quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

NOTA TÉCNICA SOBRE A LEI Nº 12.850/2013



NOTA TÉCNICA SOBRE A LEI N.º 12.850/13 

Grupo de pesquisa 
Modernas Tendências do Sistema Criminal 
Dezembro/2013 


Ao tempo em que o ordenamento jurídico penal nacional é surpreendido com uma alteração legislativa de grande relevância, identificamos como necessária a realização de algumas reflexões voltadas à edição da Lei n.º 12.850, de 2 de agosto de 2013 , precisamente diante de seu estreito vínculo com uma das linhas de pesquisa assumidas por este Grupo. 

Isto porque, o que se verifica é que, uma vez mais, não parece que o legislador ordinário, em seu labor normativo, teria primado pelo zelo com relação aos aspectos técnico-jurídicos ou aos ideais substancialmente democráticos que haveriam de nortear uma tal inovação. 

Embora se visualize o corajoso enfrentamento de questões há muito tidas como problemáticas – como aquela afeta à tentativa de unificação de um conceito de organização criminosa2 –, concomitantemente, visualizam-se erros crassos e a perda de oportunidades que merecem a pronta reprovação por parte da doutrina especializada. 

Com este propósito, passa-se a ressaltar alguns aspectos que, sob uma 
perspectiva científica, julgamos que exigem a pronta atenção dos operadores jurídicos. 



O histórico do processo legislativo:

Fruto imediato do Projeto de Lei n.º 6.578/09 – originado, por sua vez, de proposta legislativa do Senado que tramitou entre 2006 e 2009 (PLS n.º 150/06) –, a Lei n.º 12.850/13 buscou adequar o ordenamento jurídico nacional aos ditames da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, então aprovada pelo Decreto Legislativo n.º 231/2003, e que restou ratificada em janeiro de 2004, sendo promulgada pelo Decreto n.º 5.015/2004. 

Malgrado o processo legislativo tenha tido curso por cerca de uma década desde o ingresso da intitulada Convenção de Palermo em nosso ordenamento, a delonga longe está de apresentar-se como fruto de um aprofundado debate parlamentar ou de uma preocupação com a técnica legislativa. 

Em absoluto. O estudo cuidadoso da evolução histórica deste processo serve para ressaltar a enorme deformação pela qual passou referida legislação que, em seu início, buscava essencialmente “promover a cooperação para prevenir e combater mais eficazmente a criminalidade organizada transnacional”, conforme os termos da ementa da referida Convenção. 

Norteada pela adoção de medidas eficazes, porém, respeitosas com os princípios essenciais de qualquer Estado democrático de Direito, a Convenção se mostrava atenta à incorporação normativa de instrumentos voltados, essencialmente, ao combate da lavagem de capitais. Neste sentido, trazia diferenciada atenção em relação à recuperação dos ativos obtidos no âmbito da criminalidade organizada, à previsão da responsabilização penal da pessoa jurídica, à instrumentalização do 
bloqueio, apreensão, embargo e confisco de bens e produtos do crime 
organizado, estabelecendo, neste particular, importante regulamentação da técnica da entrega vigiada, como instrumento apto a permitir um maior controle pelas autoridades competentes das remessas de capitais ilícitas ou suspeitas (art. 2, “i”). 

Ao se realizar um confronto entre toda esta fundamentação extravagante e o produto final apresentado pelo legislador nacional, entretanto, o que se nota é que, ressalvada a manutenção simbólica da terminologia “organização criminosa”, nada mais teria restado do então estabelecido pela Convenção das Nações Unidas do ano de 2000. 

A incompreensível omissão: 

Nesta toada, soa pouco compreensível notar que, ao longo de todos os seus artigos, a legislação recém aprovada não apresente sequer um único dispositivo preocupado com o combate econômico das, agora tipificadas, organizações criminosas. 

Soa menos compreensível ainda notar que, até as supressões ocorridas por meio do Parecer do Relator n.º 2 da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados (Dep. Vieira da Cunha, 30.10.2012), existia na redação original do Projeto de Lei n.º 6.578/2009 todo um capítulo dedicado ao tema. 

Pois bem, sob a justificativa de se tratar de matéria que então estaria sendo disciplinada pelo Projeto de Lei n.º 2.902/2011 daquela Casa, bem como na própria Lei n.º 12.694/2012, todo o tratamento da matéria que existia no âmbito da criminalidade organizada fora integralmente suprimido na redação que foi levada à aprovação

Muito embora não se desconheça tenha o legislador agido com o fim de imprimir uma maior uniformidade no tratamento da temática, uma breve análise dos dispositivos referidos deixa evidente o quanto se perdeu daquilo que originalmente vinha previsto exclusivamente para fins de combate à criminalidade organizada. E isto, inclusive, pelo tratamento geral que, agora, pretende-se imprimir à matéria4

Assim, num momento em que é perceptível que as normativas internacionais buscam justamente um esvaziamento econômico destas organizações – tanto por meio do incremento no uso das sanções pecuniárias, quanto da reelaboração das consequências jurídicas da condenação definitiva –, o legislador pátrio, uma vez 
mais, dá mostras do uso simbólico que faz do Direito penal. 

A fragilidade técnica das apostas: 

Não bastasse esta utilização simbólica e economicamente ineficaz do Direito penal, sob a perspectiva da persecução penal, a nova legislação inova de forma pouco científica, ignorando regras interpretativas básicas facilmente formuláveis a partir da constatação de que, em última análise, o que o legislador fez nada mais foi do que criar medidas excepcionais de provas para uma categoria específica de delitos. 

