quarta-feira, 7 de maio de 2014

CRÍTICA AO (CON) SENSO COMUM: TIPICIDADE É MÉRITO OU CONDIÇÃO DA AÇÃO PENAL ?



* Foto: Prof. Dr. Gustavo Badaró


CRÍTICA AO (CON)SENSO COMUM 

TIPICIDADE É MÉRITO OU CONDIÇÃO DA AÇÃO PENAL?


Quanto ao momento e à forma de decretação da carência da ação, a teoria tradicional posiciona-se no sentido de que pode ser proferida sentença de carência de ação a qualquer momento, até mesmo na fase decisória, desde que se verifique a ausência de uma das condições da ação. Provado que a condição da ação não está presente, mesmo após toda a fase instrutória, o juiz não julgará o mérito, declarando o autor carecedor da ação.

De outro lado, para os adeptos da teoria da asserção ou teoria da prospettazione, o exame das condições da ação deve ser feito "in statu assertionis", tomando-se por verdadeiras as afirmações feitas na petição inicial. Justamente para distinguir as questões que constituem as condições da ação, daquelas relativas ao mérito, afirma-se que o exame das condições da ação deve ser realizado segundo o afirmado na petição inicial. Isto é, o juiz deve, por hipótese, tomar como verdadeiros os fatos narrados na denúncia ou queixa, para apreciar a viabilidade da ação, e impedir que processos inúteis e inviáveis se desenvolvam. As condições da ação têm, portanto, uma clara função de “filtro processual”.

Para a teoria da asserção, a análise das condições da ação é feita a partir de uma “cognição superficial” de elementos narrados na petição inicial e que, posteriormente, constituirão o mérito do processo. Iniciada a fase instrutória, caso se descubra que tais fatos (cuja afirmação fez com que o juiz entendesse que as condições da ação estavam presentes, determinando o prosseguimento do processo) não se verificaram, o juiz deverá julgar o mérito, com a improcedência do pedido, pois já se passou a uma análise profunda do mérito. Esse “método” permite distinguir as condições da ação e o mérito pode, com alguma adaptação, ser transposto para o processo penal.

Inicialmente, é de observar que, no processo penal, a necessidade de distinguir as situações de carência da ação, das de julgamento de mérito improcedente, se restringe à questão da “tipicidade” e da “legitimidade passiva”. Por outro lado, para ambos os temas, há que se acrescer outra diferença específica do processo penal: a exigência de justa causa para a ação penal. Ou seja, a “condição da ação” relativa à tipicidade em abstrato da conduta guarda relação com a exigência de que haja prova da materialidade delitiva. Por outro lado, a condição referente à legitimatio ad causam passiva diz respeito, diretamente, aos indícios suficientes de autoria. 

Em outras palavras, ainda que se procure analisar a tipicidade e a autoria delitiva, na ótica exclusiva das condições da ação, com base apenas no que foi asserido na denúncia ou queixa e, portanto, aplicando a teoria da asserção em sua pureza doutrinária, mesmo assim o recebimento da acusação também dependerá da análise da existência de um suporte probatório mínimo sobre os fatos afirmados na peça acusatória. 

Nesses casos, para aqueles que consideram que a justa causa para a ação penal se distingue das condições da ação penal, seria possível, como que em uma experiência de laboratório, separar e isolar, “in vitro”, a possibilidade jurídica do pedido (no que toca à tipicidade aparente) e a legitimidade de parte passiva, analisando-as, apenas, “in statu assertionis”. No entanto, para o ato de recebimento da denúncia, deveria haver a análise não apenas das condições da ação, tendo por base os fatos tais quais afirmados, mas também dos elementos de informação colhidos no inquérito policial que permitiam concluir pela ocorrência da justa causa para a ação penal. 

Diante de tais dificuldades, como resolver, então, o problema inicial sobre a tipicidade, no que toca ao seu enquadramento como condição da ação ou como mérito? A resposta está, segundo a teoria da asserção, no “grau da cognição” realizada pelo juiz. Segundo a profundidade da cognição, a tipicidade pode dizer respeito às condições da ação (tipicidade aparente, segundo o afirmado na denúncia ou queixa) ou mérito (comprovação, após a instrução, dos fatos constitutivos do tipo penal). A distinção se torna ainda mais clara, ao se comparar o revogado art. 43 do CPP, que tratava da rejeição da denúncia, com os casos de absolvição do art. 386 do CPP. O inciso I do art. 43 previa que a denúncia ou queixa deveria ser rejeitada quando “o fato narrado ‘evidentemente’ não constituir crime”. Já o art. 386, III, prevê que o acusado deverá ser absolvido quando “não constituir o fato infração penal”. Como se percebe facilmente, a atipicidade “prima facie”, apenas com base no que foi afirmado na denúncia, leva à carência da ação, com a consequente rejeição da denúncia. Já a análise aprofundada da tipicidade, depois da fase instrutória, é questão de mérito, que acarreta a absolvição.

Ou seja, a mesma matéria, no caso a tipicidade (ou melhor: a atipicidade), poderá levar a juízos e consequências distintas: apreciada em cognição superficial, logo após o oferecimento da denúncia, acarretará a sua rejeição, por carência da ação (CPP, art. 395, II); se depois da resposta, mediante cognição profunda, provada documentalmente, implicará julgamento do mérito, com a absolvição sumária do acusado (CPP, art. 397, III). A cognição, na análise das condições da ação é superficial, com base no que foi afirmado na peça inicial, e no exame do mérito é aprofundada, com base nos elementos probatórios colhidos ao longo da instrução.

A questão, contudo, não é tão simples. Mesmo no âmbito processual civil, há quem negue que a impossibilidade jurídica do pedido seja distinta do julgamento do mérito de improcedência. Ou seja, o juiz, ainda que no limiar da ação, e mesmo que com base em uma cognição superficial, ao considerar o pedido juridicamente impossível, estaria, em verdade, julgando o mérito improcedente, ainda que prima facie ou de forma “macroscópica”.

Não há por que negar a aplicação de tais ideias ao processo penal. No caso em que se constata a atipicidade dos fatos narrados na denúncia ou queixa, considerando-os, ainda que por hipótese, como verdadeiros, haverá julgamento de mérito, por atipicidade dos fatos imputados. Pouco importa que o juiz o reconheça, logo no início, ao rejeitar a denúncia, por “impossibilidade jurídica do pedido” (CPP, art. 395, II, segunda parte), ou o faça depois da resposta do acusado, absolvendo-o sumariamente (CPP, art. 397, III). O mesmo se diga, se tal decisão decorre de concessão de habeas corpus para “trancar a ação penal”. Em todos estes casos, o que menos importa é o momento procedimental em que se constatou a atipicidade. Sempre haverá julgamento de mérito, seja prima facie (CPP, art. 395), seja antecipadamente (CPP, art. 397), seja ao final do processo (CPP, art. 386). Em todas elas haverá coisa julgada material, impedindo a repropositura de ação penal idêntica, posto que o tema terá sido definitivamente decidido pelo Poder Judiciário.



Fonte: https://www.facebook.com/gustavo.badaro.1?fref=nf  

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