheça: I – ESTAR PROVADO que o FATO NÃO EXISTIU” ou II – NÃO HAVER PROVA da EXISTÊNCIA DO FATO”; ou “IV – ESTAR PROVADO que o RÉU NÃO CONCORREU para a infração penal”; e “V – NÃO EXISTIR PROVA de ter O RÉU CONCORRIDO para a infração penal” (destacamos). 

Só nas hipóteses de absolvição pelo inciso I (estar provada a inexistência do fato), e inciso IV (estar provado que o acusado não concorreu para o crime fecha as portas da via cível, ficando vedada a actio civilis. Só nestes caso, as questões da existência do fato ou de quem seja o seu autor se acharão decidida, no sentido de “resolvida” ou “definida” ou “acertada”, havendo apenas a absolvição pelo benefício da dúvida.

Por outro lado, com relação às excludentes de ilicitude, O CP, em seu art. 23, considera excludente de ilicitude a legítima defesa, o estado de necessidade, o exercício regular de um direito e o estrito cumprimento do dever legal. Por sua vez, o art. 65 do CPP estabelece que “faz coisa julgada no cível a sentença penal que reconhecer ter sido o fato praticado em estado de necessidade, em legítima defesa, em estrito cumprimento do dever legal ou no exercício regular de um direito”. O CC, em seu art. 188, inciso I, dispõe que “não constituem atos ilícitos os praticados em legítima defesa ou no exercício regular de um direito reconhecido”. Já o inciso II e o parágrafo único do mesmo dispositivo, embora sem mencionar expressamente, tratam do estado de necessidade. 

Assim sendo, ato que se reconheceu lícito no campo penal, também será lícito no campo civil, não sendo possível, também nessa situação, a ação civil ex delicto, salvo as hipóteses de estado de necessidade de terceiros (CC, art. 929 c.c. art. 930, caput) e de no caso de legítima defesa real com aberratio ictus (CC, art. 930, parágrafo único). Neste duas situações excepcionais, mesmo o ato lícito gera dever de indenizar. 

Até este ponto, normalmente chega a doutrina que analisa o tema de forma mais atenta. 
Todavia, salvo raríssimas exceções, OLVIDAM-SE OS AUTORES DE QUE O TEMA TAMBÉM DEVE SER LIDO À LUZ DA GARANTIA CONSTITUCIONAL DO CONTRADITÓRIO E SUA PROJEÇÃO QUANTO AOS LIMITES SUBJETIVOS DA COISA JULGADA.

O processo penal se desenvolve, em regra, entre o Ministério Público e aquele a quem se imputa a autoria delitiva. A vítima não participa do processo penal, salvo os casos excepcionais de ação penal de iniciativa privada. 

Assim, admitir que a sentença penal absolutória atinja a vítima, quem não foi parte no processo penal, viola o contraditório. Embora a eficácia natural da sentença, a todos atinja (vale erga omnes) a autoridade da COISA JULGADA SOMENTE ATINGE AS PARTES DO PROCESSO (opera-se inter alios), não prejudicando nem beneficiando terceiros (CPP, art. 3o, c.c. CPC, art. 472, 1a parte). A limitação da coisa julgada a quem foi parte no processo nada mais é do que uma DECORRÊNCIA DO PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO. Somente quem foi parte no processo teve oportunidade de expor os seus argumentos e produzir suas provas, podendo influenciar o convencimento judicial. Assim, apenas para estes a decisão será imutável. Já para quem não foi parte do processo e, portanto, não integrou o contraditório, a sentença não será imutável.

Por tudo isso, o art. 935, parte final, do CC e o art. 65 do CPP, quando estendem a coisa julgada da sentença penal absolutória em relação à vítima do delito, são incompatíveis com a garantia constitucional do contraditório. Em outras palavras, se a vítima do delito não participou do contraditório instituído no juízo penal, sendo-lhe impossível trazer seus argumentos, produzir suas provas e, em última análise, influenciar no convencimento judicial, não poderá ficar vinculada ao resultado do processo penal.

Em suma, somente na raríssima hipótese de ação civil e penal que redundou em absolvição terem as mesmas partes, como no caso da ação penal de iniciativa privada ou no caso de ação civil movida também pelo Ministério Público (p. ex.: ação de improbidade administrativa) é que será possível, sem violar os limites subjetivos da coisa julgada, aplicar a parte final do art. 935 do CC e o art. 66 do CPP, e a absolvição penal impedirá a propositura da ação civil ex delicto.

Fonte: https://www.facebook.com/gustavo.badaro.1?fref=nf 

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