Neste sentido, basta uma leitura do “caput” do artigo 3o da Lei. Um dispositivo no qual o legislador procurou demonstrar todo o arsenal persecutório que pretende ver implantado ou incrementado no combate às organizações criminosas. 

Surge, aí, ponto curioso do labor legislativo. Isto porque, a partir da leitura atenta deste dispositivo, interpreta-se que as fórmulas excepcionais de investigação só estarão legitimadas quando estiver devidamente demonstrada a existência mesma de uma organização criminosa. Ocorre que, se demonstrada estiver a existência de tal organização, as ditas fórmulas especiais já não mais serão necessárias. Afinal, a comprovação da existência da organização já terá sido atingida por outras vias, deixando clara a desnecessidade das medidas excepcionais arroladas 
pelo artigo 3o da Lei. 

Se não bastasse esta incongruência lógica, o desconhecimento legislativo foi além e demonstrou ignorar conceitos e princípios básicos há muito sedimentados pela doutrina penal e processual penal. 

É exemplo disto o instituto da “colaboração premiada”, claro eufemismo utilizado com o fim de disfarçar a conotação antiética que a conduta possui. Regulamentado no artigo 4o e seus parágrafos da Lei, trata-se de instituto no qual, ao que parece, o legislador teria apostado grande parte da credibilidade do combate ao crime organizado. 

Além da absurda referência a uma suposta “renúncia” do direito ao silêncio (art. 4o, § 14), o dispositivo está eivado de inconstitucionalidade e não parece supor qualquer efetividade e coerência6

Afinal, não se pode olvidar que, com essa figura, o legislador brasileiro nada mais faz do que possibilitar premiar o traidor, oferecendo-lhe uma vantagem legal, manipulando para tanto os parâmetros punitivos, de forma completamente alheia aos fundamentos do direito-dever de punir que o Estado assumiu para com a coletividade. 

Ademais, além de se identificar a inexistência de qualquer compromisso científico com o princípio da indisponibilidade da ação penal de iniciativa pública, o que se nota é a presença de interesses pouco claros que teriam norteado a redação aprovada. Ao menos é o que se pode depreender a partir da análise da evolução do processo legislativo em questão7

Fato é que, ao assim agir, demonstra o legislador o quanto desconhece da potencialidade lesiva que acompanha a má utilização de um instrumento que, por si só, já possui suficientes riscos para a sua implantação, mormente quando analisados sob a perspectiva das garantias processuais penais8

A contínua ausência de uma clara regulamentação legislativa: 

Piora este quadro, notar que tampouco houve zelo legislativo na regulamentação de instrumentos voltados à persecução das organizações criminosas que, num passado recente, haviam sido incluídos de forma açodada em nosso ordenamento9. É o caso dos dispositivos tendentes a regulamentar a figura do “agente infiltrado”. 

Aqui, a leitura da redação aprovada nos artigos 10 e seguintes da Lei bem 
demonstra o quão raso foi o aprofundamento e debate científicos a respeito do instituto, de modo a conformá-lo a um modelo processual penal próprio de um regime efetivamente democrático. 

Afinal, a impressão que fica é que, uma vez mais, ignorou-se estar-se diante de um instituto extremamente polêmico já em seus fundamentos. E isto precisamente no que diz respeito à sua base ética, pois se trata, em última análise, de legitimar que o Estado, através de um preposto seu, se envolva diretamente na prática de delitos, como forma de melhor apurá-los. Ou seja, legitima-se que o Estado, em nome da eficiência do sistema punitivo e ao invés de exercer uma função de prevenção penal, pratique atos desviados, equiparando-se ao criminoso10. 

O perigo está em identificar que, embora tenha sido inaugurada toda uma seção para a regulamentação do instituto, não houve o cuidado de detalhar e delimitar aquilo a que está ou não autorizado o agente infiltrado a fazer. Uma delimitação que, inclusive, seria vital para conter possíveis abusos da parte daquele que se vê inserido no contexto criminoso. 

Esta omissão torna-se ainda mais preocupante quando se identifica a deficiente redação trazida pelo artigo 13 e seu parágrafo único da Lei. De fato, sob o pretexto de apresentar uma solução jurídica para os delitos praticados no seio da organização criminosa pelo agente infiltrado – dando-lhe uma suposta garantia contra eventuais responsabilizações –, a redação legislativa acabou por resultar ambígua e estabelecer uma regra geral de exclusão que, interpretada literalmente, 
subverte todo o regramento da matéria na parte geral do Código penal, 
especialmente no tocante às regras do concurso de pessoas. 

Enfim, ainda que não se ignore a importância e a necessidade do aprimoramento legislativo contínuo no âmbito da persecução penal das atividades ilícitas cometidas por organizações criminosas, lastima-se ter o legislador perdido a oportunidade de enfrentar de forma efetiva, científica e eficaz esta parcela da criminalidade. 

Lastima-se, por fim, que novamente o legislador pátrio tenha insistido em ignorar que a dita “criminalidade organizada” seria muito mais produto de uma omissão do poder público ao longo dos anos do que, propriamente, fruto de condutas efetivamente organizadas praticadas com sofisticação operacional pela delinquência massificada.


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